A pandemia do novo coronavírus trouxe consigo outra dimensão para além da sanitária: a limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que se veem obrigados ao cumprimento de regras que, no mínimo, beliscam a Constituição. A obrigatoriedade do uso de máscara é a face mais visível dessa contestação, com o crescimento de movimentos em vários países, como Espanha, França, Alemanha, Reino Unido ou, no outro lado do Atlântico, Brasil e EUA..Por cá, ainda não ganhou a visibilidade dos movimentos que levam centenas de cara descoberta à rua, mas até quem não integra os críticos faz a pergunta: "E se eu me recusar a usar a máscara?" Outras questões no âmbito dos direitos se levantam: e se a vacina contra a covid-19 se tornar obrigatória, posso negar-me a tomá-la? Onde fica o meu direito de resistência? A defesa da saúde pública justifica as medidas?.A inconstitucionalidade de algumas medidas começou a ser apontada ainda durante o estado de emergência - que vigorou em Portugal de 18 de março a 2 de maio -, nomeadamente quanto à obrigatoriedade de confinamento de maiores de 70 anos e de doentes crónicos e ao internamento compulsivo. Desde essa data, o país já passou pelos estados de calamidade, contingência e alerta - chegou a haver três velocidades para diferentes regiões, devido ao elevado número de casos em Lisboa - e regressou na passada terça-feira ao estado de contingência. Mantém-se a proibição dos ajuntamentos superiores a dez pessoas, a limitação de manifestação e do culto religioso. Afinal, onde param os direitos dos portugueses quando são impostas as medidas que visam combater o vírus que já infetou 67 176 pessoas e levou à morte de 1894? Um número que o Presidente e primeiro-ministro admitiram ontem que pode aumentar e passar os mil casos diários.."As liberdades estão a ser limitadas por uma razão com muito peso, que é a saúde pública, numa situação de emergência. Não me parece que o que tem acontecido em geral signifique qualquer violação das liberdades. Há uma limitação, sim, mas justificada e relativamente adequada, proporcional ao bem que se procura prosseguir", considera o professor de Direito Constitucional Jorge Reis Novais..Citaçãocitacao"Não há direitos ilimitados. Há razões de interesse público, de bem comum da coletividade, que justificam a limitação dos direitos.".O constitucionalista Paulo Otero admite que "os direitos constitucionais são beliscados". Mas alerta: "É uma falsa ideia difundida nas últimas décadas que os direitos são ilimitados e só há direitos. Cada direito tem sempre deveres. Em relação aos outros cidadãos, eu tenho a minha liberdade, mas a minha liberdade termina quando está em causa a liberdade dos outros.".Para Reis Novais, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, há duas questões a ter em conta: o ponto de vista material que, em seu entender, não dá lugar a qualquer censura, e o ponto de vista formal, jurídico. E aqui, sim, aponta falhas. "O que pode ser questionável é a forma como as medidas têm sido aprovadas e levadas à prática. Aí é que já podemos fazer críticas, e começámos logo desde o estado de emergência. Não são as medidas que estão em causa, mas a forma como foram tomadas.".Citaçãocitacao"Quando se começa a desconsiderar a lei ou a Constituição surge a possibilidade de abusos.".Para um leigo, pode parecer apenas uma questão de pormenor. Mas não é. "Quando se começa a desconsiderar a lei ou a Constituição surge a possibilidade de abusos, que foi o que aconteceu na Madeira e nos Açores. Casos de abuso sério, em que tínhamos autoridades administrativas regionais a impor a detenção de pessoas que não estavam doentes durante 14 dias num quarto de hotel vigiados pela polícia. É inadmissível. Isto foi possível porque se desvalorizou o aspeto da necessidade de respeito à lei e à Constituição. Diz-se que não é o mais importante, e é verdade que as questões da saúde são agora o mais importante, mas pode-se fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Felizmente que o Tribunal Constitucional disse como é que as coisas deviam ter sido feitas.".Nos Açores assistiu-se ao caso, no mínimo caricato, de um piloto, com teste à covid negativo, residente em São Miguel que, ao voltar de uma viagem de trabalho - e por se recusar a assinar um documento a declarar que o incumprimento de quarentena o fazia incorrer em crime de desobediência -, foi escoltado pela polícia até um hotel. Foi libertado depois de interpor um pedido de habeas corpus. O Ministério Público recorreu, mas o Tribunal Constitucional (TC) considerou que "todas as normas disciplinadoras de um direito, liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República", exigência que "ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito"..Reis Novais entende que ao fim de seis meses - e não se sabendo quantos mais tempo vai durar esta situação - havia necessidade de adaptar a legislação. "Se precisamos de limitar continuamente os direitos e as liberdades das pessoas, deve haver leis que prevejam as condições em que isso pode ser feito. Houve uma certa desconsideração deste problema por parte do Governo e da Assembleia da República. O que é curioso, sendo o Presidente da República e o primeiro-ministro juristas, desvalorizam muito o aspeto formal", diz, acrescentando que preferiram "o show off das reuniões do Infarmed"..Paulo Otero lembra, a propósito, a questão da igualdade levantada a seguir ao estado de emergência que determinava o confinamento dos maiores de 70 anos e de doentes crónicos. "Esta decisão veio por decreto, e a meu ver isto exigia intervenção parlamentar porque é matéria sobre direitos, liberdades e garantias que só pode ser alterada por lei do Parlamento ou por decreto-lei autorizado. O problema que está em causa é saber se a necessidade em si é uma fonte autónoma de direito. Penso que mais tarde ou mais cedo o TC vai ser chamado a decidir sobre tudo isto, até porque, no limite, há interesses económicos que estão em causa.".Um Estado pode impor aos cidadãos a forma como respira? Pode obrigar a usar uma máscara? Em nome de um interesse maior, a saúde pública, sim. E se o cidadão se recusar, onde fica o seu direito de resistência? Volta a questão da hierarquia das leis - a obrigatoriedade de usar máscara em espaços fechados e nos transportes públicos (neste caso há coimas para incumpridores) foi feita por decreto-lei. "Devia haver uma lei que autorizasse essa imposição, devia estar na lei sobre vigilância em saúde pública ou na Lei de Base da Saúde. Não quer dizer que seja claramente inconstitucional, mas pode-se suscitar dúvidas", alerta o constitucionalista Reis Novais..Mas pode-se recusar a usá-la? Poder, pode, e por isso é que Reis Novais defende o cumprimento da escadaria legislativa, ou seja, uma lei que preveja sanções. A Constituição contempla o direito à resistência, no caso de violação dos direitos, liberdades e garantias, mas esse argumento "só pode ser utilizado nas situações extremas em que não há dúvida nenhuma de que a autoridade não tem aquele poder, ou está a abusar". Neste tipo de situações, entende que se a autoridade manda colocar a máscara, a pessoa deve fazê-lo e, na dúvida, reagir judicialmente. No limite, pode-se ser detido, mas aí o crime em causa passa a ser o de desobediência às autoridades, acrescenta Paulo Otero..A obrigatoriedade das máscaras já originou quase três dezenas de comunicações à Provedoria de Justiça. Por diferentes razões: inicialmente, pela sua não obrigatoriedade em espaços públicos; mais tarde, pela alegada exiguidade de oferta de máscaras ou devido aos preços para a população, profissionais de saúde e de outros cuidadores e pela falta de fiscalização nos transportes púbicos..Foram ainda recebidas queixas que levaram à abertura de processos instrutórios, relativas ao uso obrigatório de máscara na Madeira. "Na resposta enviada aos queixosos, sustenta-se que, no atual contexto, em que o conhecimento científico sobre a doença, designadamente sobre as respetivas vias de propagação, não está estabilizado, é discutível que se possa considerar, nos precisos termos em que a questão nos foi posta, que o não uso de máscara seja uma liberdade fundamental constitucionalmente protegida; em contrapartida, é indiscutível que o direito em causa é o direito à saúde, que urge proteger, o que implica deveres de comportamento pessoal em benefício da saúde individual e coletiva, os quais podem envolver condicionalismos que se assume serem temporários", refere a Provedoria de Justiça..A esperança para travar a covid-19, que continua a escalar em todo o mundo - o SARS-CoV-2 já infetou mais de 30 milhões de pessoas e fez mais de 952 mil mortos -, está depositada numa vacina, o que poderá levantar também questões de inconstitucionalidade se o Governo decidir pela sua obrigatoriedade. "Porque tem a ver com o respeito pela integridade física das pessoas. Há algum tempo, discutiu-se se pais podem ou não recusar a vacinação dos filhos. Eu admito que em relação aos menores um tribunal possa suprir a recusa dos pais porque o critério é o do superior interesse da criança, mas tenho grandes dúvidas de que se eu não quiser tomar a vacina alguém ma possa impor. Até porque, em termos científicos, o que sabemos é que há efeitos colaterais, efeitos reflexos, sem que se sabia a totalidade da sua amplitude, até porque os ensaios normalmente englobam anos de testes", considera Paulo Otero..Reis Novais também considera a vacina obrigatória uma questão complexa. "Por um lado há a questão da eficiência e da razoabilidade de uma determinação destas - tem muito a ver com a eficácia da vacina, se é uma necessidade ou não perante uma situação concreta. Chegar-se à conclusão de que a única forma de parar a pandemia era impor a vacinação a todas as pessoas era admissível. Se o benefício que for alcançado não for tão importante, já é duvidoso.".E mais uma vez chama a atenção para a necessidade de se prevenir juridicamente. "Prever a necessidade de ter de se impor a vacinação obrigatória é uma ajuda. Nesta altura, em Portugal não se pode impor vacinação obrigatória. Imagine-se que é necessário impor a vacina, vai-se fazer isso sem existir lei? Não pode ser, é uma violação dos direitos das pessoas."