A Liga das Opiniões Extraordinárias

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Apesar de todo o tempo que dedicam nos bastidores a operações mundanas como elaborar regimes de abdominais e planear dietas, ou a gestos mais esotéricos como inverter triângulos e imaginar falsos noves, um treinador de futebol é avaliado essencialmente de acordo com as suas duas funções mais visíveis e fáceis de assimilar: 1) seleccionar os jogadores para um jogo e gesticular enquanto eles ganham, perdem ou empatam; 2) encarnar uma "personalidade" na televisão e falar sobre o que aconteceu no jogo anterior ou o que pode acontecer no jogo seguinte.

Embora o seu sucesso profissional esteja exclusivamente dependente da acumulação de estatísticas associadas à primeira função, a pegada cultural que deixa na segunda não é menos importante na maneira como o consenso formado pelos adeptos e pela imprensa desportiva se habitua a pensar nele. Um treinador é "bom" ou "mau" por causa dos resultados, mas também por causa da sua personalidade. Só que um dos segredos mal guardados sobre este processo é que a reacção à personalidade exibida nas conferências de imprensa é quase sempre determinada pelo que acontece no campo.

Qualquer treinador agrada aos adeptos quando reage a vitórias conclusivas, qualquer treinador irrita quando reage a um ciclo de maus resultados. A personalidade de Mourinho parece autoconfiança sobrenatural quando ganha, e insegurança delirante quando perde; as simplicidades bucólicas de Bruno Lage ou Rui Vitória são vistas como "lufadas de ar fresco" enquanto as coisas correm bem e tornam-nos insuportáveis quando deixam de correr.

Possivelmente um caso único no fenómeno desportivo, Jorge Jesus sempre teve o condão de conseguir irritar os adeptos do clube que treina mesmo quando os resultados são óptimos. É um talento especial, indissociável da sua absoluta certeza de que nunca cometeu um erro na vida, e do tom confiante com que transmite sempre a ideia de que nenhum dos seus interlocutores - reais ou imaginários - está equipado para conversar sobre futebol ao seu nível. Isto talvez seja verdade, mas paradoxalmente também o tornou beneficiário da boleia reputacional concedida aos treinadores mais hábeis a fugir ao discurso tradicional. Num meio onde as expectativas são tão baixas, a mera capacidade para não usar todas as semanas as frases "pensar jogo a jogo", ou "respeitar o adversário", ou "o futebol são onze contra onze" é vista como sinal de uma personalidade vívida e apelativamente heterodoxa.

É por esse motivo, e por algumas proezas avant-garde de dicção e sintaxe, que Jorge Jesus foi sendo encarado, por vários anos e em mais do que um país, como uma pessoa extremamente interessante, apesar de, como é natural, compreensível e nada problemático, não ter quaisquer opiniões informadas ou interessantes sobre nada que não esteja directamente relacionado com futebol.

Nesta semana, não pela primeira vez e não pela última, alguém lhe pediu para ter uma opinião sobre um assunto indirectamente relacionado com futebol: o incidente entre um quarto árbitro romeno e um treinador camaronês que levou à interrupção e ao adiamento de um jogo da Liga dos Campeões. A sua resposta, entre pausas, sopros e filosóficas esfregas de rosto, foi qualquer coisa como isto: "Hoje está muito na moda isso do racismo... Como cidadão tenho direito a pensar à minha maneira... Hoje qualquer coisa que se possa dizer contra um negro é sempre sinal de racismo... A mesma coisa contra um branco já não é racismo... Está-se a implantar essa onda no mundo..."

Jorge Jesus tem um trabalho interessante e tem sido invulgarmente bom a fazê-lo, mas nada na sua resposta é interessante ou invulgar. A começar pelo facto de ser uma resposta e não uma opinião. O que Jesus disse não é uma "opinião sobre" o racismo, não mais do que a recente tirada de Cristiano Ronaldo sobre os testes PCR era uma "opinião sobre" epidemiologia. Dizer que o "racismo está na moda" não é ter uma opinião, mas confessar a ausência de uma opinião, desabafada por alguém que, como a maioria das pessoas, é refém de opiniões invisíveis que herdou, opiniões que não procurou, mas que o encontraram a ele.

É, portanto, a reacção de alguém a quem foi pedida uma opinião, e que descobriu não ter uma, porque nunca foi necessário ter uma. É possível que Jorge Jesus tenha vivido sessenta anos de vida sem ouvir a palavra "racismo" mais de quinze vezes e sem ter pensado no assunto mais de quinze segundos. Nos últimos tempos ouve a palavra com mais frequência e conclui vagamente que o assunto "está na moda". Porque é que estará "na moda"? Não faz a menor ideia. Lembra-se de ter ouvido algumas coisas, talvez na televisão, umas contra, outras a favor, algumas queixas legítimas, alguns exageros. Mas o importante é que um assunto que não lhe diz directamente respeito (não sendo ele racista, nem vítima de racismo) está agora a infringir o seu direito de pensar nas coisas que quer, e à sua maneira.

Também isto não é invulgar nem interessante. Encarar a exigência de formar uma opinião sobre um assunto desagradável como uma inconveniência é uma reacção comum de qualquer pessoa habitualmente protegida pela magia sociocultural de nunca ter de pensar naquilo que não quer pensar. Essa magia tem muitos nomes ("privilégio" é um deles), porque dar nomes às coisas e usar esses nomes é dos poucos actos disponíveis para quem se depara individualmente com problemas colectivos de intratável complexidade.

Para qualquer modalidade de activismo político definida como a vontade de ter razão na internet, classificar a manifestação de um problema representa um sucesso prefabricado. Isso ajuda, entre outras coisas, a consolidar a falsa e redutora ideia de que o racismo é um problema predominantemente individual e verbal, e que "racista" é algo que uma pessoa é ou não é em função dos seus bons ou maus sentimentos, ou do seu bom ou mau vocabulário. Se o racismo é aquilo que é mau, "racista" depressa se torna aquilo que ninguém é, e aceitar estes termos implica aceitar automaticamente todos os debates tautológicos que eles autorizam.

Qualquer debate filtrado através deste aparato se transforma numa crise de sobreprodução: excesso de incidentes, excesso de tópicos, excesso de interpretações, excesso de slogans, excesso de memes, excesso de significado. Cada novo escândalo tem um prazo de validade mais reduzido e desvaloriza mais depressa. A "moda", a "onda que se implanta no mundo" é esta, pelo menos vista da perspectiva normativa em relação à qual todas as outras são um desvio.

E dessa perspectiva, a de quem nunca precisou de pensar em nada disto, o que se sente não é o eclodir espontâneo de opiniões melhores, mas uma ansiedade de baixa frequência que facilmente resvala para mentalidade de cerco, e que empurra pessoas como Jorge Jesus - que se encontram na posição de repetir coisas que até há pouco tempo eram indizíveis, mas que agora fazem parte da política e da televisão - na direcção de um reaccionarismo passivo de que nunca foram suficientemente informados para escolher. Quem escolheu e disponibilizou essas opiniões, e quem as torna aceitáveis, são outros. Também têm nomes, e sabemos perfeitamente quem são; o campeonato em que jogam é diferente.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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