A tradução dos livros de Haruki Murakami para a língua portuguesa mantém uma regularidade impressionante por parte da editora nacional que o publica, a Casa das Letras, e não será por acaso, afinal o escritor japonês tem um alargado grupo de fiéis leitores no nosso país que aguardam por cada novo romance ou edição de títulos anteriores. Mesmo que nos últimos tempos tenha chegado a Portugal alguma "concorrência" de autores da literatura japonesa como Hiromi Kawakami e Toshikazu Kawaguchi, que no caso do segundo andou pela tabela dos mais vendidos várias semanas, Murakami é o único representante daquela literatura a ter sucesso garantido. Ou seja, tornou-se um "clássico" para os portugueses desde que foi por cá lançado um seu primeiro livro, Norwegian Wood (o quinto do autor), um dos melhores trabalhos de Murakami e no qual estão presentes as grandes linhas da sua escrita futura..Chega agora às livrarias a mais recente coletânea de contos, intitulada Primeira Pessoa do Singular, uma recolha de oito histórias narradas no tempo verbal que o título refere. Sete dos textos foram publicados em revistas, entre as quais a japonesa Bungakukai e as ocidentais Granta e The New Yorker, enquanto a que faz o título é inédita. Pode dizer-se que o volume não defrauda os leitores, pelo contrário a sua leitura torna-se sucessivamente apaixonante devido à forma com que Murakami aborda cada uma das histórias..Não reinventa o seu estilo, mas cada uma destas histórias traz a possibilidade de os leitores regressarem a vários momentos da atmosfera dos romances do autor, mesmo que não seja essa apenas a intenção. Há em cada um deles a capacidade de acrescentar uma impressão emocional inesperada, pois qualquer um dos oito contos transforma-se numa narrativa marcante por ter uma abordagem nem sempre aguardada e ao mesmo tempo dentro do universo a que Murakami nunca fugiu..O estilo destas pequenas histórias quebra muitas vezes a fronteira do que poderia ser apenas ficção com o integrar da realidade pelas entrelinhas e raramente foge ao registo de que Murakami nos acostumou, o do narrador envolto em pensamentos sobre o passado. É o que se verifica no quarto conto, With The Beatles (de que se faz a pré-publicação de um excerto mais abaixo), onde o protagonista reflete sobre a estranheza que sente com o envelhecer. Está definido o narrador da maior parte das histórias, um homem de meia-idade, que reflete sobre o passado e as memórias de outros tempos. Sendo o protagonista masculino, contrapõe quase sempre personagens femininas para erguer o edifício narrativo e revê-se através delas..Citaçãocitacao"Não reinventa o seu estilo, mas cada uma destas histórias traz a possibilidade de os leitores regressarem a vários momentos da atmosfera dos romances do autor.".Uma das grandes componentes da tonalidade deste volume é a influência da música que sempre acompanhou o narrador. Daí que alguns dos textos sejam eminentemente sobre bandas e as canções que ajudam a fixar o passado em fotogramas sonoros ou visuais que se mantêm na memória, que provocam uma constante recordação como se pode ver no conto atrás referido: "O que me chamou mais a atenção foi a figura de uma rapariga a segurar o álbum deles como se fosse algo inestimável. Se não tivesse vislumbrado essa capa dos Beatles, talvez o meu fascínio não fosse tão vívido. Havia a música, com certeza. Mas havia algo mais, algo muito maior, além da música. Essa cena ficou imediatamente gravada no meu coração - uma espécie de paisagem espiritual que só poderia ser encontrada ali, naquela idade, naquele lugar e naquele determinado momento no tempo.".A pop dos Beatles é apenas um fragmento de um grande quadro onde o jazz é dominante, como é o caso do texto Charlie Parker Plays Bossa Nova, que, usando um embrião não tão original assim - o de sonhar com um disco que nunca existiu senão em sonhos -, acaba por se tornar diferente do que já se pode ter lido noutros autores. Será um dos contos em que a autobiografia musical entra com mais força e que confirma esse regresso a referências de romances seus, que criam uma cumplicidade com o leitor..Não faltam os lapsos de tempo e deformações da realidade que criam uma espécie de universos paralelos, como é o caso do conto Confissões de Um Macaco de Shinagawa, onde a música volta à pauta. Desta vez é o compositor Anton Bruckner e as suas sinfonias, muito apreciadas pelo símio que bate à porta dos aposentos do narrador e conversa com ele. Uma história em que a tríade de obsessões de Murakami se revela em pleno: a música, o irreal e o sexo. Schumann aparecerá também em Carnaval..A ligação umbilical da escrita de Murakami ao próprio Murakami não ficaria completa se não incluísse o basebol num dos textos; Antologia Poética para os Yakult Swallows é esse relato de um protagonista que em 1968 se junta à base de adeptos fiéis de uma equipa de basebol sem grande préstimo, em que os seus jogadores iam a pé para o estádio quase sempre vazio, e que dez anos depois conquistam o campeonato da Liga Principal. O protagonista do texto é, claro, o próprio autor, que desfia uma imensidão de paixões e pormenores da sua vida, bem como reproduz vários poemas escritos sobre tal amor desportivo num livrinho editado há muito tempo e a expensas próprias..Uma das perguntas que esta coletânea deixa no ar é a de que até que ponto os protagonistas destes contos mais não são do que uma inspiração autobiográfica na sua maior parte? Nada que incomode o leitor, porque vê-lo ao espelho em várias páginas não obstrui a fluidez da leitura nem impede a entrada no(s) universo(s) murakamiano(s) relatados em Primeira Pessoa do Singular. Aliás, quem ler a biografia de Murakami reparará numa frase: "Em 1978, Murakami estava no estádio Jingu a ver um jogo de basebol entre os Yakult Swallows e os Hiroshima Carp. Ao ver a prestação de um Americano, subitamente compreendeu que seria capaz de escrever um romance. Foi para casa e começou nessa mesma noite a escrever." Não será por acaso que na sua mesa de trabalho está um boneco de Yasuhiro "Ryan" Ogawa - o Americano -, um dos mitos do basebol japonês..Haruki Murakami.Editora Casa das Letras.173 páginas.With the Beatles."A estranheza que sinto ao envelhecer não tem que ver comigo, nem com a minha pessoa, que outrora foi jovem e, em menos de um fósforo, passou a fazer parte da população sénior. O que mais me surpreende é que eu e outros que tais, os da minha geração, somos agora pessoas idosas. Em especial, aquelas miúdas bonitas e vivaças que cresceram comigo e que agora terão um par de netos. São pensamentos desconcertantes - tristes, até. Contudo, no que toca ao meu caso concreto, é raro sentir-me triste..E se me sinto triste ao constatar que essas raparigas envelheceram, é por ter de admitir a mim mesmo que aqueles sonhos de juventude que cheguei a ter prescreveram entretanto. Acho que, de certa forma, a morte de um sonho pode ser mais dolorosa do que a morte de uma pessoa. Chega a provocar uma sensação de injustiça..Havia uma rapariga em particular, uma mulher que um dia foi jovem. Lembro-me bem dela. Desconheço o seu nome ou o seu paradeiro. Só sei que andámos na mesma escola secundária, havemos de ter a mesma idade (usávamos um crachá ao peito da mesma cor) e suspeito que tivesse um grande apreço pelas canções dos Beatles. Tirando isso, não sei mais nada..O acontecimento que quero partilhar convosco deu-se no ano de 1964, precisamente quando um furacão chamado Beatles varria o mundo inteiro. Era o início do outono, o novo período escolar estava lançado e os nossos dias entravam naquele ritmo. Ela ia lançada pelo corredor da escola, pernas para que vos quero, a saia do uniforme esvoaçando. Corria como se tivesse pressa de chegar. Passámos um pelo outro no corredor longo e sombrio do velho liceu. Não havia mais ninguém para além de nós os dois. Segurava junto ao peito um disco de vinil, como se fosse o seu bem mais precioso. O LP With the Beatles. A capa mostrava a inesquecível fotografia a preto-e-branco dos quatro membros da banda. Na altura, ficou-me na memória que esse vinil não se tratava nem da edição americana nem da edição japonesa, mas sim da original britânica. Por qualquer razão, essa informação ficou-me registada na memória..Era uma rapariga bonita. Aos meus olhos de então, pelo menos, era dona de uma beleza extraordinária. Não era muito alta, tinha cabelo preto e comprido, pernas magras, e emanava um cheiro maravilhoso (ou terá sido impressão minha e ela não cheirava a absolutamente nada; de qualquer modo, foi essa a imagem que retive - como se, ao passar por mim, tivesse deixado um rasto de perfume). Fiquei deslumbrado com aquela rapariga, que segurava o LP With the Beatles junto ao peito e cujo nome eu nunca soube..O coração batia-me com toda a força e era-me custoso respirar. Só ouvia o toque de entrada muito ao longe, na profundidade, num recanto dos meus ouvidos, como se estivesse no fundo de uma piscina, ou como se alguém tentasse desesperadamente transmitir-me uma mensagem importante. Foi coisa para durar uns dez ou quinze segundos. Começara rápido demais e terminara antes de eu dar por isso. A tal mensagem importante desapareceu no centro do labirinto, como se estivesse num sonho. Ou como a maioria das coisas importantes na vida....O corredor sombrio da escola, a rapariga bonita, a saia a dar a dar e, claro, o With the Beatles..Foi a única vez que a vi. Nem por uma vez voltámos a cruzar-nos desde esse dia até eu terminar a escola, dois anos depois. O que não deixa de ser estranho. Estamos a falar de uma escola pública, consideravelmente grande, situada no cimo de uma montanha em Kōbe. Só no primeiro ano devia haver uns seiscentos e cinquenta estudantes (estamos a falar da geração baby-boom, por isso era normal sermos muitos.). Portanto, nem toda a gente se conhecia, e de muitos não se sabia o nome nem os conhecíamos de vista. No entanto, é absurdo pensar que, mesmo tendo ido à escola quase todos os dias, percorrido aqueles corredores constantemente, ainda assim, nunca mais tenha visto uma rapariga tão bonita. Sempre que percorria aquele corredor, abria bem os olhos, não fosse ela materializar-se..Ter-se-ia evaporado? Ou teria eu andado a imaginar coisas naquela tarde de outono? Talvez tivesse exagerado na avaliação da sua beleza naquele corredor escuro e ser-me-ia impossível reconhecê-la se a visse novamente? (Das três hipóteses, palpita-me que a última é a mais provável.)".Arqueologia literária para descobrir a vida e obra de Stephen Crane.Em duas aventuras literárias seguidas, o escritor norte-americano Paul Auster escreveu dois calhamaços. Se o anterior era um romance, 4321, o recentemente lançado é uma investigação gigantesca sobre um escritor do século XIX, que morreu cedo e deixou obra considerada por Auster como fundamental para se compreender os Estados Unidos, a sua história e o seu povo, e a capacidade da literatura para descrever ambos..Stephen Crane viveu pouco, quase três décadas entre 1871 e 1900, facto que não impede Auster de escrever essas impensáveis centenas de páginas e de "descascar" a biografia dele, bem como de analisar a sua obra ao microscópio. Quase que se pode dizer que o investigador se revê no seu antepassado escritor e repórter e se sente obrigado em deslindar em todos os detalhes possíveis uma vida literária. O relato não está assim tão longe dos protagonistas que Auster talhou em muitos dos romances que escreveu sobre a mesma América cem anos depois, mas não existe em Um Homem em Chamas a presença do romancista como ficcionista, antes a de um biógrafo insistente em cada segundo da vida do seu biografado..O que resulta é um livro impressivo, com uma intensa análise dos escritos de Crane para explicar o autor e a escrita, que seduz qualquer bom leitor. Escreve-se numa das badanas que é "a biografia dramática de um escritor brilhante como só outro mestre literário poderia contá-la". A mais pura das verdades!.Paul Auster.ASA Edições.860 páginas.Diagnóstico exaustivo sobre os efeitos de uma herança familiar.A editora Livros do Brasil acrescentou o selo "contemporânea" ao seu perfil e começou a publicar títulos atuais. Herança é um dos mais recentes e revela a autora norueguesa Vigdis Hjorth e um romance que, refere-se, "dividiu uma família e cativou um país". Poderia ser apenas marketing, mas a sua leitura demonstra que é um subtítulo apropriado ao que a obra contém nas suas páginas..Herança é a história de uma família de quatro filhos que ao conhecerem o testamento feito em vida pelos pais não resiste à parcialidade para com dois deles e vê iniciar-se um conflito por parte dos que se ressentem pela divisão pouco correta. A narrativa é assegurada por uma das prejudicadas, que vai conduzindo toda a trama pelo seu olhar, ao que acrescenta a contestação do irmão. Em paralelo, as duas irmãs beneficiadas tentam inverter a crítica ao testamento, situação que vai mostrando ao leitor as razões pela quais os pais decidiram a seu favor, enquanto os afastados da herança de duas casas de férias aumentam o conflito..Se o tema não é novo, a forma como a autora o descreve torna-se empolgante e motiva o leitor a querer descobrir onde a questão irá parar, abrindo em simultâneo as portas para se entender até que ponto é confuso e difícil o mundo mais íntimo das famílias. O truque do romance está na escrita, através da qual a escritora norueguesa manipula a curiosidade de quem se deu ao trabalho de o abrir e ler..Vigdis Hjorth.Editora Livros do Brasil.341 páginas