"Tenho as unhas que é uma miséria. A menina não repare", diz Romana Marques, para começo de conversa. Aos 110 anos, está entre as mais vaidosas utentes do Lar Emanuel, em Leiria, do qual é benemérita, e para onde se mudou há cerca de 20 anos. Era viúva, o único filho morreu num desastre de avião, e não se lhe conhecia mais família. Viriam a aparecer uns primos afastados, em julho passado, quando a viram numa reportagem televisiva, a soprar as 110 velas. "Julgavam que ela já tinha morrido", conta ao DN Ana Gaspar, a técnica do lar que mais de perto a acompanha. Conhece-lhe as manhas, os gostos, acompanhou-a no verão passado à sapataria onde Romana quis comprar umas sandálias novas, para o dia de aniversário. Agora já não escolhe a roupa, mas se lhe desagrada o que as funcionárias do lar lhe preparam, reclama logo..Romana está entre os 4268 centenários que o Instituto Nacional de Estatística contabilizou, até junho de 2018. Os dados deste ano só serão conhecidos daqui por um mês, mas a tendência será a mesma dos últimos anos: um aumento considerável da longevidade, do número de homens e mulheres com 100 anos ou mais, ainda que, nesta batalha da vida, sejam as mulheres quem vence, de forma destacada. Os números falam de 2600 mulheres e 1668 homens, sendo na região centro que se concentra o maior número de centenários - 1381..Ali, no Lar Emanuel, a amostra também é visível: são elas que mais facilmente ultrapassam os 100, embora a comemoração dos centenários comece a banalizar-se. Há três utentes com mais de 100, outros três que lá chegarão dentro de um ou dois anos. Em 2017, o espaço era dividido por seis. "Banalizou-se, para nós", diz David Martins, antigo diretor do lar, que conhece cada um deles e com quem conversa diariamente..Romana Marques está sentada na sala de convívio e vai mexendo nas unhas, preocupada com o aspeto. Os olhos já foram muito azuis, agora são de um cinzento um pouco baço. "Vejo mal, sabe? Foi por isso que deixei de costurar." Gaba-se então de ter sido a melhor modista de Leiria, mergulha com frequência no tempo em que era menina e moça, mistura por vezes mais de um século de memórias. Ainda chora quando fala do filho, que perdeu quando ainda era muito nova. Percebe-se que o olhar ficou baço de tristeza, de falta de amor. "O meu marido era muito galdério. O que me valia era o meu filhinho", repete várias vezes ao longo da conversa..Depois conta com orgulho o dia em que foi homenageada pelos Bombeiros Voluntários da Batalha, pois que se tornou benemérita daquela associação humanitária. E espera pela visita de Marcelo Rebelo de Sousa, em julho próximo, quando chegar aos 111 anos. "O Presidente prometeu vir cá no ano passado, mas por questões de agenda não pôde, então está agendado para este ano, dia 22 de julho", conta David Martins. Romana vai mexendo numa bolsa de pano preta com uma mão e ajeita o colar de pérolas com a outra. Dentro da bolsa traz "coisas que são precisas", diz ao DN. Na verdade, são adereços de costura, de que nunca se separa..A educadora social Ana Gaspar acompanha Romana há cerca de três anos, desde que começou a trabalhar naquele lar. Quando vai a reuniões e congressos, gosta de fazer aquele brilharete: "Quando lhes digo que tenho uma senhora com 110 anos que anda, fala e é vaidosa desta maneira... ficam todos admirados." Romana está entre os idosos que menos medicamentos tomam. Contam-se apenas vitaminas na sua folha. Não gosta de o revelar, mas lá no lar todos sabem que, durante muitos anos, "mastigava dois dentes de alho por dia". Talvez seja essa a poção mágica que a fez chegar aqui..A importância de ser ativo.Noutro edifício do mesmo lar mora João Grilo, 104 anos. Espera-nos com a filha, Áurea, de 82. Fala do único neto e dos dois bisnetos com entusiasmo, visitas assíduas no Centro Sénior do Lar Emanuel, para onde se mudou apenas há quatro anos. "Vivia sozinho, num segundo andar, mas começou a ter dificuldade em subir as escadas, em levar as compras para cima", conta a filha, que assiste à fluente conversa de João Grilo. Tão desempoeirada como o seu quotidiano: levanta-se todos os dias às seis da manhã, faz a cama, toma duche sem ajuda. "Não me dói nada, nem sei porque é que tomo medicamentos", diz ao DN. Mas afinal sabe. Há alguns anos diagnosticaram-lhe diabetes. É a única maleita que o afeta, que o faz redobrar cuidados na alimentação, e que lhe diminuiu também a visão, impedindo-o de ler, como tanto gostava. E de jogar bilhar. Ouve mal, nos últimos tempos, o que lhe atrapalha as conversas, mas esforça-se por manter toda a atividade..Gosta de relatar aos companheiros as peripécias de quando era militar da GNR (de onde saiu cedo) ou encarregado geral na Edmar, uma fábrica de sapatilhas em Leiria já desaparecida. Como quase todos os seus colegas e amigos, afinal. Como os companheiros da junta de freguesia ou da União Desportiva de Leiria, em que tanto se envolveu. Sempre gostou de futebol, desde os tempos de juventude, em Avis, no Alentejo.."Cheguei a esta idade nem sei como. Mas acho que não é por milagre", desabafa João Grilo, embora não consiga explicar bem como é que se safou daqueles 22 dias em coma, há cerca de dois anos, na sequência de uma intoxicação alimentar que apanhou num dia de passeio. "Ninguém lhe julgava vida", conta a filha. Mas João Grilo já separou um calendário de 2020 e assinalou o dia 2 de janeiro. Está determinado a chegar aos 105, nesse dia..Maria de Jesus completou 105 anos a 5 de novembro passado. Conta pelos dedos enquanto vai nomeando os dez filhos (dois já falecidos), 18 netos e 12 bisnetos. Foi a última dos centenários a chegar ao lar, quando já tinha 103 anos. Com uma singularidade: já lá estava um filho. Joaquim Gameiro, 78 anos, chegou ali há 13, na sequência de um AVC que lhe deixou bastantes sequelas: mal se percebe o que diz, desloca-se em cadeira de rodas. Mas foi ele quem pediu à direção do lar que "arranjasse aqui um lugar para a mãe"..Quando aponta as limitações que a idade lhe trouxe, sai-lhe um lamento: "Hoje nem sou capaz de enfiar uma agulha." Estava a poucos dias de completar 103 anos, feitos de uma independência que impressionou o pessoal do lar, quando ali chegou. Afinal, Maria de Jesus ainda vivia sozinha, em sua casa, cozinhava e fazia quase todas as tarefas.."Os meus filhos iam lá dar-me um jeito na limpeza e na roupa. Mas chegou uma altura em que eu já não estava em condições de morar sozinha", conta ao DN. "Agora não faço nada. Só como", sorri. O que espera da vida? "O que houver de ser. Quando a morte vier, que venha.".O poder dos fármacos e da higiene."A idade de admissão numa estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI) tem vindo a aumentar. É frequente procurarem os nossos serviços pessoas com mais de 90 anos, realidade que não era habitual há 20 anos." Isabel Roque, diretora técnica do Centro Sénior Lar Emanuel, fala dessa alteração sociológica, e justifica esse aumento da longevidade com os fatores genéticos, mas também com "a evolução dos cuidados de saúde, alimentação, exercício e estimulação cognitiva". Tudo junto contribui para o aumento da qualidade de vida destas pessoas..Na Associação Lar Emanuel, uma IPSS dividida entre dois edifícios - o centro sénior e as residências -, estimula-se a autonomia pessoal, que Isabel Roque considera "fundamental para cada um se sentir "dono" de si próprio e da sua vida, mantendo-se mentalmente saudável, o que se reflete na saúde física. É um ciclo que tentamos manter trabalhando com utentes, família e amigos".."A agilização da nossa equipa de trabalho, direção, médico, enfermeiros, assistentes sociais, animadores, ajudantes de ação direta ao idoso, auxiliares de limpeza, cozinheiros, ajudantes de cozinha, auxiliares de manutenção e administrativos, é fundamental para o objetivo de viver e se manter ativo", considera a diretora técnica do centro. Também a responsável pelas residências, Marta Martins, corrobora esta opinião: "As pessoas ainda ativas criam estratégias/mecanismos diários para se sentirem o melhor possível. A reforma, a diminuição da mobilidade, a alteração do estado de saúde, a perda de entes queridos, a necessidade de ir para uma estrutura residencial, diminui a capacidade de manter os mecanismos diários ativos. O que tentamos fazer na Associação Lar Emanuel é proporcionar que estes mecanismos se mantenham.".Teoria da validação ou ouvir o que têm para dizer.Esta prática do Lar Emanuel entronca na teoria do médico José Grilo Gonçalves, neurologista que se tem dedicado à geriatria, a partir do Centro Hospitalar dos Covões, em Coimbra. Defensor da "terapia da validação das narrativas autobiográficas" (um método empático de comunicar), sublinha a forma como "restaura a dignidade e o amor-próprio do idoso e retarda a deterioração cognitiva". Afinal, falamos apenas de ouvir os idosos, deixar que exprimam "os sentimentos mais dolorosos e resolvam conflitos passados, ficando em paz"..José Grilo recorda que "o número de pessoas com mais de 65 anos em Portugal duplicou em relação aos anos 1970 e é hoje superior a dois milhões, tendo a população com mais de 80 anos aumentado cinco vezes". Sublinha a demência associada ao envelhecimento, "porque a incidência e a prevalência da demência global, e da doença de Alzheimer em particular, quase duplica por cada cinco anos após a sexta década da vida". Mas enfatiza a forma como a velhice tem sido olhada, como um período único da vida da pessoa, o que está a mudar. "O aumento da longevidade levou à sua estratificação por três estádios (jovem idoso, velho-velho e muito velho), cada um dos quais com os seus desafios sobre a pessoa e que se traduzem em mudanças no papel e nas exigências contextuais, tanto na sociedade como na família, e que no fundo obrigam o "eu" a um labor interno permanente".