É um dos segredos mais bem guardados da educação e uma das maiores preocupações partilhadas entre pais de alunos que entram no 1.º ano de escolaridade: como aprender e ensinar a ler? Na Europa, 19% dos jovens com 15 anos revelam dificuldades na leitura a nível mais básico. Já em Portugal, apesar de menor, este número fixa-se nos 17,2%. Johannes Ziegler, 52 anos, um reconhecido neurocientista francês, acredita que (quase) tudo pode ser solucionado com a ciência. Por isso, dedicou a sua carreira a estudar este tema, sobre o qual já tem dezenas de publicações..É membro do Conselho Científico de Educação Nacional de França, diretor do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS) francês, mas também do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Aix-Marselha. Atualmente, foca o seu dia-a-dia numa investigação sobre a eficácia do digital como ferramenta de ensino na escola primária. Mas terá tempo para dar um pulo até Portugal. Esta quarta-feira, a partir das 15.00, será orador da conferência "Como aprende o cérebro? O papel das ciências cognitivas na educação", promovida pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, no Auditório do Liceu Camões, em Lisboa. O DN esteve à conversa com o investigador..Há uma discrepância entre os resultados práticos da educação e o avanço do conhecimento científico, cada vez mais capaz de nos fazer entender os caminhos do cérebro e como chegar ao sucesso escolar. O que explica este cenário? As explicações podem ser várias, na verdade. A primeira é que leva tempo até o conhecimento científico se disseminar. Há sim uma enorme lacuna entre este conhecimento e a prática educacional. Por exemplo, os cientistas conhecem os melhores determinantes para a fluência e compreensão da leitura, mas os professores precisam de saber como é que estes determinantes podem ser ensinados aos seus alunos de forma eficiente. Há um problema de falta de preparação na transferência de conhecimento científico para a prática em sala de aula. Alguns países são muito bons nisto, mas outros não..O que é que a experiência lhe tem dito: os professores estão cada vez mais ou menos adaptados ao conhecimento que as ciências cognitivas têm provado sobre o cérebro humano? Não acho que estejam cada vez menos adaptados, porque têm aprendido muito com a neurociência da educação, sobre o processo de aprendizagem, a atenção, a memória, etc. Mas, atualmente, há muito pouca preparação de professores para algumas destas questões. É preciso compreender, por exemplo, que o cérebro está a mudar drasticamente durante a adolescência, que pode ser também o início de muitos distúrbios psiquiátricos, como depressão ou esquizofrenia..Não é compreensível que hoje, com as ferramentas cognitivas que temos, não as utilizemos para exercer educação... Definitivamente que não. Estamos num ponto de viragem histórico. Antes, a educação estava exclusivamente nas mãos dos departamentos de formação de professores e ciências da educação. Agora, sabemos que a aprendizagem é complexa e acontece num contexto social complexo. Há muito a aprender com outras disciplinas: psicologia social (comparações sociais, atitudes, estereótipos), metacognição (autoeficácia, aprender a aprender, pensamento positivo), psicologia cognitiva (aprendizagem, memória, atenção, personificação), psicolinguística e linguística (linguagem, compreensão, gramática, leitura, aprendizagem de segunda língua), sociologia e economia (desigualdade, pobreza), neurociência (plasticidade, conectividade, oscilações, ciclos circadianos, recompensa, feedback), ciência da computação (ferramentas educacionais, big data), filosofia (pensamento crítico, raciocínio), matemática (como tornar a matemática concreta e incorporada). Seria um erro enorme voltar atrás nessas fabulosas fontes de conhecimento sobre o cérebro..Dedicou-se a esta ciência toda a vida, mas particularmente ao estudo de como é que as crianças aprendem a ler. Qual o papel da psicologia cognitiva neste campo? Graças à ciência cognitiva da leitura, agora sabemos os ingredientes cognitivos e linguísticos exatos, sabemos como o processo funciona, na medida em que podemos programar um modelo de simulação que aprende como uma criança. Aprender a ler e a ensinar a ler já não é uma questão de opinião, tornou-se uma ciência difícil. Conhecemos o mecanismo do processo, assim como compreendemos como funciona o motor de um carro. Também entendemos muito melhor o que pode correr mal. Podemos simular num computador dificuldades de leitura específicas e possíveis resultados de intervenção. Graças à neurociência, conhecemos agora os substratos neurais destes processos, sabemos onde ocorre a aprendizagem no cérebro, quais as regiões que estão envolvidas, a rede neural, a importância dos fatores genéticos e do ambiente..Em Portugal, as aulas já se iniciaram há mais de dois meses. Aprender e ensinar a ler é, nesta altura, uma preocupação de muitos pais com os filhos que entraram no 1.º ano de escolaridade. A partir de quando é legítimo que estejam realmente preocupados com possíveis dificuldades? Os pais e professores devem estar sempre atentos e solidários desde o início. Se uma criança tiver problemas para aprender as letras e a forma como soam, não há necessidade de esperar até que a criança acumule um atraso de leitura que seja suficientemente importante para qualificá-la como disléxica. A criança precisa de treino adicional (que deve ser sistemático e intenso) antes de ficar para trás. E atenção, que isto não significa já que essa criança é disléxica. Significa apenas que precisa de ajuda adicional..Então, como é que os pais e professores devem responder na prática? É fundamental que os pais ofereçam oportunidades de leitura, principalmente compartilhada, para estimular o interesse nos livros. Os professores precisam de garantir um bom ensino e um bom apoio. Se o atraso da criança for superior a dois anos (uma criança lê no 3.º ano como uma do 1.º ano), os pais e os professores devem preocupar-se em dar apoio adicional, começando por um diagnóstico formal. E, mesmo com um diagnóstico formal, a melhor estratégia continua a ser a intervenção intensiva da escola. Não há soluções mágicas..As tecnologias podem ser um amigo ou inimigo desta aprendizagem? Porque falamos frequentemente sobre a importância de uma escola adaptada aos novos tempos, onde os alunos têm acesso a computadores e até a tablets, mas há estudos que afirmam que a compreensão de textos impressos é superior à compreensão de textos equivalentes no suporte digital. Vou dar um exemplo muito simples: a Ordem da Fénix, da saga de Harry Potter, contém 257 mil palavras. Uma criança que é capaz de ler este livro num fim de semana terá um quarto de milhão de oportunidades de aprendizagem, supervisionada, em que o significado do que é lido à criança é descodificado corretamente. Isto é chamado de "autoensino". Nenhum professor e nenhum tablet podem fazer melhor do que isto..Mas algumas crianças não têm esta iniciativa nem são estimuladas para ela....Exato. O problema é que algumas crianças não chegam lá, não entram no ciclo de autoaprendizagem, em que a leitura fortalece a aprendizagem. Para estas crianças que lutam para aprender as letras e os seus sons, o software educacional pode ser benéfico porque um tablet pode adaptar-se ao nível da criança e apresentar letras e sons milhares de vezes num ambiente lúdico. Além disso, crianças com problemas visuais podem beneficiar do espaçamento extra das letras nos e-books..Então, o sucesso da educação passa por caminhar lado a lado com a ciência....O sucesso educacional não vem apenas da psicologia cognitiva, mas seria uma loucura não usar esta base do conhecimento assente em evidências. Sabemos muito sobre a atenção, a memória e a aprendizagem das nossas crianças. Os custos da inação seriam tremendos.