A vantagem do Alentejo. "Não se vê ninguém na rua. Parece que estamos num monte"
Em plena pandemia, Cuba - uma vila do Baixo Alentejo, que fica a 19 km de Beja - está como em hora de calor tórrido no verão: deserta. Não se encontram pessoas nem no largo principal, onde se localiza o tribunal, cafés, uma agência bancária e uma estátua que homenageia o navegador Cristóvão Colombo, que os cubenses reivindicam como filho da terra, embora a história o conheça como italiano. "Não se vê ninguém na rua. Parece que estamos num monte", estranha Maria de Jesus Isaías, 80 anos, que toda a vida percorreu estas mesmas ruas.
Está também fechada em casa, sozinha. O marido já morreu e os filhos têm a sua vida. O mais novo e a neta eram presença diária à mesa para o almoço, mas agora as regras obrigam à distância e cada um fica na sua casa. Maria de Jesus ainda faz o almoço para todos, mas não se juntam. É assim que ocupa o tempo: cozinha, põe a casa em ordem, faz a sua renda e vê televisão. À rua só sai para ir à farmácia e ao minimercado "comprar pão e fazer algum recado". Se o saco traz mais peso levam-lho a casa, se não trata do assunto.
As vizinhas de sempre e as amigas com quem dá dois dedos de conversa ou a sua voltinha à tarde não vê "desde que a doença anda aí". "É muito triste estarmos afastados uns dos outros. A minha Maria [filha que vive perto do Barreiro] nem sequer pôde vir cá passar a Páscoa. Sente-se mais saudades", lamenta.
Cuba tem 4 628 habitantes, 22,3% com 65 ou mais anos, segundo dados de 2018 da Pordata. Sede de concelho, não integra a lista de municípios da Direção-Geral da Saúde (DGS) que só nomeia as localidades com pelo menos três casos de covid-19. Abaixo deste valor, a informação não é divulgada por uma questão de proteção da privacidade dos infetados. Maria de Jesus Isaías garante: "só temos cá uma pessoa com essa doença", um cidadão que foi fazer hemodiálise a Beja, onde há nove casos de covid-19, esta segunda-feira.
É uma das principais cidades do Alentejo, em conjunto com Évora (17 casos), Portalegre (6) ou Elvas (7). Embora fiquem aquém dos ajuntamentos dos grandes centros urbanos, são algumas das localidades alentejanas onde há mais notificações da infeção pelo novo coronavírus, sem ser Moura (com 28 casos, onde foi encontrado um foco de transmissão numa comunidade cigana). No total, o Alentejo tem 161 doentes com covid-19 dos 20 863 infetados do país, segundo os dados da Direção-Geral da Saúde, atualizados esta segunda-feira. É a região de Portugal continental com menos casos e a única que não regista nenhuma vitimas mortal das 735 mortes do país. Fora do continente, na Madeira também ainda não há óbitos.
Embora não exista nenhuma explicação cientifica para o facto, há indicadores que podem ajudar a perceber estes números. Esta é a segunda região do país com menos densidade populacional. Nas aldeias, vilas e cidades alentejanas vivem apenas 705 478 dos dez milhões de portugueses, de acordo com os dados da Pordata, relativos a 2018. Só no Algarve vivem menos pessoas, mas há uma grande sazonalidade.
No Alentejo, em qualquer altura é possível percorrer vários quilómetros pela planície sem se ver vivalma. Longos campos ajudam a isolar aldeias e pessoas. O que, até agora, parece ter-se tornado numa vantagem no combate ao novo coronavírus. Também um menor número de viagens ao estrangeiro ou até mesmo a outros territórios nacionais onde existe contágio local pode ser um fator essencial para não haver muitas cadeias de transmissão ativas.
"Na origem disto, acho que há três fatores: o isolamento social, a baixa densidade populacional e a menor mobilidade. É uma região do país onde a pirâmide etária é composta por pessoas mais idosas, há menos mobilidade e contacto social e de facto as cadeias de transmissão não tiveram um impacto tão grande", explica Nuno Sousa, presidente da faculdade de Medicina da Universidade do Minho. "Sendo que o rácio de infetados é menor quando comparado com a quantidade de pessoas que vivem no Alentejo. No entanto, não haver mortos é algo que nos deve deixar muitíssimo felizes, mas provavelmente reflete estes três fatores", acrescenta.
Maria de Jesus Isaías não fica descansada só com a ausência de mortes. Mostra-se interessada em saber como é que foi a evolução do número de infetados nacionais e no Alentejo hoje. Está atenta e discute as notícias. Ouviu na televisão que a China já quase não reportava casos, mas que os Estados Unidos investigam um laboratório biológico em Wuhan - a cidade onde surgiu o surto no final do ano passado. Foi também pela televisão que lhe disseram que tinha de ficar em casa. E Maria Jesus aceitou, com tristeza, mas aceitou. Tem as mãos calejadas da dureza da vida, dos tempos de trabalho de sol a sol na agricultura, da fome que passou, "moça de alimento", só com direito a "uma concha de caldo e um quarto de papo-seco".
"Quando nasci era a fome. Vivi da agricultura, trabalhei na apanha da azeitona, ceifa, milho. Quando chovia não ganhávamos e fazíamos na mesma uma caminhada que era um disparate. Acabou o campo, mas agora é capaz de começar de novo. Quando isto acabar vem a fome", antevê.
A pouco quilómetros e no mesmo distrito de Beja, no município da Vidigueira - onde vivem 5 521 pessoas (23,1% com mais de 65 anos) - também não há ninguém na rua. A própria Câmara Municipal disso se certifica. Desde que a pandemia chegou a Portugal, no início de março, acionaram o plano de emergência local, colocando no terreno as autoridades de saúde e apelando ao isolamento social.
Higienizaram os espaços públicos, distribuíram equipamento de proteção individual não só aos funcionários da autarquia como aos restaurante que mantêm atividade aberta através de take away e criaram um programa ("Estamos cá por si") para dar apoio aos mais velhos, incentivando-os a não sair de casa. Fazem as compras, aviam as receitas na farmácia e mantém uma linha de apoio aberta para ouvir a população. "Isto é especialmente para as pessoas mais idosas, que com o fecho da universidade sénior e dos centros de convívio não podemos deixar sós", diz Rui Raposo, presidente da Câmara Municipal da Vidigueira.
Através do contacto que mantêm com as pessoas perceberam que 15 idosos estavam preocupados com a forma como iriam receber as suas reformas, quando há localidades no município que nem sequer têm um multibanco. "Alugou-se um autocarro de 50 lugares para respeitar as normas de segurança. Fomos recolhendo todos. Parou na sede do concelho, junto de uma das instituições bancárias, e foram levantar a reforma, depois foram levados para casa", conta o autarca.
Rui Raposo acredita que "a menor densidade populacional e o distanciamento social podem ser as razões [para ainda não haver nenhum caso de covid-19 na Vidigueira]. Depois também há o acatar das normas e o trabalho de prevenção que os municípios têm feito junto da população, mas sabemos que de um momento para o outro tudo pode mudar", refere. Por isso, promete não baixar os braços.