O ponto de encontro para a entrevista com Fernando Tordo poderia ter uma mensagem subliminar: um hotel com vista para as colinas de Lisboa. Cidade que cantou e escreveu tantas vezes. Mas a conversa foi outra, o cantor, de 73 anos, falou da canção cantada em português, do Festival da Eurovisão, do que o fez ir viver para o Brasil quatro anos e também da experiência dos 28 dias internado com covid-19. E que não lhe tolheu a voz que hoje, 28 de maio, vai ser usada num concerto onde canta e explica as "cantigas" que fez com Ary dos Santos. Esteve 28 dias internado com covid-19. Como foram esses dias no hospital? Teve medo de morrer? Foi muito violento. Sabia que estava mal mas não sabia que estava tão mal. Senti que havia uma tensão grande nos médicos e enfermeiros que estavam comigo com muitos pedidos de análises, etc. Mas fizeram-me apenas suspeitar de que estavam a trabalhar para resolver a situação, e nunca com a gravidade que sempre, e felizmente, me ocultaram. Os 28 dias foram um fenómeno estranho porque não me lembro desse tempo. Acho teve que ver com a tomada de muita cortisona, em doses grandes provoca estímulos, pelo menos em mim. A partir do momento em que comecei a melhorar, tive uma disponibilidade para fazer muitas coisas e comecei a escrever muito. Para não ser entubado meteram-me uma espécie de uma máscara muito incómoda, muito violenta, uma sensação horrível mas que provavelmente me salvou a vida. Mas não conseguia dormir com aquilo, e por isso só dormi na exaustão, e aproveitei esse tempo para escrever o guião de uma suíte que se vai chamar Suíte das Mulheres de Azul. E enquanto estive internado fui enviando os textos e as ideias aos meus orquestradores. Mas quando cheguei a casa, estava todo speedado, compus tudo. Vai ser interessante porque ainda não revi o que fiz durante os dias em que estive internado. Nunca teve receio, a certa altura, de que a covid afetasse a sua voz? Tive muito medo disso. Um dos primeiros sinais que o vírus dá, e independentemente da respiração alterada, é a voz ficar muito baça. Quando fui para o primeiro ensaio estava cheio de medo, porque não tinha voltado a cantar desde então. E senti-me maravilhosamente, canto desabrigadamente sem esforço e não me canso.. Quando percebeu pelo que tinha passado, ficou chocado? Fiquei chocado porque havia pessoas fora do hospital que sabiam como eu estava, uma delas era a minha mulher, que fez tudo para que tudo continuasse normal. Isso serviu para o meu acréscimo de produtividade, escrevi que nem um louco. Tive uma recuperação muito boa, estava sempre a brincar, acho que ajudou na recuperação. E estava sempre com fome, tocava a campainha às três da manhã porque queria comer, eles foram muito simpáticos comigo. Essas mulheres de azul são as pessoas que o assistiram na estada no hospital... Resultado do facto de ter estado internado num espaço, num quadrado, com incidência de luz solar, com duas boxes transparentes de cada lado, são quartos que não são quartos. E há um quadrado interior cheio de computadores com um técnico por cada doente para o vigiar. Com a observação constante tive a perceção da operacionalização da situação, da rapidez e da consciência como têm de ser feitas as coisas. A pessoa que há quatro minutos estava comigo, entretanto já despiu e vestiu outra farda, sempre em movimento, sem parar. Essas são as mulheres de azul, desde a senhora que limpa o chão até à doutora especializada..Citaçãocitacao"Felizmente a esmagadora maioria dos portugueses não passam por esta experiência grave pela qual passei, mas têm de perceber que há algo ali, nos cuidados intensivos, que nos ultrapassa, e que o nosso dia-a-dia fica ridicularizado. Tudo o que é a guerra política ou desportiva, tudo isso fica desfeito, não existe, é uma lição muito grande.". E em termos sonoros como vai ser? Estou a começar a trabalhar nessa parte, mas creio que é uma coisa que vai ter uma sessão rítmica avançada. Um quarteto de cordas muito bom, vai ter quatro ou cinco metais e teclados. Portanto, tem muito que ver com a minha música, num dia faço algo muito triste noutro muito alegre. Mas tenho a certeza de que vai ser muito interessante e muito explicativa do que é aquela tensão. Aqueles enfermeiros que mantêm uma calma, uma equanimidade, como se nada fosse com eles. É uma coisa fantástica. Felizmente a esmagadora maioria dos portugueses não passam por esta experiência grave pela qual passei, mas têm de perceber que há algo ali, nos cuidados intensivos, que nos ultrapassa, e que o nosso dia-a-dia fica ridicularizado. Tudo o que é a guerra política ou desportiva, tudo isso fica desfeito, não existe, é uma lição muito grande. Apesar dos meus 73 anos fiquei muito sensibilizado. Todo aquele pessoal, dos médicos à senhora da limpeza... aquilo é um grande esforço de equipa e se não for assim deixa de funcionar. É de um cuidado impressionante.. E depois dessa "experiência" já voltou aos palcos. Estava com saudades, certamente... Esta é a minha profissão. Não posso dizer que se não precisasse já tinha deixado de cantar, não tinha. Mas preciso disto, é a minha vida, não tenho outro rendimento. E tinha muita necessidade de recomeçar a cantar para saber como estava. Se chegava ao fim da primeira canção e me dava qualquer coisa ou se aguentava três ou quatro canções... a minha grande surpresa é que aguento 15. E a partir daí já é o público que começa a ficar chateado [risos]. Tinha mesmo grande necessidade de saber como estava. E nesta sexta-feira tem um concerto no Casino Estoril a cantar Ary dos Santos. Sim, é muito divertido porque conto como se fizeram as cantigas. Como foi feito o Cavalo à Solta ou a Estrela da Tarde, que têm sempre uma carga dramática, mas aquilo foi feito a rir, com muitos copos e cigarros pelo meio. Foi feito naquele nosso tempo, um tempo histórico. Cheguei ao 25 de Abril com 26 anos, já não era um miúdo, já tinha ido à tropa e hoje com 73 anos contar isso é muito giro, é um sinal de grande satisfação, não há nada para ocultar. E as pessoas conhecem ou não conhecem, eu recordo o momento como foi e onde foi feito. Sabe que quando se canta uma canção a primeira atenção está na música e a letra só vem com a repetição, por isso no concerto aviso para certas partes das canções. Todas as músicas têm uma história para contar e têm um fundo didático. E a parceria com o Ary dos Santos foi como uma identidade com uma alma gémea, como uma engrenagem bem feita e muito trabalho. Infelizmente, e sublinho o infelizmente, um tipo como eu não tem concorrência em Portugal, estou à vontade para dizer que não há mais ninguém que trabalhe tanto na música como eu.. E tem noção se as pessoas que vão assistir aos seus concertos conhecem essas histórias de outros tempos? No palco fico satisfeito porque sei que há pessoas que ouviram dizer e agora vêm conhecer a verdade de como se fez a cantiga. Há uma necessidade de fazer passar isto porque foi omitido. A minha geração era para ser abatida na década de 1980 e não foi. Porque há uns tipos com talento e que resistiram nos quais eu me incluo. Não era por vontade dos novos donos das rádios e das televisões da altura que eu ia deixar de cantar e fazer música... a prova diária é que cada vez mais são mais precisos cantores e pessoas que façam música. Já o Frank Sinatra se queixava. Quando veio cantar ao Porto disse: "Como já não há compositores de canções vou cantar estas 12 do Cole Porter..." Não trabalho para a capa de uma revista. Não me vê a cantar num programa de televisão há 40 anos. Não vê o Fausto, o Paulo de Carvalho, não os vê em programas de TV. No entanto, todos os dias vemos pessoas a cantar na televisão e nos concursos que fazem para os miúdos irem lá cantar. A utilização da música pelos media é uma coisa tipo iogurte, já está e acabou. A minha geração é feita à base de trabalho e mais trabalho e sem artifícios. Uma capacidade de aguentar e ter confiança no nosso trabalho. E hoje cada vez dá mais gozo gravar em Portugal, porque há milhares de miúdos a tocar maravilhosamente bem. Acabamos por prolongar as nossas carreiras porque a nova geração está à espera de nós, porque os pais e avós lhes contavam. Os miúdos têm muita curiosidade sobre a minha geração. Isso está a acontecer? Deve ser ótimo para si. Sim, está a acontecer a uma escala muito grande e galopante, não é notícia de telejornal, por assim dizer, mas está a acontecer. Alguns têm idade para ser meus netos. Às vezes faço pequenas palestras com orquestras e explico-lhes as razões de certas canções como o Fado de Alcoentre, que relata a fuga de 89 pides da cadeia de Alcoentre, e que foi um êxito na altura. É uma experiência de vida contar isso.. É um homem de festivais da canção, participou em vários. Como viu a última edição do Festival Eurovisão da Canção, que decorreu no passado sábado com a vitória da canção italiana? Está longe de ser um festival com as canções e os intérpretes que gostaria. Mas aconteceram momentos que têm que ver com algum gosto pela música. A canção da Suíça era complexa mas interessante, não era uma canção de sucesso, mas tinha interesse. A canção francesa era interessante. Mas a questão é saber porque continuam a chamar festival da canção àquilo? É esmigalhar essa instituição que é a canção. O que vejo é um grande espetáculo visual, iluminação, de coreografias espetaculares, mas as canções não são só aquilo. E em relação à nossa representação, que é da RTP e não nacional, a canção está dentro da elaborada com cabeça, tronco e membros. Não gosto muito daquele timbre, mas é bem conseguido. O grupo era coeso, apresentava-se bem, como algo moderno, mas respeitoso. Era uma canção! Se tenho alguma coisa a criticar à representação da RTP é que podiam ter cantado em português. Ficaram em 12.º lugar... não adianta nada cantar em inglês. Temos de cantar na nossa língua, temos o Eça de Queiroz e o Camilo e o Saramago cá dentro. A nossa língua é uma coisa muito gira, muito boa. Houve uma altura, em fevereiro de 2014, em que foi viver para o Brasil. Depois regressou, fez as pazes com o país? Não teve que ver com o país. Sou de uma geração que melhor ou pior ajudou, um pouco e à sua maneira, o 25 de Abril, e aos 65 anos de idade vejo o meu país naquele estado com o primeiro-ministro da altura, o Passos Coelho... quando achei que era de mais fui-me embora, mas não foi nenhuma zanga com o país, e disse-o publicamente. Não quis viver num país dirigido por pessoas como as que lá estiveram na altura. Considerei que era ofensivo para mim e para a minha geração. Estive no Brasil quatro anos. Mas estive tempo a mais por lá, para quem é músico, é muito difícil largar o Brasil. Um tipo acaba de fazer uma canção e passada uma hora e meia tem num estúdio três ou quatro dos melhores músicos do mundo... E que música anda a ouvir? Oiço muita música clássica, tudo. Mas cheguei a uma conclusão grave: ultimamente já só tenho tempo para ouvir música no carro. Não tenho tempo em casa para ouvir música, tenho ensaios, discos, etc. Gosto muito de ouvir em disco de vinil, e já só compro vinil. Mas chateia-me muito olhar para a minha estante de CD e pensar que, provavelmente, não vou ter tempo para os ouvir todos antes de morrer, e isso chateia-me muito. E chateia-me muito olhar para a coleção dos livros do meu filho João e ainda não os ter lido todos. Espero ainda poder retificar em vida, e ter um tempo mais calmo, e tenho de repousar um pouco e ler os livros que ainda não li. Acredito que ainda posso recuperar isso.. filipe.gil@dn.pt.Agradecimentos ao Memmo Hotel Príncipe Real