Desde que o homem começou a documentar a sua própria história, há cerca de cinco mil anos, que a Lua, frequentemente representada em forma de crescente e associada ao Sol ou a uma estrela indefinida, é um símbolo omnipresente. Na cultura europeia, e na portuguesa em particular, a imagem viria a ser muito associada à reconquista cristã, como símbolo de vitória sobre o mundo islâmico. Mas a história começa muito antes, e com contornos mais pacíficos, numa era em que o satélite da Terra representava sobretudo pureza, transcendência e a figura feminina.."O crescente, colado ou não à estrela, acabou por transformar-se num símbolo muito conotado com o islão. Mas mais até na Idade Moderna", explica Miguel Metelo de Seixas, especialista em heráldica do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Antes disso, conta, "tem uma raiz muito antiga, desde os tempos da Mesopotâmia [região histórica no atual território do Iraque, do Koweit e partes da Turquia e da Síria]". Na antiguidade clássica, surge "na iconografia grega e romana. É um tema astral muito antigo que, do ponto de vista da forma, permanece ao longo dos séculos, sujeito a interpretações e leituras muito diversificadas"..A associação do Sol à figura masculina e da Lua à feminina, correspondendo o conjunto das duas também a uma ideia de universo e de plenitude, nasce "com as religiões" da antiguidade. No caso da Lua, "a deusa [grega] conotada com a Lua, Ártemis - ou Diana para os romanos - é uma figura feminina. E isso mantém-se em todo o lado"..O investigador ressalva "não se poder afirmar que o crescente medieval seja o herdeiro direto do crescente da antiguidade". Mas reforça que estas são "referências que se perpetuam ao fio dos séculos, ainda que não de forma direta. Não é uma transmissão consciente. É sobretudo formal", diz, lembrando que o cristianismo é "particularmente dado à incorporação de mitos, iconografia e até ritos pagãos"..Na cultura portuguesa, por exemplo, ainda que segundo o historiador esta seja "uma associação mais tardia", a muito popular figura da Nossa Senhora da Conceição é frequentemente representada sobre uma Lua branca, símbolo da pureza e da crença católica na conceção virginal. E não é difícil ver naquela representação da mãe de Cristo reminiscências das divindades femininas gregas e romanas..Muito comum e mais antiga é a representação da Lua e das estrelas como símbolo de poder. "Os mantos régios medievais de que temos notícia normalmente são mantos estelares, com estes sinais astrais, para indicar a natureza sobrenatural do poder que é conferido ao soberano", ilustra..Como é que este símbolo evolui de forma a ser conotado sobretudo com a cultura islâmica, sendo hoje parte integrante das bandeiras de vários países muçulmanos? Miguel Metelo de Seixas ressalva que desde o início esta representação "aparece tanto no mundo islâmico como no cristão", não tendo havido propriamente uma migração de uma cultura para a outra. No entanto, "fundamentalmente a partir do século XIII, os crescentes e as estrelas começam a ser mais sistematicamente associados ao islão. Mais até por fontes cristãs do que pelos próprios muçulmanos"..Esta "necessidade de associar um determinado símbolo ao mundo religioso islâmico" está diretamente relacionada com a chamada Reconquista Cristã, e será a principal causa da ampla disseminação da imagem da Lua na heráldica portuguesa, desde as armas familiares aos estandartes autárquicos..Ainda no século XII, durante a Segunda Cruzada, Ricardo I, Coração de Leão, de Inglaterra, incorpora o crescente e a estrela no seu selo, após uma bem-sucedida campanha no Chipre. E, embora não se saiba se os dois factos estão associados, no século seguinte torna-se muito comum esta utilização da Lua como símbolo do triunfo militar na guerra religiosa..Muitas cidades portuguesas reconquistadas aos mouros ostentam ainda hoje orgulhosamente os crescentes que simbolizam a captura das mesmas por forças cristãs. E as alusões aos triunfos sobre os mouros - por vezes bastante mais gráficas, com representações de cabeças decepadas - eram particularmente valorizadas pela alta nobreza.."O que se verifica na heráldica da nobreza portuguesa, a partir do século XIII, é que esta tem uma componente muito forte quer de crescente quer de estrela, e ambos são apresentados no escudo de modo a simbolizar uma cristianização desses elementos, uma apropriação simbólica cristã.".Um dos exemplos mais antigos é o escudo da Casa de Sousa, cujas origens remontam a tempos anteriores à fundação de Portugal. "A linhagem medieval mais ilustre é de longe a dos Sousões, da Casa de Sousa. E os Sousas usam uma figura muito típica da heráldica portuguesa: quatro crescentes, com as pontas tocando-se umas em cima das outras, formando uma cruz, que se designa heráldica." Ou seja: a cruz tomando o crescente..Ironicamente, o crescente e a estrela - durante séculos usados pelos inimigos do islão para os representar - estão hoje presente nas bandeiras de diversos países cuja população professa maioritariamente aquela fé, como a Turquia, a Argélia, a Mauritânia, o Azerbaijão,as Maldivas e o Turquemenistão..Mas este é apenas mais um exemplo de como o significado de determinado símbolo pode tornar-se quase antagónico em função das diferentes culturas que o adotam. Tal como referido, também nos países árabes a raiz da Lua e do crescente é pré-islâmica. Ao longo do século xx, vários outros países islâmicos decidiram adotar a mesma simbologia. Mas o tema nunca foi consensual - com respeitados clérigos a recordarem que o islão não tem símbolos. A Arábia Saudita, por exemplo, usa uma bandeira verde, com uma espada e a inscrição em árabe: "Não há Deus senão Alá e Maomé é o seu mensageiro."