Há uma Igreja Católica que vota para lá de um certo discurso único de defesa da vida, a avaliar pelas diferentes tomadas de posição por organismos e setores católicos portugueses..Nas últimas semanas, Cáritas, Comissão Nacional Justiça e Paz, Comunhão e Libertação, Conferência Episcopal Portuguesa e Serviço Jesuíta aos Refugiados tomaram a palavra para defender os seus pontos de vista antecipando as eleições europeias..Todos esses documentos apresentam uma grelha de leitura mais ampla do que aquela que, na passada quarta-feira, dia 15, motivou polémica quando o Patriarcado de Lisboa partilhou na sua página de Facebook um post da Federação Portuguesa pela Vida que sugeria o voto em três partidos pelas suas posições de "defesa da vida"..No próprio dia, quando contactado pelo DN, o Patriarcado assumia ter sido "uma imprudência" aquela publicação, que iria ser retirada, remetendo a sua posição para a recente Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Na quinta-feira, dia 16, a diocese reafirmava, em comunicado, que a partilha tinha sido um erro e sublinhava "a isenção do Patriarcado na orientação do voto de cada eleitor"..O texto da CEP, com dez páginas, divulgado a 2 de maio, apresenta-se como "um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja" e pretende "ajudar os católicos do nosso país e tantos outros portugueses a abraçar os principais desafios com que hoje se deparam no mundo em geral e especialmente em Portugal e na Europa".."Toda a vida humana tem igual valor".A carta começa com a afirmação de que "toda a vida humana tem igual valor", numa profissão de fé que parte do texto do Concílio Vaticano II (1962--1965), que afirma que "a pessoa é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais". "É por isso que cada pessoa tem a dignidade de ser única e irrepetível e não pode ser reduzida a simples objeto ou instrumento ao serviço de fins que lhe sejam alheios", escrevem os bispos..Esta dignidade, argumenta a CEP, "depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer", pelo que "não varia em grau, conforme maiores ou menores capacidades cognitivas; não depende da raça, do sexo ou da idade nem se vai adquirindo progressivamente até à idade adulta, mas existe plenamente desde o início da vida; não deixa de o ser por deficiência ou doença, físicas ou mentais, por muito profundas que sejam; não se perde com a idade avançada, a demência ou o estado comatoso"..Neste parágrafo está inscrita a doutrina oficial que rejeita o aborto e a eutanásia, apesar de muitos católicos defenderem a sua despenalização..Para os bispos portugueses, há "atentados à vida" frequentes contra os nascituros, "mesmo motivado por deficiência do feto", notando que em Portugal, "como em outros países, já muitos se resignaram a esta situação, como se fosse inevitável ou a lei irreversível"..À necessidade de rever a lei "em termos político-jurídicos", que os bispos voltam a colocar na mesa de forma tímida, a CEP defende que compete ao Estado o reforço do "apoio às grávidas e a rede de informação sobre alternativas ao aborto", desafiando "paróquias e centros de apoio à vida" para que também sejam mais eficazes..Para além da defesa do "direito à vida na fase na sua gestação", esta carta pastoral define o "direito a viver até ao fim", uma vez que "também a eutanásia atenta contra a inviolabilidade da vida humana", enclausurando a morte assistida em termos idênticos aos que o PCP invocou no debate no Parlamento: "A dignidade da pessoa não pode derivar da sua capacidade de trabalho, produtividade ou estatuto perante o mercado. É, pois, urgente que se combata toda a ideologia que vê nos idosos, porque incapazes de trabalhar, um peso a rejeitar.".Pelo meio, os bispos apontam o "direito à vida" na fase de "crescimento" das crianças, reconhecendo "o abuso sexual de que algumas delas têm sido vítimas", incluindo "infelizmente membros da Igreja", ao provocarem "irreparáveis danos" nos menores abusados, "pela total contradição com o amor evangélico de que devem dar testemunho".."Mais justa repartição de rendimento".Distanciando-se de abordagens simplistas de "defesa da vida", o documento da CEP aponta ainda o "direito à vida por parte de jovens comprometidos", que exigem "maior transparência e responsabilidade na gestão da coisa pública" e uma "mais justa repartição de rendimento"; e o "direito à vida nas relações familiares", em que os bispos se envergonham (é o verbo usado) pela "extrema violência física e psíquica aplicados por pais e educadores" a crianças, sentindo-se ainda interpelados (o outro verbo empregue) pela crescente "violência física e psíquica" contra as mulheres, apontando aos cristãos "um particular dever de denúncia e apoio às vítimas"..À solidão dos idosos, "que é já um grave problema de saúde pública", os bispos alargam o direito à vida a "todas as fases e situações da existência humana", notando que esse direito "é também negado quando se recusa o acesso à alimentação básica e a tratamentos de saúde, quando não se promovem os cuidados continuados e paliativos" e que o "direito social deve impor "ao Estado ações que garantam a todas as pessoas o acesso aos bens necessários para a sobrevivência"..Onde o documento da CEP se demora mais é no "direito à vida na sua componente económica", com os bispos a reiterarem que "a pobreza conduz à violação dos direitos humanos" e que esta pobreza persiste "mesmo entre trabalhadores empregados". "Assim, cerca de 10% dos trabalhadores com emprego não conseguem o salário justo [sublinhado no original] que permita ao seu agregado familiar viver dignamente, assegurando a educação dos filhos, o acesso à cultura e à formação, a alimentação, a habitação e o lazer. Os cristãos não podem, por isso, conformar-se com uma ação meramente assistencialista do Estado junto dos mais pobres.".Neste capítulo, os bispos reclamam as "vigorosas críticas do Papa" à "economia que mata" e à "autonomia absoluta dos mercados". E escrevem: "A economia, a empresa, os mercados devem estar ao serviço das pessoas, e não o contrário. A busca do lucro é, em si mesma, legítima. Mas já não o será, se conduzir ao sacrifício de direitos fundamentais da pessoa do trabalhador." Um exemplo: se um despedimento individual ou coletivo pode "ser exigido pela necessidade de evitar, a curto ou a longo prazo, a insolvência da empresa", o que "será legítimo como uma forma de salvaguardar ainda postos de trabalho na medida do possível". "Mas já não o será se a empresa tem lucros e pretende, com os despedimentos, apenas aumentar esses benefícios.".Laboração contínua devia ser exceção.A linha vermelha estabelecida pelos bispos é para empresas que não podem "descartar-se dos trabalhadores mais velhos ou mais frágeis" por os desproteger ou não permitir a reentrada "no mercado de trabalho crescentemente concorrencial"..Também "na sua componente demográfica", define-se a necessidade de combater "a precariedade do trabalho" e promover um "mínimo de estabilidade laboral". Pedindo "urgentes medidas económicas e sociais de promoção da natalidade", a CEP sublinha que, "da coesão da sociedade depende da saúde e coesão da família", pelo que "é desta dupla coesão que depende a solução para a mais grave crise social com que hoje se deparam, entre outras, as sociedades europeias: a crise demográfica sem paralelo na história, a não ser a que decorria de guerras ou graves carências"..Os bispos defendem, neste contexto, que uma "empresa só deveria, justificadamente e em situações graves, recorrer à laboração contínua, que implica trabalho por turnos, trabalho noturno e extraordinário ou horários imprevisíveis e repetidamente alterados", notando que "o simples aumento dos lucros não pode ser visto como razão suficiente para o uso deste tipo de políticas laborais"..Numa segunda parte do documento da Conferência Episcopal, os bispos afirmam que "o bem de todos e de cada um" sem ser "ditadura da maioria". "Se num país a classe média constitui a maioria da população e os pobres são minoria e não têm peso eleitoral decisivo, o bem comum exige que os direitos destes não sejam esquecidos ou menosprezados.".Defendendo o pagamento de impostos, para ajudar na "redistribuição de rendimentos em benefício dos mais pobres", os bispos sublinham que "a erradicação da corrupção é possível". "Não podemos desvalorizar as consequências sociais dos nossos comportamentos no recurso à cunha, à obtenção de vantagens que nos são indevidas e à retribuição de pequenos favores", apontam..Os migrantes são como nós."O bem comum pode ser nacional e universal", escreve a CEP, abordando-o do ponto de vista dos migrantes. É aqui, neste aspeto, que o texto dos bispos mais pontos de contacto mantém com as das outras organizações que se pronunciaram sobre as eleições. E neste parâmetro, a defesa da vida é totalmente contrária à de partidos cuja sugestão de voto era feita pelo post da Federação Portuguesa pela Vida (organização que se apresenta aconfessional)..Para os bispos são "inaceitáveis as correntes inspiradas no 'nacionalismo de exclusão' que vêm ganhando força em vários países". E escrevem, em jeito de alerta para os eleitores portugueses: "Não estamos imunes a um clima de medo e desconfiança em relação aos estrangeiros, bem como o perigo de os encarar como concorrentes a postos de trabalho ou ameaça ao nosso nível de vida, esquecendo que muitos de nós buscam o mesmo estatuto e nível de vida noutros países.".A CEP recorda mesmo que, "nos últimos tempos", segundo os dados mais recentes do Observatório para as Migrações", em Portugal, "os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado português são maiores do que as prestações de que beneficiam", "apesar de para eles ser maior risco de pobreza e privação material"..Antecipando que é preciso "cuidar da casa comum", os bispos defendem também que importa "fomentar o sentimento de pertença a uma verdadeira comunidade que, sem substituir o da pertença à comunidade nacional, tenha com ele alguma semelhança", "possível a partir da consciência de uma história, uma cultura e valores partilhados"..Pedra-de-toque para a CEP neste ponto: "Não se podem esquecer as raízes cristãs da cultura europeia, não tanto como relíquia do passado, mas como património vivo que pode dar frutos no presente", sem "excluir da Europa pessoas de outras culturas e religiões", o que "estaria simplesmente em clara contradição com a mensagem cristã"..Bispos: "Nem Estado centralizador nem Estado mínimo".Na casa comum cabe a afirmação de que "o destino universal dos bens prevalece sobre o direito à propriedade", uma "melhor distribuição de rendimentos para uma sociedade mais coesa", em que os bispos exigem que o "princípio da subsidiariedade" se traduza numa ideia: "Nem Estado centralizador nem Estado mínimo." É óbvio o recado neste ponto. A CEP exige que, "neste âmbito, como noutros, o Estado deve apoiar o ensino não estatal" e, na Saúde, devem coexistir "iniciativas particulares e sociais, comprovadamente úteis, necessárias e eficazes" com o Serviço Nacional de Saúde..Os bispos argumentam que a sua reflexão quer "contribuir para um melhor discernimento sobre as realidades" de Portugal e da Europa, antecipando as eleições europeias e nacionais e "visando a construção de uma sociedade mais justa e fraterna"..Para essa sociedade mais justa, o Serviço Jesuíta para os Refugiados (JRS, na sigla internacional) defende - numa campanha dirigida aos mais jovens - que "o teu voto resgata famílias". O desafio ao discurso da extrema-direita e aparentados é claro. "O Parlamento Europeu desempenha um papel crucial na vida dos refugiados, requerentes de asilo e migrantes forçados, sendo a instituição europeia que mais influencia o processo de tomada de decisão nestas matérias", aponta o JRS Portugal que desafiou os candidatos às eleições europeias a pronunciarem-se sobre que respostas se propõem a dar..No texto em que se apresentam as questões, conta-se que "o JRS Portugal, juntamente com o JRS Europa, apela a um voto consciente e informado, que defenda os valores sob os quais a UE foi fundada, nomeadamente a proteção, dignidade, solidariedade e liberdade", sendo, "por isso, fundamental saber quais as forças políticas que estão dispostas a continuar a defender estes valores". E completam: "Só assim será possível dizermos qual a Europa que queremos para o futuro.".Números contra discursos racistas e securitários.Desmitificando discursos racistas e securitários, o JRS apresenta números do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), nos quais se constata que, "atualmente, 85% dos refugiados a nível mundial são acolhidos em regiões em desenvolvimento" e que, "em 2017, apenas um país europeu", a Alemanha, "figurava entre os dez países com mais refugiados (Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano, Irão, Alemanha, Bangladesh, Sudão, Etiópia e Jordânia)"..Não há perigo de nenhuma invasão muçulmana ou de migrantes, como afirmam os líderes extremistas de direita. "Em termos relativos, só dois países europeus estavam entre os dez países com maior taxa de população refugiada (Líbano, Jordânia, Turquia, Uganda, Chade, Suécia, Sudão do Sul, Malta e Djibuti)", explicam os jesuítas..Mais: "Em 2018, pelo menos 2275 pessoas morreram a tentar atravessar o mar Mediterrâneo" e, "até ao fim de abril de 2019, já tinham morrido 409"; "mais de 15 mil pessoas estão atualmente presas nas ilhas gregas, em campos sobrelotados em condições sanitárias chocantes"; e "por dia, mais de 44 mil pessoas dia são forçadas a fugir de casa por conflitos ou perseguições". Como sintetiza este serviço da Companhia de Jesus, "em 2018 havia 68,5 milhões de deslocados à força", quando "à Europa chegaram 144 mil". "Cerca de 0,2%." Pouco, quase nada..A Cáritas Portuguesa defendeu, em comunicado, que "votar é preciso", lembrando que "o contributo de todos os portugueses através do voto é fundamental para que a comunidade de países possa prosseguir no caminho de uma Europa unida pelo reforço do espaço de liberdade, paz e justiça social". E "onde cada cidadão usufrua do bem-estar necessário à sua vida em felicidade". Cada cidadão, que inclui os migrantes - afinal, a Cáritas veio entretanto afirmar o direito de todos os homens migrarem..Argumentos a favor das migrações.Também neste ponto esta organização de solidariedade que atua em rede aponta vários benefícios na migração de pessoas e povos: "Contraria efeitos demográficos negativos da emigração e envelhecimento da população; contribui significativamente para a literatura, arte e gastronomia; [e] os migrantes que vivem no país têm um nível mais elevado de pobreza do que residentes portugueses, mas, de acordo com dados oficiais, contribuem mais para o sistema de apoio social do que retiram." .Os imigrantes, adianta a Cáritas, "resolvem desequilíbrios no mercado laboral em diferentes setores (construção ou turismo) ou entre regiões (Lisboa, Algarve), em muitos casos com impactos positivos"; as taxas de emprego para imigrantes são maiores para imigrantes do que para os nativos - a participação de mulheres migrantes no mercado em Portugal é a mais alta dos países Europeus da OCDE; e "as remessas dos emigrantes portugueses representam cerca de 1,7% do PIB e 3,5 mil milhões de euros em 2017"..Como defende esta organização no apelo ao voto, "a Europa reencontra esperança, quando investe no desenvolvimento e na paz. O desenvolvimento não é fruto de um conjunto de técnicas produtivas; mas diz respeito ao ser humano inteiro: a dignidade do seu trabalho, condições de vida adequadas, a possibilidade de acesso à instrução e aos cuidados médicos necessários"..Europa não pode ser "fortaleza alheia aos problemas".Já a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), um organismo de leigos que aconselha os bispos portugueses, em questões de promoção e defesa da Justiça, lançou "um apelo ao próximo Parlamento Europeu", através de uma plataforma de comissões Justiça e Paz europeias (Justiça e Paz Europa). Neste texto, publicado em 29 de abril, defende-se "a justiça social" como contraponto às "desigualdades de distribuição de riqueza entre as várias regiões da União Europeia", onde se pede que seja dado "um novo e decisivo impulso às políticas europeias de desenvolvimento regional", para combater as assimetrias entre os países europeus.."O combate ao desperdício alimentar", "o fim da exportação de armas que possam vir a ser utilizadas em guerras e conflitos" e "o respeito pelos direitos humanos por parte de empresas multinacionais" são os outros três pontos afirmados pelas comissões Justiça e Paz, que termina com um apelo direto aos candidatos portugueses.."Deles esperamos, em especial, um empenho de abertura da Europa ao mundo, para que esta não se transforme numa fortaleza alheia aos problemas que se vivem ao seu redor. Portugal tem relações privilegiadas com países lusófonos que se contam entre os que mais sofrem a pobreza e a consciência deste drama deve estar presente no Parlamento Europeu."."Eleições europeias obrigam-nos a alargar o olhar".Também a Comunhão e Libertação, um movimento mais conservador na Igreja, defende num manifesto que "as eleições europeias obrigam-nos a alargar o olhar, a olhar para além do horizonte das nações individuais, por mais que as dificuldades internas de cada país da UE sejam pesadas e toquem mais diretamente a vida de cada um de nós"..Partindo de várias interrogações ("como conviver com quem é diferente de nós?", por exemplo), este movimento nota que, "apesar dos medos e das inseguranças, o coração do homem não consegue render-se totalmente". "Podemos surpreendê-lo nas mais variadas tentativas, às vezes confusas, mas nem por isso menos dramáticas e de certo modo sinceras, que os europeus de hoje fazem para alcançar aquela plenitude que não podem evitar desejar", afirmam, transcrevendo Julián Carrón, um dos líderes do movimento..A Igreja em Portugal, como pelo mundo, não tem pois um voto definido. Em 1974, logo depois do 25 de Abril, os bispos portugueses tomaram a decisão de não apoiar a criação de um partido cristão e defenderam que nenhum partido se podia arvorar como único representante da Igreja Católica, apesar de ao longo dos anos da democracia alguns reivindicarem essa matriz. "A palavra de ordem era preparar os cristãos para a pluralidade democrática, portanto partidária", recordava em 2009 o então cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo.