"A leitura híbrida vai ser cada vez mais uma tendência"
Cada vez as pessoas leem menos. De facto. Cada vez leem menos livros. Também. Mas isso não quer dizer que não queiram adquirir conhecimento. Simplesmente, nos dias que correm, a atenção é multipolar. Há vários estímulos, que concorrem com os livros, mas há também várias formas de ler.
"Na Alemanha a leitura digital não é ainda muito expressiva. As pessoas acham que o telemóvel é só para ver as mensagens do WhatsApp ou do Facebook. Mas porque não ler no telemóvel? Eu, estas férias, li aos meus filhos no telemóvel e agora eles usam-no para isso", conta Nikola Richter, uma ex-jornalista alemã formada em Literatura, que em 2013 criou a Mikrotext.
Trata-se de uma editora independente de Berlim. A primeira inteiramente digital a surgir na Alemanha. Ela é a sua própria chefe. Começou, naquela altura, com e-books apenas mas, de há dois anos para cá, também tem livros impressos. Edita entre oito e dez livros por ano. Primeiro escolhe o que quer publicar. Depois decide o que fica só em e-book e o que vai também ser impresso em papel.
"Ler nem sempre foi em livro. Já foi nos papiros. Nós achamos que a única forma de salvar o bem cultural é lendo em papel impresso. Porquê? Não tem de ser assim. As coisas estão a mover-se. E estão a mover-se para o ecrã. Mudámos os hábitos de leitura. Ler tornou-se mais episódico. E, depois, claro, há o Netflix", declara Nikola Richter, entre risos, a um grupo de jornalistas estrangeiros na Feira do Livro de Frankfurt.
"A leitura híbrida, ou seja, uma parte no digital, outra parte em papel, vai ser cada vez mais uma tendência. Tal como a forma de publicar, de editar, também será cada vez mais híbrida. Eu neste momento considero-me uma editora híbrida. Além disso, ao ser a minha própria chefe, sigo aquilo a que eu chamo uma estratégia de publicação ágil. Por exemplo, decido fazer livros de capa dura, se vir que não resulta já não faço. É preciso experimentar coisas em tempo real. Não podemos ser estáticos. Às vezes, conseguir direitos de autor, fazer as traduções, o design das capas, é algo que demora muito tempo. E o tempo move-se rápido. Se não queremos perder leitores temos de pensar em maneiras diferentes de fazer as coisas", explica a ex-jornalista, que durante anos escreveu para uma revista alemã especializada em literatura.
Insistindo no conceito de híbrido - como se de um carro com motor meio elétrico/meio de combustão se tratasse -, a editora alemã sublinha que, na Alemanha, "todas as editoras digitais estão também a editar em papel". Richter não vê as redes sociais como inimigas. Ou concorrentes. Muito pelo contrário. O primeiro livro que publicou, precisamente, consistia nos posts de Facebook de Aboud Saeed, um sírio na casa dos 30 anos, que vivia perto de Aleppo e, em plena guerra, escrevia sobre o dia-a-dia do seu país: desde a vez em que vislumbrou o vizinho a regar as plantas até à primeira mulher que viu em biquíni.
"No próximo ano, por exemplo, vou editar o meu primeiro livro de fotografia, com fotos de um fotógrafo que tem uma conta no Instagram. Contacto muito com escritores no Facebook. Pode ser muito exaustivo, mas recebo muitas dicas dos escritores através do Facebook e também estou mais próxima dos leitores. Vou editar também os posts de uma conta de Twitter que se chama MicroScienceFictionStories, que consistem em reflexões sobre a existência humana de uma forma muito divertida", exemplifica, enquanto espalha alguns dos seus livros, físicos, em cima da mesa de uma das muitas salas dos vários pavilhões da Messe Frankfurt.
Um deles é de Stefanie Sargnagel, uma autora austríaca, que "escreve sobre os mais diversos tipos de conversas de uma rapariga que trabalha num call center na Áustria". Noutro, outra rapariga "fala sobre como se sente perdida no mundo das redes sociais, da ausência de empatia, diz que se sente no meio de uma guerra no Facebook, onde todos se acham no direito de a interpelar, de lhe pedir explicações sobre o que escreveu, o que publicou".
Admitindo que, para um editor, é difícil conhecer de forma precisa quem são os seus leitores, Nikola Richter refere, quanto aos autores que publica, que "o mais novo nasceu em 1993 e os mais velhos têm até 80 ou 90 anos. Não me importo com a idade, aspeto, origem, língua materna. Desde que seja um bom autor. Já tive um que veio do Uganda para a Alemanha".
A Mikrotext esteve este ano pela primeira vez - fisicamente - na Feira de Frankfurt. Ou seja, no passado, Richter já vinha à feira, mas a sua editora não tinha um stand. No certame também, é preciso encontrar uma forma híbrida de fazer contactos e negócios."Eu construí a minha infraestrutura do nada. Tive de ignorar muita coisa. Como não ter um stand. Eu vinha para aqui, andava por aí, mostrava o meu e-book às pessoas no meu iPhone. Não tinha stand mas estava presente. Agora, tenho stand, mas não posso mexer-me do sítio", constata, rindo.
Na Feira do Livro de Frankfurt, este ano na sua 70.ª edição desde que foi retomada, em 1949, no pós-guerra, os expositores fazem contactos muito antes de chegarem àquela cidade alemã. Depois reúnem-se, ou nos pavilhões ou nas várias festas que decorrem em hotéis à margem do certame.
Um dos epicentros dos contactos e das negociações é o hotel Steigenberger Frankfurter Hof. Cá fora, uns conversam de pé, com uma bebida na mão - predominantemente cerveja -, de forma descontraída. Lá dentro, há grupos de duas, três ou quatro pessoas, sentadas em mesas, a trocar impressões e a mostrar os seus livros. Outros têm mesmo várias das suas publicações expostas em cima das mesas.
A feira, que este ano contou com mais de sete mil expositores de 102 países, teve como país convidado a Geórgia. Os georgianos têm direito a um pavilhão só para si. Onde expõem as obras dos seus autores e exibem os 33 caracteres do seu alfabeto muito próprio. Alguns países, como Angola e Cuba, estiveram pela primeira vez presentes na feira desta cidade alemã.
Os primeiros dias do certame foram dedicados a convidados de honra, com discursos que este ano foram marcadamente políticos, com recados aos nacionalistas alemães da AfD, a populistas como o presidente dos EUA Donald Trump e aos líderes de regimes controversos como o turco Recep Tayyip Erdogan. Chimamanda Ngozi Adichie, escritora feminista nigeriana a viver nos EUA, Federica Mogherini, chefe da diplomacia da UE, Frank-Walter Steinmeier, presidente da Alemanha. Estes foram algumas das altas figuras com intervenções na feira.
Esta é essencialmente dedicada a expositores, tendo ainda um cariz muito mercantil, abrindo ao público apenas nos últimos dias. No sábado, por exemplo, ninguém conseguia praticamente mexer-se dentro da Messe Frankfurt, tal foi a afluência. Além dos editores e dos jornalistas, havia famílias, jovens, muitos jovens. Alguns vestidos de acordo com as personagens dos seus livros favoritos, numa mistura entre o gótico, os heróis ou vilões dos livros de Manga e os alunos da escola de magia dos livros de Harry Potter.
Na rua, muita gente sentada no chão, aproveitando simplesmente o sol. Nos dias da feira as temperaturas estiveram invulgarmente elevadas para época e para aquilo que é considerado normal em Frankfurt. As filas para comprar gelados eram quase tão gigantescas como as dos fãs que esperavam por um autógrafo do seu autor favorito.
Portugal, que em 2021 será o país convidado da Feira do Livro de Leipzig, participou com 49 expositores. À entrada do pavilhão nacional, uma grande imagem de José Saramago, a azul, para lembrar que, há 20 anos, foi ele o Nobel da Literatura. Neste ano, ao contrário do que é costume, não houve anúncio de Nobel durante a feira. Porque simplesmente não houve atribuição de Nobel da Literatura este ano. As razões prendem-se com um escândalo de abusos sexuais por parte do marido de uma das membros da Academia Sueca. O caso, que resultou em condenação de prisão este mês de outubro, surgiu no auge do ressurgimento do movimento #MeToo. E não foi possível ignorá-lo.
Muita gente vem fazer contactos. Não tem stand, tal como antes acontecia com Nikola Richer. "O stand mais pequeno pode custar dois mil euros, mais despesas de eletricidade e etc...", explica aos jornalistas Bärbel Becker, diretora de projetos internacionais na Feira do Livro de Frankfurt. O que alguns fazem, sublinha, "é juntar-se e dividir um stand ou pedir para ficar uns junto dos outros".
Este ano, 65% dos expositores presentes na feira são de fora da Alemanha. Pela primeira vez, a feira teve um programa específico para os países africanos, 19, mais precisamente, entre os quais Angola, Etiópia, Cabo Verde. O sudeste Asiático também surgiu como aposta. Editores ocidentais calculam que um grupo de países dessa área geográfica constitui um mercado potencial de 600 milhões de pessoas. "A China é o país para quem os alemães vendem mais licenças de tradução de livros nacionais", refere Bärbel Becker.
Não havendo ainda grande consumo de e-books e sendo ainda fraca a implantação dos audiobooks, fazendo-se sentir também o impacto da pirataria, a população desses mercados é muito jovem e interessada nas novas tecnologias como ferramenta para aprender mais, por forma a melhorar a sua situação socioeconómica.
Com a venda de livros em queda, 1% na Alemanha entre 2016 e 2017, a Associação de Editores e Livreiros Alemães tem feito vários estudos. "O número de leitores está a cair. Há uma estabilização que é sustentada por pessoas que compram mais livros e mais caros. Os leitores que o fazem são mais velhos. Também se vendem muitos livros para pessoas menores de idade. A questão está nos outros grupos", constata, por sua vez, Jessica Sänger, diretora para a área internacional e europeia daquela associação.
"Identificámos um grupo de pessoas que, nos últimos dois ou três anos, começaram a comprar livros. Descobrimos que o que levou essas pessoas a deixar de ler foi a multiplicidade de estímulos, a solicitar uma atenção multipolar, como sejam as redes sociais Facebook, WhatsApp, etc... Mas depois descobrimos também que o que as fez voltar aos livros foi a overdose de todas essas coisas. Quando lhes perguntaram o que sentiam por já não ler livros, responderam que se sentiam tristes, um pouco vazios e que não gostavam dessas sensações", refere a mesma responsável da Associação de Editores e Livreiros Alemães. Os grupos de pessoas estudadas, acrescentou, teriam idades entre os 20 e 29 anos e os 40 e 49 anos.
Jessica Sänger constata, com tristeza, que "os livros desapareceram das conversas entre as pessoas. Toda a gente discute as temporadas das séries que anda a ver no Netflix, mas ninguém fala dos livros que lê". E prossegue: "O livro é algo que requer atenção. Queremos que as pessoas leiam sem acharem que são nerds."
Noutra sala da Messe Frankfurt, Sebastian Posth, consultor para a área editorial, fundador da primeira loja de e-books na Alemanha em 2005, exibe um gráfico que mostra como o valor global do mercado livreiro alemão foi decaindo ou subindo à medida que surgiram redes sociais como o Facebook ou o Twitter, equipamentos como o iPhone, o iPad e serviços como o Spotify.
"Os e-books não estão a explodir. Mas também não estão parados", refere, enumerando argumentos a favor dos livros eletrónicos. "Os e-learning books poderiam evitar que as crianças andassem com mochilas tão pesadas às costas. Os e-books também são uma boa opção para pessoas que leem muito e já não têm sítio em casa para pôr mais livros."
Quanto aos estudos sobre os hábitos de leitura, teorias sobre redes sociais, concorrência entre digital e papel, Sebastian Posth, autorizado pelos seus 15 anos de experiência com o mercado dos e-books, afirma de forma frontal: "Está a ser feito um grande trabalho para ver se chegamos a algum lado. Mas neste momento não estamos a chegar a lado nenhum."
*A jornalista viajou a convite do Goethe Institut