A história de uma promessa de Joe Biden ao filho às portas da morte

A autobiografia do candidato a presidente dos Estados Unidos vai ser publicada em Portugal na próxima semana. <strong>O DN revela o primeiro capítulo de <em>Promete-me, Pai, </em>em que a morte do filho tem um papel fundamental na sua carreira política</strong>.
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O candidato presidencial dos democratas, Joe Biden, vai ter traduzido para português o seu livro de memórias Promete-me, Pai, no qual relata o ano que mudaria para sempre a sua vida, da sua família e o destino do seu país. No livro, faz questão de revelar as suas raízes, as tradições da família - o capítulo que o DN pré-publica hoje -, numa viagem até à candidatura presidencial.

De fora não ficam outras memórias, como a da sua luta pessoal para enfrentar as contrariedades da vida, a morte do filho e, com destaque, a relação com o ex-presidente Barack Obama.

O capítulo sobre o filho é dos mais emocionais, no qual refere a promessa que lhe fez de prosseguir a sua vida com coragem e determinação após a sua morte. Umas memórias que conciliam a sua vida pública com o lado mais pessoal, passando a mensagem de que mesmo com uma perda devastadora não baixa os braços.

O título das memórias, Promete-me, Pai, deriva do pedido do filho poucos meses antes de morrer. Beau Biden exigiu do pai o seguinte: "Promete-me que ficas bem, pai." Poucos meses depois faleceria na sequência de um tumor cerebral muito agressivo.

Daí que Joe Biden explique neste livro que nunca tenha deixado de ser um sonhador: "Recuso-me a acreditar que não há possibilidade de fazer o que quer que seja. Nunca me disseram que uma vida na política e no serviço público seria fácil; tal como a vida, nunca esperei que a política fosse isenta de desilusões ou desgostos. Mas sempre acreditei que valia a pena o esforço. E tendo sido eleito para vários cargos públicos desde os 37 anos, percebi que todas as coisas boas são difíceis e demoram tempo."

Tradições de família

Os dias estavam a ficar mais pequenos, por isso, a luz do céu já desaparecia quando o portão da nossa casa de férias se abriu de par em par e a coluna de automóveis passou a vedação que rodeava o Observatório Naval dos Estados Unidos em Washington, DC. Vínhamos da residência oficial no observatório e íamos para a Base da Força Aérea Andrews, onde os meus filhos e netos já se encontravam reunidos. Eu e a Jill estávamos ansiosos por nos juntarmos a eles para a viagem anual de Ação de Graças. Nos cinco anos e meio como vice-presidente, a família foi sempre um escape fundamental; estar com eles era como voar no centro de uma tempestade, um recordar constante do à-vontade natural e dos ritmos da nossa vida anterior, e da calma que viria quando o mandato chegasse ao fim. O cargo era um desafio incrível, mas eu e a Jill sentíamos falta de muitas coisas. Tínhamos saudades da nossa casa em Wilmington e de uma viagem longa sozinhos no carro a conversar despreocupadamente. Tínhamos saudades de controlar a nossa agenda e os nossos movimentos. Férias, feriados e festas com a família haviam-se tornado nas pausas que traziam de volta alguma sensação de equilíbrio. E o resto da família parecia precisar dessas pausas tanto quanto nós.

Estivéramos juntos poucos meses antes, na habitual viagem de verão a um dos parques nacionais. Mas cinco dias de caminhada, rafting em rápidos e jantares longos e barulhentos nas Tetons, aparentemente, não tinham sido suficientes. Eu e a Jill estávamos na cabana a fazer as malas para partir, no último dia, quando bateram à porta. Era o nosso filho Hunter. Ele sabia que íamos sozinhos para a praia, para um descanso de quatro dias. Mas, como ele e a mulher tinham algum tempo livre, perguntou se poderiam ir connosco. Respondemos: Claro!

Minutos depois, o nosso outro filho, Beau, bateu à porta. Os sogros tinham aceitado ficar com os filhos. Será que nos importávamos se ele e a mulher nos fizessem companhia em Long Island? Dissemos: Claro! Desconfio que haja pais que possam sentir que se estão a aproveitar deles quando lhes pedem que abdiquem do seu tempo a sós. Eu encarava estes pedidos como fruto de uma vida bem vivida: os nossos filhos adultos queriam estar connosco. Assim, passámos mais quatro maravilhosos dias na praia juntos em agosto, mas em novembro havia outra urgência percetível nesta necessidade. E tinha plena consciência disso quando nos preparámos para a escapadinha antecipada até Nantucket, para mais um Dia de Ação de Graças da família Biden.

Passámos os portões do observatório e senti a limusina blindada exigida pelo governo fazer a curva habitual para a Massachusetts Avenue, onde o trânsito local fora interrompido a fim de abrir caminho para a nossa coluna. Olhei para o relógio digital atarracado no topo da avenida, como fizera talvez milhares de vezes desde que nos mudáramos para a residência oficial. Os números vermelhos brilhavam, piscando numa perfeição metronómica: 5:11:42, 5:11:43, 5:11:44, 5:11:45. Era a hora precisa (precise time) do país, gerada a menos de cem metros, pelo relógio mestre do Observatório Naval dos Estados Unidos. A hora precisa - sincronizada ao milissegundo - fora declarada um imperativo operacional pelo Departamento de Defesa, que tinha soldados e bases espalhados por todo o mundo. 5:11:50, 5:11:51, 5:11:52.

A limusina acelerou depois da curva, com uma força abrupta que me colou ao banco de pele macia. O relógio ficou para trás num instante, fora da vista, mas sempre a marcar o tempo à medida que este se esfumava: 5:11:58, 5:11:59, 5:12:00. A coluna de automóveis virou para sudeste, ao longo de um lado do círculo que rodeava o observatório, e viam-se as luzes da residência oficial, que ora apareciam ora desapareciam, por entre as árvores sem folhas. Eu estava feliz por dizer adeus à casa durante alguns dias. Graças à nossa partida, muitos dos assessores navais ali destacados ficavam livres para passar o feriado com as famílias.

A coluna ganhou velocidade mal chegámos à alameda e as motos da escolta aglomeraram-se ao lado de outros viajantes. A caravana seguiu pelo sul de Washington, de onde se viam monumentos e edifícios públicos: o Cemitério Nacional Arlington, o Memorial de Lincoln, o Monumento de Washington - com a Casa Branca ao longe depois dele -, o Jefferson Memorial, o Capitólio. Desde 1973 que desempenhava cargos eleitos naquela cidade, ininterruptamente, 36 anos como senador e seis como vice-presidente, mas não ficara indiferente à beleza e ao significado daqueles imponentes marcos, que tinham agora um halo de uma luz difusa. Continuava a ver aquelas robustas estruturas de mármore como representantes dos nossos ideais, das nossas esperanças e dos nossos sonhos.

A vida de trabalho em Washington dera-me uma sensação de orgulho e de realização desde o dia em que ali chegara, e não diminuíra ao fim de quase 42 anos. A verdade é que, a 25 de novembro de 2014, o trabalho deixava-me tão entusiasmado e cheio de energia como em qualquer momento da minha carreira, embora a função atual fosse, tenho de admitir, verdadeiramente singular. Há uma estranha e única elasticidade nas responsabilidades de um vice-presidente.

Do ponto de vista estritamente constitucional, o detentor do cargo tem pouco poder além da responsabilidade de desempatar uma votação no Senado - o que, em quase seis anos, nunca acontecera - e de esperar para assumir a Presidência caso o presidente fique de algum modo incapacitado. Um anterior ocupante terá dito, numa citação famosa, que o cargo "não vale um chavelho furado" (esta é a versão suavizada. Ele não disse "«chavelho".). O verdadeiro poder é um reflexo; depende quase totalmente da confiança do presidente. Barack Obama entregara-me assuntos importantes para gerir desde o início do primeiro mandato, e quando me encarregou de supervisionar o Recovery Act de 2009, ou das negociações do orçamento com o senador Mitch McConnell, ou das relações diplomáticas com o Iraque, não me controlou. Acredito que desempenhei a função suficientemente bem para ganhar e manter a sua confiança. No final de 2014, solicitava os meus conselhos como sempre fizera, e parecia valorizá-los, o que significava que havia dias em que sentia que estava ao meu alcance mudar o curso da história, ainda que levemente, para melhor.

E, algures na coluna de automóveis daquela tarde, enquanto seguíamos pelas ruas de Washington, ia um carro com o assistente militar do vice-presidente, que tinha em sua posse a "bola de futebol nuclear", que tinha de estar sempre ao meu alcance. Era uma das poucas pessoas que detinham o controlo dos códigos que poderiam lançar um ataque nuclear contra praticamente qualquer alvo do planeta. Assim, uma lembrança das sérias responsabilidades do cargo e da confiança em mim depositada estava lá, 24 horas por dia, sete dias por semana.

Mas, apesar de tudo, era incapaz de fazer o que mais gostaria: abrandar aquele relógio-mestre, obrigar aqueles números piscantes a hesitar, dar a mim mesmo, à minha família e, em particular, ao meu filho mais velho, algum tempo para relaxar. Queria ter o poder de enganar o tempo.

A tradição dos Biden no Dia de Ação de Graças em Nantucket começou por ser um ato de diplomacia em 1975. Estava no meu primeiro mandato como senador, era pai solteiro de dois rapazes - o Beau tinha 6 anos e o Hunter apenas 5 - e começara a falar seriamente em constituir família com a Jill Jacobs. O Dia de Ação de Graças era o nosso primeiro feriado juntos, meu e da Jill, e tínhamos imensos convites. Os meus pais queriam que passássemos o feriado com eles em Wilmington. Os pais da Jill queriam-nos em Willow Grove, na Pensilvânia. Os pais da minha primeira mulher, que falecera com a minha filha bebé num acidente de carro poucos anos antes, queriam que levássemos os netos para o norte do estado de Nova Iorque. Fosse qual fosse a família que escolhêssemos, iríamos sempre magoar alguém, a última coisa que pretendíamos. Um dia, estava no gabinete do Senado a explicar esta encruzilhada ao meu chefe de gabinete, quando ele disse:

- O senador precisa de um Dia de Ação de Graças nuclear. Isto é, apenas a família nuclear. Wes Barthelmes era de Boston e, pela sua pronúncia do "a" final aberto, não percebi bem o que queria dizer até ele explicar que seria talvez mais fácil se nós os quatro - eu, a Jill, o Beau e o Hunt - fôssemos sozinhos. E sugeriu a ilha de Nantucket, a uma hora de ferry de Cape Cod, para sul. Eu e a Jill nunca lá tínhamos estado, mas decidimos avançar e transformar a viagem numa aventura.

Enchemos o meu Jeep Wagoneer com gasolina de 57 cêntimos o galão e enfiámos os rapazes e o cão no banco de trás para o que seria provavelmente uma viagem de seis horas até ao ferry em Hyannis, Massachusetts. Bom, seis horas é muito tempo para dois rapazes ficarem presos num carro, mas a Jill já se revelava uma cuidadora cheia de recursos. Levou todos os catálogos de brinquedos e roupa que encontrara, e quando o Beau e o Hunt começaram a ficar agitados, entregou-lhos. Passaram horas a folhear as páginas, e os rapazes começaram a fazer e a aperfeiçoar as listas de desejos para o Natal, para terem algo que enviar ao Pai Natal, no polo norte. A Jill disse-lhes que o fizessem com calma e que escolhessem as coisas certas; não havia pressa. Nantucket compensou oito horas de viagem. No fim de novembro fazia frio na pequena ilha, mas sentia-se o cheiro do ar salgado do Atlântico. A ilha ficara vazia, por isso, tínhamo-la praticamente só para nós. Quase todos os restaurantes e muitas das lojas estavam fechados. O centro era minúsculo, talvez cinco quarteirões quadrados, mas passámos horas a sondar as montras e a entrar nas lojas abertas para dar uma vista de olhos. Eu disse aos rapazes que comprava uma prenda para cada um. O que quisessem, desde que fosse razoável. Eles deram uma volta calmamente pelo centro.

O Beau, em particular, gostou da Murray's Toggery Shop, dos famosos Nantucket Reds; as calças eram feitas para desbotarem e adquirirem um tom rosa suave. O Hunt adorou a Nobby Clothes Shop, cujo dono o cobriu de atenções. Fizemos o jantar de Ação de Graças na Jared Coffin House, uma pousada com 130 anos, construída quando Nantucket era um centro de comércio da indústria baleeira, e depois ficámos a jogar damas à lareira. No dia seguinte, almoçámos num restaurante chamado Brotherhood of Thieves, fomos a um pequeno cinema, jogámos futebol na praia e voltámos à cidade para ver a inauguração das luzes da árvore de Natal. Explorámos a ilha de carro, e sempre que passávamos por uma torre de transmissão de rádio com uma grande luz vermelha no topo, eu mandava os rapazes baixarem-se no banco traseiro, para que o Monstro do Olho Vermelho não os visse. Divertimo-nos tanto que até fomos ver uma pequena casa do estilo típico saltbox sobre as dunas de Sconset Beach. Em 1975, o preço era demasiado elevado para o salário de um senador, mas tirámos uma fotografia no alpendre, por baixo de uma placa de madeira que dizia "Forever Wild" [Para sempre selvagem]. No regresso ao Delaware, já pensava voltar no ano seguinte.

Eu e a Jill casámo-nos um ano e meio depois, e a nossa filha, Ashley, nasceu decorridos quatro anos. O tempo parecia passar depressa. O Beau e o Hunt terminaram o liceu, depois a faculdade de Direito. O Hunt casou-se com a Kathleen em 1993 e tiveram três filhas. O Beau casou-se com a Hallie em 2002 e tiveram uma filha e depois um filho. Eu a Jill já não éramos apenas a mãe e o pai; éramos a "vó" e o "vô". A Ashley acabou a universidade e casou-se com o Howard. E todos os anos, com a família a aumentar, passávamos o Dia de Ação de Graças em Nantucket, ou "Nana-tucket", como diziam os netos, mesmo já com idade para falarem bem. A pequena viagem no Wagoneer cresceu para uma caravana de dois ou três carros, com os netos a mudar a sua lealdade entre a frota nas paragens. Depois havia a corrida final até ao ferry, e chocolate quente ou a sopa de amêijoas para a travessia.

Vivemos anos maravilhosos, bem como anos terríveis, mas independentemente do que acontecia, e dos percalços, deixávamos tudo de lado e celebrávamos o Dia de Ação de Graças em Nantucket. A viagem do feriado foi uma constante na vida dos nossos netos desde que ganharam consciência, e faziam questão de dizer como era importante para eles. No início de setembro começavam a aparecer pequenos bilhetes em casa, mesmo antes de as folhas mudarem de cor, escritos pelas mãos dos pequenos: dois meses para Nana-tucket. Cinco semanas para Nana-tucket.

Alguns com desenhos das casas onde tínhamos ficado, ou da praia. Duas semanas para Nana-tucket. Só cinco dias para Nana-tucket. As brincadeiras e os hábitos das primeiras viagens evoluíram para tradições de família imutáveis: fazer compras no centro, almoçar no Brotherhood, as idas à praia com a bola de futebol. Todos os anos voltávamos à pequena casa saltbox para a fotografia debaixo da placa de madeira. Aquelas imagens tornaram-se a marca da evolução da família, como as linhas que os pais fazem a lápis no caixilho da porta, para registar o crescimento, primeiro só de nós os quatro, depois cinco, oito, onze e após o filho do Beau, Hunter, nascer em 2006 e de o marido de Ashley, Howard, entrar para a família anos mais tarde, passámos a ser treze.

O grande fruto da viagem de Ação de Graças, ano após ano, continuava a ser as listas de Natal; era uma tarefa meticulosa, deliberada e séria. Ninguém se furtava e ninguém se apressava. Os catálogos costumavam aparecer a meio da viagem para norte, algures entre a Ponte Tappan Zee e Mystic, no Connecticut. Mas isso era o início. Depois do jantar, faziam-se longas sessões, fosse qual fosse a pousada ou a casa onde ficávamos. E só na noite após o Dia de Ação de Graças é que a Jill fechava as apostas, e toda a gente - crianças e adultos - tinha de lhe entregar a sua lista de Natal, com o máximo de dez itens, mínimo de dez itens. Eu ficava invariavelmente enrascado com os meus netos. O vô só tem dois! Outra vez!

O grande projeto da lista de Natal conheceu um pequeno obstáculo quando fui nomeado vice-presidente em 2009. Nesse ano, o clã voou junto até Nantucket no Air Force Two, o que me pareceu uma novidade bem-vinda, depois de todas aquelas horas a conduzir pela Interestadual 95 durante uma das semanas mais movimentadas do ano, e que achei que faria as delícias dos netos. Mas a viagem desde a Base Aérea Andrews até ao Aeroporto Nantucket Memorial dura pouco mais de uma hora, o que se revela insuficiente para folhear catálogos. Assim, no voo de regresso, terminadas as férias e depois de as listas de Natal desse ano estarem seguras nas mãos da Jill, os netos invadiram o camarote privado do Air Force Two em massa, desde a Naomi, de 15 anos, até ao Hunter, de 3. Tinham conversado e a conclusão fora unânime: aquele novo modo de viajar não ia funcionar.

- Vô, no próximo ano podemos ir de carro? - perguntou a Naomi, em nome do grupo.

PROMETE-ME, PAI
Joe Biden
Editora Clube do Autor
Nas livrarias a 7 de outubro

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