"A violação é a pior doença da Índia"

Em 2018, a Índia foi considerada o país mais perigoso do mundo para as mulheres. De acordo com dados de 2016, de 15 em 15 minutos uma mulher é violada - e quase metade das vítimas reportadas são menores. A brutalidade destes números, provavelmente muito aquém da realidade, tem sido ilustrada nos últimos dias com casos atrozes de violação e homicídio de mulheres e meninas.
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Vai fazer sete anos a 16 de dezembro. Jyoti Singh, uma estudante de fisioterapia de 23 anos, apanhou um autocarro em nova Deli com um amigo, Awindra Pandey, de 28, cerca das 21.30. Tinham ido ao cinema, ver a Vida de Pi, e estavam de volta a casa. No autocarro estavam seis homens, incluindo o motorista. Os seis - entre os quais havia dois irmãos, um instrutor de ginástica, um vendedor de fruta, um limpador de carros e um menor (tinha 17 anos) - subjugaram o amigo, espancando-o, e violaram selvaticamente Jyoti. A violação, que incluiu a introdução de uma chave de fendas na vagina de Jyoti, perfurando-lhe o útero e destruindo-lhe os intestinos, durou cerca de 45 minutos, findos os quais foram os dois atirados do autocarro. Apesar de muito feridos, Awindra conta que tiveram dificuldade em conseguir ajuda, e ao fim de 25 minutos alguém os levou ao hospital. Jyoti foi submetida a várias cirurgias mas não foi possível salvá-la: morreria 13 dias depois.

O seu martírio e morte levantaram uma onda de protestos contra a violência sobre as mulheres na Índia como o país nunca viu. Sob o olhar consternado do mundo, dezenas de milhares saíram à rua numa explosão de raiva, a exigir justiça e a denunciar a desigualdade de género e a falta de ação das autoridades.

Pressionados, os legisladores mudaram cinco meses depois a definição do crime de violação e criaram uma via rápida nos tribunais para casos de violência sexual. Mais de dois mil polícias foram mobilizados na caça aos homicidas de Jyoti, apanhados ao fim de poucos dias. Um deles foi identificado pelas marcas das dentadas no corpo da rapariga. Quatro foram condenados à morte; o motorista apareceu morto na prisão antes da sentença e o menor foi julgado à parte, tendo sido colocado numa instituição correcional por três anos. Foi libertado em 2015.

"Ela pode ter perdido a sua batalha pela vida; cabe-nos a nós garantir que a sua morte não foi em vão". disse o então primeiro-ministro Manmohan Singh, anunciando esperar que "toda a classe política e a sociedade civil ponham de parte querelas mesquinhas e se juntem para alcançarmos o objetivo que é de todos: fazer da Índia um lugar melhor e mais seguro para as mulheres."

"As autoridades não conseguem proteger as vítimas"

Porém toda a indignação, toda a fúria e toda a esperança de 2012, todas as alterações legislativas efetuadas parecem nada ter mudado no país. Nos últimos dias, uma veterinária de 27 anos foi violada por quatro homens, que de seguida a mataram, queimando o corpo sob um viaduto; uma adolescente teve o mesmo destino noutra zona do país; uma menina de seis anos foi violada e assassinada por um vizinho; e, finalmente, uma vítima de violação que se dirigia para o tribunal para depor foi queimada viva pelos acusados, que aguardavam julgamento em liberdade. Morreu este sábado.

A exasperação do país é tal que o facto de os alegados assassinos da veterinária terem sido mortos pela polícia esta sexta-feira, durante o que foi descrito como uma tentativa de fuga durante a reconstituição do crime (há suspeitas de que tenham sido simplesmente executados), está a ser recebido com entusiasmo. O pai da vítima agradeceu à polícia - "A alma da minha filha deve estar em paz agora" -, e a mãe de Jyoti disse estar "extremamente satisfeita com este castigo", apelando a que nada seja feito contra os agentes que mataram os quatro homens, assistindo-se a um regozijo generalizado nas redes sociais.

Há porém quem, exigindo justiça para as vítimas e segurança para todas as mulheres, considere que a morte dos quatro homens é uma "contrafação da justiça". Assim a qualificam a All India Progressive Women's Association (Associação Progressista de Todas as Indianas) e a secção local da Amnistia Internacional, que alertam para o facto de que as execuções extra-judiciais "não são uma solução para prevenir as violações". Pior, diz a associação: "O que as mortes destes quatro homens nos dizem é que as autoridades não conseguem manter as ruas seguras, não conseguem investigar crimes contra as mulheres de forma a assegurar que há provas suficientes para uma condenação, não conseguem garantir a proteção das vítimas de violação que sobrevivem nem que as tratem com dignidade nos tribunais."

"Protege a tua filha e acabas morto"

Essa ausência de proteção, na verdade, pode transformar-se no seu exato contrário, como prova o impressionante caso de uma jovem de 15 anos que em agosto de 2017 se dirigiu à polícia na cidade de Unnao, no norte do país, para reportar ter sido violada por um influente político do partido do governo, Kuldeep Singh Sengar, e um cúmplice. A polícia recusou a queixa mas a adolescente e a sua família não desistiram, mantendo a pressão para se fosse aberta uma investigação.

O que sucedeu a seguir parece mau de mais para ser verdade: o pai da rapariga foi preso em abril de 2018, sob a acusação falsa de possuir armas de fogo depois de, atendendo ao relato da mulher, o político e um irmão, acompanhados de mais homens, lhes invadirem a casa, tendo molestado as filhas e espancado e amarrado o pai a uma árvore, quando este tentou defendê-las. Desesperada com a detenção do pai e com o facto de não lhe darem crédito, a jovem tentou imolar-se pelo fogo frente à casa do governador do estado. Sobreviveu, mas o pai não: no dia seguinte morreu no hospital, depois de se ter queixado de dores abdominais. O escândalo foi tal que seis agentes foram suspensos e Kuldeep Singh Sengar finalmente detido.

Sengar, que continua preso, começou em setembro a ser julgado por violação, coação e sequestro, assim como, com outros nove suspeitos, de denúncia caluniosa e de homicídio do pai da rapariga. Está também a ser investigado pelo possível envolvimento no acidente de carro, no verão de 2019, que vitimou uma tia da jovem e a deixou a ela e ao seu advogado feridos.

"Protege a tua filha e acabas morto", tuitou o líder da oposição, Rahul Gandhi, em alusão ao caso e parodiando a campanha "protege a tua filha", lançada pelo governo em 2018 para sensibilizar a população para a necessidade de melhorar a condição das meninas e das jovens.

99,1% de casos de violência sexual não serão reportados

Em 2018, um relatório da organização internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch reconheceu que as leis indianas tinham melhorado muito desde 2012 mas que na prática as queixas das vítimas são muitas vezes ignoradas ou escamoteadas pelas autoridades locais, que se recusam a cumprir a lei.

Um inquérito de junho de 2018 da Thomson Reuters Foundation concluiu que a índia é o país mais perigoso do mundo para as mulheres; os dados oficias mais recentes apontam para quase 40 mil casos de violação regsitados em 2016, o que significa uma subida de 12,4% em relação a 2015. Com base nesses números, cujo aumento pode refletir uma maior tendência para reportar o crime e não necessariamente um aumento do número de ocorrências, a estimativa é de que há uma violação no país de 15 em 15 minutos.

Mas esta estonteante estimativa pode estar muito baixo da realidade, já que perante as dificuldades e perigos que as vítimas enfrentam na sua busca por justiça, e a alta probabilidade de serem envergonhadas, culpabilizadas e revitimizadas, muitas não chegaram a participar o que lhes aconteceu. Um estudo tornado público em 2018 e baseado num inquérito a quase 80 mil mulheres calcula que 99,1% dos casos de violência sexual não são reportados, e que na maioria esses serão relativos a agressões sexuias perpetradas por maridos.

Acresce que se a atual redação da lei tipifica como violação qualquer ato sexual de um adulto com uma menor de 18 e inclui uma série de atos para além da penetração vaginal (o que não acontecia antes), assim como uma definição de consentimento que implica que este seja dado de forma óbvia, continua a não criminalizar a violação no casamento - a não ser que a vítima esteja separada do marido - e só admite violação de mulheres, deixando as vítimas masculinas desprotegidas.

"O sistema, da polícia aos tribunais, falhou"

Um relatório de 2017 da Human Rights Watch concluiu que em 21 casos de violação analisados nem num único a polícia informou a vítima do seu direito a um advogado oficioso. E que "muito frequentemente os procedimentos legais perpetuam estereótipos danosos. Nos tribunais é ainda muitas vezes usada linguagem preconceituosa e ofensiva em relação às vítimas, quer por juízes quer por advogados."

Perante este panorama, a greve de fome de Swati Maliwal, a presidente da Comissão das Mulheres de Deli, parece quase uma consequência lógica. Começou-a no domingo passado e está desde então no memorial de Samta Sthal, que significa "lugar da igualdade" e simboliza a igualdade de todos os seres humanos.

"O medo da violação está sempre na cabeça das indianas. Somos condicionadas a isso desde o momento em que nascemos e não conseguimos escapar-lhe. Estou constantemente a pensar na minha segurança, e pode-se dizer isso de praticamente qualquer mulher na Índia", disse Maliwal ao Guardian. "Durante os últimos três anos, lidei com 55 mil casos de violação e agressão sexual mas quando soube do caso da veterinária e da menina de seis anos não aguentei mais. O sistema, da polícia aos tribunais, falhou. Exijo mais recursos policiais, mais transparência da polícia, mais tribunais rápidos, um sistema forte que puna os violadores e uma mensagem do governo de que não se tolerarão mais violações. Se tiver de morrer para ver isso acontecer, que morra."

No mesmo memorial, onde centenas de mulheres gritam "parem com as violações", o jornal britânico encontrou uma mulher de 35 anos. "Tinha seis anos quando fui violada e nunca consegui falar sobre isso. Isto é a pior doença da Índia e temos de acabar com ela."

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