"Não se pode morar nos olhos de um gato", escreveu o poeta Alexandre O"Neill, que amava estes animais também pelo "faz festa, protesta, desembesta", que é como quem diz pela impossibilidade de alguma vez os vermos totalmente submissos aos nossos esforços de domesticação. Talvez por isso os vejamos tantas vezes enrolados nas pernas dos artistas, que, hoje como ontem, são tantas vezes os mais indomáveis dos humanos. De tão presentes na balbúrdia dos ateliês de nomes como Pablo Picasso, Georgia O"Keefe ou Matisse, tornaram-se com frequência motivo de inspiração e, decerto mais vezes do que imaginamos, insuspeitos "coautores" de algumas obras, deixando na tela uma pegada de tinta, tão leve como eles próprios. Partindo deste pressuposto, a Marcador acaba de lançar no mercado português um divertido livro - História da Arte em 21 Gatos (96 págs., 13,90 euros), com textos de Diana Vowles e de Jocelyn Norbury e ilustrações de Nia Gould. Um livro que é um jogo e simultaneamente um convite à descoberta de novas abordagens (o céu é o limite) da história da arte ocidental..Como tantas outras coisas na existência humana, tudo começou no Antigo Egito. Estetas requintados, os súbditos dos faraós tomaram-se de amores pela elegância destes animais e representaram-nos abundantemente em pinturas de parede, túmulos ou, de forma mais doméstica, em amuletos que deveriam atrair sorte e abundância a quem os usasse. Associados a vários deuses, eram invocados em orações como esta que os arqueólogos encontraram num túmulo do vale dos Reis: "Vós sois o Grande Gato, o vingador dos deuses, o juiz das palavras, o chefe dos soberanos e o governador do Círculo Sagrado; vós sois certamente o Grande Gato.".Nos séculos seguintes, a espécie nem sempre contou com tamanha veneração (na Idade Média, o imaginário medieval passou a associá-la, sabe-se lá porquê, aos segredos das alegadas bruxas), mas a sua utilidade como caçador de ratos, inimigos da despensa e da saúde humana, manteve-lhes o lugar "à mesa". Ou ao lado do cavalete, se em casa houvesse um artista. As autoras deste livro imaginam, pois, uma gata com brinco de pérola, ao estilo do holandês Vermeer, um roliço querubim de Boucher com bigodes e cauda, ou um gato cubista que teria feito as delícias de Picasso, que, ao longo da sua vida, terá tido quase tantos gatos como namoradas..Como tantas vezes acontece com a arte, este livro é, pois, um desafio a que olhemos de outro modo e ousemos imaginar o mais improvável. Ou que peguemos nós próprios numa folha de papel em branco e iniciemos a aventura. "Um gato com um chapéu de coco - pode ler-se - não levantaria uma única sobrancelha entre os artistas surrealistas. Mesmo acrescentando uma cauda de sereia decorativa, ou um par de pinças, não seria capaz de impressionar." Ou ainda, se o tema é a arte pop: "Este gato iluminado, atrevido e impertinente demonstra a atitude rock'n'roll que era a imagem de marca do movimento rebelde da arte pop. Apareceu com um Bang e um Wham na década de 50, altura em que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América tinham em mãos um boom industrial e muitos artistas pop tiraram proveito de técnicas mecânicas, tais como a serigrafia, para criar as suas imagens.".A brincadeira (tão válida para adultos como para crianças, desde que gostem de gatos) não retira a esta História da Arte em 21 Gatos rigor conceptual na abordagem de alguns dos principais movimentos artísticos ocidentais, desde a Antiguidade pré-clássica a propostas estéticas mais contemporâneas (como o minimalismo, a arte urbana ou, sendo as autoras britânicas, os Young British Artists, grupo que, no final da década de 80, reuniu nomes bem conhecidos como Damien Hirst, Sarah Lucas ou Tracey Emin). Para além de uma linha cronológica (ou friso felino) que permite aos leitores localizar no tempo artistas e movimentos, a obra explica de forma sintética, mas não superficial, conceitos tão complexos como a aparente naiveté do grupo Cobra (formado em 1948 por Karel Appel, Constant Nieuwenhuys, Asger Jorn ou Cornelis van Beverloo) ou a subversão do graffiti: "Não há como negar que os artistas de graffiti mais famosos levaram o seu instrumento de expressão da confusão das ruas para o sucesso comercial - uma pintura de Basquiat foi vendida por 110,5 milhões de dólares em 2017. No entanto, o graffiti mantém-se controverso para o público em geral. Em 2008, a Tate Modern de Londres convidou seis artistas internacionais para pintar murais gigantescos na sua fachada como parte da sua exposição de arte urbana. No dia de abertura da exposição, os membros do grupo londrino de arte urbana denominado DPM foram condenados à prisão pelo seu graffiti na mesma cidade.".O livro transmite-nos não apenas o amor das autoras pela história da arte como a sua incapacidade de resistir àquilo a quem chamam uma "boa gatitude". Apaixonada confessa por gatos, a ilustradora, com ateliê em Devon, Inglaterra, tem um site (www.niaski.com) , no qual podemos encontrar um pouco de tudo, de livros (como Portrait of the Artist as a Young Cat) a sacos de pano. A sua inspiração são naturalmente os cinco gatos que teve ao longo da sua vida: não por acaso, Sampson, Salvador, Socket, Frida e Pablo.