"A Grã-Bretanha não queria que Portugal entrasse na Grande Guerra"

O que se passou no mar português durante a Grande Guerra? É a esta pergunta que respondem António José Telo e Augusto Salgado, historiadores especialistas nesta área, em entrevista ao DN e à TSF.
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Em plena agitação da I República, Portugal envolveu-se deliberadamente na Grande Guerra, apesar de a Grã-Bretanha ter avisado que não o desejava. Era uma questão política, um projeto partidário dos republicanos radicais, dizem estes especialistas que pesquisaram em arquivos nacionais e estrangeiros e acabam de publicar o primeiro volume de A Grande Guerra no Atlântico Português - o segundo tomo está quase pronto - na editora Fronteira do Caos. Num conflito que mudou o mundo e trouxe os Estados Unidos para um novo papel na ordem internacional, Portugal era ignorado nas conversações e nem sequer foi informado pelos britânicos sobre a cedência do porto de Ponta Delgada aos EUA. Do Parlamento chegou a sair um plano megalómano, "delirante", para tornar a Armada portuguesa a terceira maior da Europa. No final, 23 navios alemães ficaram em mãos portuguesas, e entre eles a primeira Sagres, adaptada depois a navio-escola, e que está hoje em exposição em Hamburgo.

Como surgiu o interesse pela questão da Armada?

António José Telo (AJT) - A ligação à história naval é automática para mim. Há muito tempo que escrevo sobre o tema em geral e sobre Portugal em particular. No caso da Grande Guerra, a vertente naval tem sido descurada e o que se diz da guerra não corresponde à realidade. Este livro, que tive todo o gosto em fazer em conjunto com o comandante Augusto Salgado, aborda a problemática de uma perspetiva diferente. Como o título indica, falamos do Atlântico português. O que é que se passou? Que importância tiveram o Atlântico português e a frente naval nessa guerra global, à qual os contemporâneos chamavam, com toda a razão, a maior de todas as guerras, a Grande Guerra. E de facto era. Na altura foi um choque tremendo e, em certo sentido, ainda hoje vivemos na confusão tremenda do mundo que saiu da Grande Guerra.

O avô do comandante Augusto Salgado participou na Grande Guerra, está aliás a fotografia do cartão dele no livro. Ele era da marinha mercante?

Augusto Salgado (AS) - A guerra começa numa altura em que as entradas para a Marinha estavam nos valores mínimos, quase desde o princípio do século.

Em 1913 tinha havido só três candidatos?

AS - Exatamente. Há falta de oficiais, sargentos e praças. Para colmatar essa falta, foram criados os Auxiliares de Defesa Marítima, um caso semelhante ao que mais tarde, nos anos 1950 e 1960, se fez com a Reserva Naval. São elementos com alguma formação da marinha mercante ou da marinha de pesca, ou mesmo de clubes náuticos, incorporados e graduados em diversos postos. O meu avô, na altura com 34 anos - tinha nascido em 1880 - é um dos voluntários e tem o cartão número 1 de Auxiliar de Defesa Marítima. Ele vem do Clube Naval de Lisboa e é a partir daí que entra nessas funções.

Depois ficou na Marinha?

AS - Não fica. Está um primeiro ano nos navios patrulha da entrada da barra . Quando é necessário transportar o CEP - o Corpo Expedicionário Português - para França os navios vão ser ingleses. Era preciso haver a ligação entre as tripulações dos navios mercantes e os elementos portugueses do Exército. A Marinha indica um elemento que tem essas valências, que seja o representante do Estado nesses navios e o meu avô é um deles, porque sabe inglês. Apesar de haver várias restrições, nomeadamente a proibição de pernoitar, o meu avô vai casar com uma senhora belga que imagino que fosse refugiada em França. Não é ela a mãe do meu pai, que será de um terceiro casamento. Tenho uma ligação muito forte com todo este episódio.

Daí também o seu interesse?

AS - Sim, tinha muita documentação em casa. O meu início de carreira em termos de História tem sido o património cultural subaquático e a chamada Invencível Armada. Nesta altura de evocação deste grande conflito, houve a necessidade de trabalhar a área e eu aproveitei muita documentação que ele me deixou e que foi em parte utilizada no livro.

Defendem que a Grã-Bretanha não estava interessada em que Portugal perdesse o estatuto de neutralidade não declarada, que lhes permitia utilizar os nossos portos como queriam.

AJT - É verdade. Era a Inglaterra que alimentava Portugal, que garantia as ligações marítimas - a marinha mercante portuguesa, no máximo, cobria um quinto dos fretes. Era a Inglaterra que financiava Portugal e era essencial para manter o poder político em Portugal. Desde o primeiro momento, os radicais republicanos querem provocar a beligerância e têm de provocá-la contra a Inglaterra. Mas esta não queria a beligerância portuguesa e di-lo claramente, com todas as letras. Não quer, não está interessada, não tem vantagem nenhuma nisso.

Porque tem as vantagens sem as desvantagens?

AJT - O que interessava à Inglaterra era o uso do Atlântico português e qualquer governo, radical ou não, deu todas as facilidades, mesmo aquelas que excediam a lei. Os navios dos beligerantes só podiam ficar três dias num porto neutral e os navios ingleses ficavam o tempo que queriam.

E mais do que três de cada vez?

AJT - Sim, e ficavam claramente em funções militares. Havia um esquadrão de cruzadores ou em Cabo Verde ou na Madeira e isso nunca levantou problemas. A Inglaterra queria sobretudo que um potencial inimigo não pudesse utilizar o Atlântico português e isso estava garantido. Sabia que a beligerância só iria causar problemas. Os radicais queriam manter-se no poder e precisavam de montar a sua relação com a Inglaterra. Provocaram a beligerância, aproveitando-se da França, e isso foi uma coisa que a Inglaterra nunca lhes perdoou.

A França estava interessada em que Portugal entrasse na guerra?

AS - É mais do que um interesse direto, é uma tentativa de no futuro ganhar posição.

De enfraquecer o poder que a Inglaterra tinha sobre Portugal?

AS - E também havia a questão de serem duas repúblicas. Há algum apoio de regime entre os dois estados.

AJT - Tudo isto tem muito a ver com políticas internas, seja a portuguesa, seja a francesa. Quem estava no poder em França desde o começo da guerra era Aristide Briand [1862-1932], um radical, muito próximo de Afonso Costa. Aliás, a lei da separação da igreja, a declaração de guerra dos radicais à igreja, é inspirada diretamente na lei de Briand. Depois foi afastado e o governo francês do final da guerra já não tinha boa relação com Portugal. Mas no início havia uma aproximação natural. Briand, ao aceitar fazer o jogo dos radicais portugueses, queria consolidar o poder desta república radical em Portugal e aumentar o poder da França na coligação aliada. A Inglaterra não gostava de qualquer dessas duas coisas, não gostava dos radicais, não os queria no poder, suportava-os porque não tinha outra solução. Não gostou nada de ser forçada a beligerância. Ao contrário do que aconteceu na II Guerra Mundial, a Inglaterra apoiou muito pouco, em termos navais, a ação portuguesa. Deu algum apoio na formação do sistema de defesa de portos mas muito pouco em material. Quem vem a dar, em termos navais, mais material e equipamento a Portugal são a França e os Estados Unidos.

O Parlamento aprova um aumento exponencial da Armada portuguesa que fica só em decreto, nunca se concretiza.

AS - Entre os oficiais de Marinha há uma corrente muito forte que sabe o que quer. A questão tem a ver com financiamento. Os meios navais são caros, ainda são e eram na altura, e portanto é preciso estabilidade política e financeira para adquirir. Não havendo, é impossível ter esses meios. E é preciso uma estrutura, não servia só comprar os navios - onde os manter? É preciso todo um sistema de apoio desses meios.

O próprio sítio onde ir comprar também era difícil, não?

AS - Depois de a guerra começar não havia nada a fazer.

Cada país construía só para si?

AS - Mesmo antes da guerra só a Itália consegue vender-nos um, mais três submarinos e depois um pequeno contratorpedeiro que vamos encaminhar para Inglaterra, porque o acordo não permitia passar diretamente de Itália para lá. A verdade é que nós não tínhamos os meios. Nós vamos usar arrastões de pesca para muitas funções e os outros países também o fazem. Ninguém estava à espera da ameaça submarina nem da ameaça de minas. É necessário ter navios para o fazer e para arrastar nada melhor do que um arrastão de pesca. Obviamente, isto tem de ser sempre balanceado entre as necessidades de abastecimento e as militares.

A questão tecnológica é decisiva, como a utilização da eletricidade e do combustível líquido. Este é um dos aspetos que mudam o mundo?

AJT - A Grande Guerra é um acelerador da mudança, em todos os campos mas em particular no tecnológico. É a altura em que múltiplas tecnologias chegam à maturidade e começam a produzir resultados. Isso é notório no campo naval. É a maturidade da guerra submarina que surpreende toda a gente, a começar pela Alemanha, que tinha uma frota submarina mínima quando começou a guerra. Ninguém esperava a dimensão daquela ameaça que põe em risco as comunicações oceânicas. É o nascimento também do poder aeronaval. Portugal é diretamente envolvido nisto. A guerra submarina liga-se ao Atlântico português e o poder aeronaval é utilizado pelos Estados Unidos ao criar a base naval dos Açores, em 1917, uma estação de hidroaviões para os fuzileiros americanos. Portugal é diretamente envolvido e vai receber apoio dos Estados Unidos, nos Açores, e da França, com a base aeronaval em São Jacinto, Aveiro. É uma novidade importada à qual Portugal se adapta com dificuldade, principalmente porque não conta com o apoio da Inglaterra - ou conta com um apoio muito limitado. No ano final da guerra, a Inglaterra já encara com mais simpatia o governo português e passa a ceder uma série de coisas. Toda a guerra naval em Portugal é de improviso, de encontrar soluções adaptadas. Ao mesmo tempo, há um empenhamento pouco intenso dos submarinos e dos meios inimigos no Atlântico português. Pelos nossos cálculos, as ações que se dão aqui são entre 5 a 10 por cento do total de combates em termos navais.

Ainda atacam o Mindelo, em Cabo Verde, e o Funchal.

AS - Há dois ataques na Madeira, um em Ponta Delgada e também em Cabo Verde. Há uma improvisação, e cada vez que há qualquer avanço francês para fazer a base em Leixões ou a base aérea [S. Jacinto], o governo português pede sempre autorização a Inglaterra, mas eles às vezes falam diretamente sem dizer nada ao governo português. É o caso de Ponta Delgada, quando perguntam: mas que base americana? Não havia peças de artilharia para defesa da costa nem dos nossos navios, que são adaptados com pequenas armas, como canhões revólver de 37 mm. Um submarino alemão pode ter uma peça de 150 mm. É uma disparidade como uma fisga para uma metralhadora. Podemos dizer que tivemos sorte nesses 5 por cento. Nas águas atuais de jurisdição irlandesa, incluindo a ZEE, há mais de mil naufrágios só na I Guerra Mundial. E nós, numa área daqui aos Açores e Cabo Verde, temos cerca de 250 afundamentos. Facilitou-nos o facto de não haver uma presença acentuada do inimigo, porque se tivesse havido mais submarinos alemães a operar, o resultado tinha sido diferente.

Os números que dão no livro são surpreendentes. O fundo do Atlântico está cheio de destroços, porque foram às centenas de afundamentos por mês.

AJT - Uma das vantagens deste livro é que recorre muito a arquivos estrangeiros - franceses, americanos, ingleses, além dos portugueses, como é evidente. Isto permite ter uma visão diferente do peso relativo e da história escondida, porque a história oficial não corresponde à realidade. Este livro procura, utilizando essas fontes estrangeiras, dar uma visão global, mais real, e explicar o que se passou. A Inglaterra tratou sistematicamente Portugal com grande desprezo. Negociava as coisas mais importantes nas costas de Portugal e nem sequer se lembrava de informar. Nem sequer informou Portugal de que tinha cedido uma base dos Açores, de Ponta Delgada, aos Estados Unidos. E o mesmo em relação a tudo. Em contrapartida, o governo português, sempre que a França ou os Estados Unidos lhe diziam qualquer coisa, ia sempre perguntar, pedir autorização e conformar: "Vocês autorizaram isso? Já agora, da próxima vez não se esqueçam de nos informar." Havia esta relação.

Isso é quase caricatural, não é?

AS - Mas é o que os documentos indicam.

AJT - É caricatural mas é normal. A Inglaterra tinha-se afastado de Portugal depois da proclamação da República e os radicais queriam uma reaproximação, era uma preocupação central. Conseguiram exatamente o contrário, mas a intenção era essa. Os nossos radicais eram absolutamente irrealistas em tudo o que diz respeito à ação dos militares. Tinham sonhos delirantes, nunca faziam um projeto coerente com os recursos e os meios nacionais. Pensavam sempre numa dimensão gigantesca. O Plano Naval de 1912, transformado em lei, foi votado por grande maioria. Era legal, isto é, não cumprir aquilo era ilegal. Se esse plano tivesse sido executado, Portugal era a terceira marinha europeia!

E não estava nem nas primeiras cinco.

AJT - A parte triste é que o Plano não foi executado mas, como os recursos estavam empenhados nisso, não foram compradas coisas que seriam bastante úteis, desde pequenas embarcações a artilharia, torpedos, etc. Quando a guerra começou, não havia nem o grande nem o pequeno, faltava tudo.

Nesse Plano estavam previstos grandes couraçados, que aliás se revelaram pouco úteis ao longo da guerra.

AJT - Estavam previstos seis dos maiores couraçados da altura.

AS - Nós nem tínhamos guarnições para o que já existia, quanto mais para mais seis navios.

Quantas pessoas fazem parte da guarnição de um grande couraçado?

AS - Quase três mil, creio que é o que tinha o Queen Elisabeth.

AJT - Mais de dois mil, sim.

Não dá para rir, porque isto é uma coisa gravíssima. Tanto dinheiro mal canalizado.

AS - Não foi utilizado, neste caso, porque nem sequer havia dinheiro.

AJT - O adido naval britânico em Lisboa dizia "isto não é para levar a sério, isto é política interna". E de facto por trás desses planos, em que Portugal era posto a par da Grã-Bretanha, com grande poder, estava uma necessidade de valorização interna. É a mesma coisa de enviar para França não uma divisão mas um Corpo de Exército. Ou de dizer aos coitados dos soldados e marinheiros portugueses em África "têm de passar à ofensiva", quando todos os comandantes locais diziam "nem pensar".

É uma megalomania?

AJT - É.

Isso terá desaparecido do ambiente hoje?

AS - Podemos ter os pés mais assentes na terra. Já não temos o Atlântico português que referimos no livro, que vai até Cabo Verde, e onde efetivamente houve operações navais, submarinos alemães a operar. O Espadarte, que vem antes da guerra, é o primeiro submarino operacional na Península Ibérica. É algo que impressiona mesmo os espanhóis.

Os espanhóis ainda não tinham?

AS - Não. Eles trazem para Lisboa um couraçado durante a revolta de 1915 mas sabem que aquele pequeno meio poderia afundá-lo. São armas necessárias e importantes para um país que tem um espaço atlântico, um espaço marítimo tão amplo.

O lado caricatural tem que ver sobretudo com os políticos?

AJT - Sim, embora os políticos o fizessem por causa de um projeto partidário. Não eram completamente mentecaptos. Sabiam o que estavam a fazer e faziam-no para forçar a beligerância, num projeto partidário. Era uma maneira de transformar a república numa república radical, de manter os radicais no poder contra os republicanos moderados que eram a maioria aquando do 5 de Outubro. Isto tem de ser entendido a esta luz e a sua menção na atualidade é muito importante. Portugal hoje continua a ter um espaço marítimo imenso, muitas vezes o território continental e insular. Ainda estão em desenvolvimento as tecnologias que permitam a sua exploração, mas toda a gente sabe que as grandes riquezas do futuro estão no mar. E o espaço marítimo português é dos mais importantes em termos da União Europeia. Numa perspetiva sem dúvida diferente, significa isto que o poder naval português é hoje mais importante do que nunca.

AS - Há um espaço muito amplo e é preciso primeiro saber o que lá temos e depois temos de garantir que ninguém o vai explorar sem o nosso consentimento. Mais ainda com a extensão da plataforma continental.

Falam também no livro sobre os navios apresados aos alemães que ficam para Portugal. Foram sendo apresados ao longo da guerra?

AS - Foi tudo em simultâneo. O apresamento desses 72 navios alemães e dois austro-húngaros, que vão ficar a servir não só Portugal mas também os nossos aliados, leva a Alemanha a declarar-nos guerra formalmente, em março de 1916, depois de termos andado aos tiros com os alemães em África,

Entre eles a primeira Sagres?

AS - A Sagres era um veleiro comercial e estava nos Açores. Foi apresada e ficou a servir a Marinha. Neste momento está em exposição no porto de Hamburgo com o nome original que é Rickmer Rickmers. Já tive oportunidade de visitar, está pintado de verde. No porão tem a história do navio e falam no período em que esteve na nossa Marinha.

Foram ainda largos anos até à construção da atual?

AS - A segunda Sagres vem depois da II Guerra Mundial, foram mais de 30 anos ao serviço da Marinha portuguesa.

Os navios apresados não ficaram todos para Portugal?

AJT - Ficámos só com uma pequena parte, cerca de 20 por cento. Depois foram acrescentados mais uns, chegou a 30 por cento. A Inglaterra declarou que tratava dos navios e da sua divisão. Isso era muito importante para Portugal porque se morria de fome, não havia fretes. Não havia navios para transportar os cereais, a comida importada. E como o governo dependia da estabilidade em Lisboa que, por sua vez, dependia dos alimentos importados, era básico também para a política interna.

Esses navios foram utilizados em Portugal bastante tempo?

AS - Depende. Nem todos os navios foram utilizados por nós. Encontrámos algo inédito: três navios que vão servir a marinha belga e antes não tinham sido identificados. Infelizmente, os três foram afundados. Estes navios, por norma, levavam guarnições portuguesas mas também encontrámos exemplos de elementos de artilharia ingleses nos navios a funcionar para os ingleses. Os franceses e os belgas levavam um comandante francês ou belga a bordo dos respetivos navios. São navios que vão responder às necessidades dos Aliados, e abril de 1917 é o mês em que há mais afundamentos de navios aliados. Os navios vão precisar de algum tempo de aprontamento, porque estiveram parados desde o início da guerra, de 1914 até 1916, e também devido a algumas sabotagens provocadas pelas tripulações. Muitos só em 1917 estão a funcionar. Há navios que se vão perder, outros vão funcionar para a Marinha, alguns vão continuar depois.

Com a Grande Guerra, a Europa deixa de ser o centro e os Estados Unidos ganharam uma força inédita?

AJT - Mudou tudo. O Médio Oriente atual, a África atual, a China nasceram na Grande Guerra. E os Estados Unidos também. Foi a primeira vez que se viram com um papel ativo global, empenhando-se numa guerra europeia. Até então, havia um princípio básico americano: não se meter nas questões europeias. Não era por isolamento, porque metiam-se nas questões do continente americano e inclusive diziam que os europeus não deviam intervir aí. Mas não se metiam nos assuntos europeus. Foi a primeira vez que houve a ambição de criar um papel hegemónico para os Estados Unidos, uma nova ordem internacional à volta dos Estados Unidos. Toda a revisão dos valores da ordem internacional vai partir principalmente do presidente Wilson [Woodrow Wilson, 1856 - 1924]. É um ataque direto não tanto à Alemanha mas aos poderes europeus. Isso é muito notório e passa pelos Açores. Quando os Estados Unidos vão para os Açores, não é a pensar na guerra submarina mas a pensar na importância que os Açores têm futuramente para eles se quiserem interferir, como queriam, nos assuntos europeus, no Mediterrâneo e no Médio Oriente. Essa primeira base tem esse sentido, o que é aliás muito bem entendido pela Inglaterra e é negociado. A vantagem estratégica dos Açores é aproveitada pela Inglaterra a seu favor. Portugal recebe muito pouco, mas a Inglaterra recebe muito, incluindo levar as escoltas anti-submarinas americanas para a Europa, em troca de aceitar a presença americana nos Açores. O espaço português é estrategicamente aproveitado pela Grã-Bretanha sem ligar absolutamente nenhuma a Portugal, sem sequer lhe dar conhecimento de que está a acontecer.

Vão continuar as vossas investigações?

AS - Juntos ainda não sabemos, mas em termos individuais estou a trabalhar numa série de áreas que têm a ver com o património cultural subaquático. Um destes 72 navios está afundado na entrada da barra do Tejo. É o Patrão Lopes, um navio de salvamento que vai ter um papel importante na Marinha portuguesa até 1936, quando se afunda. Eventualmente vou começar com a II Guerra Mundial porque temos aviões, navios e submarinos afundados nesse período nas nossas águas. O trabalho não para.

AJT - Este livro inseriu-se numa linha de investigação que está a decorrer, mete múltiplos investigadores à volta da Grande Guerra. Foi já publicado livro O CEP, Militares Sacrificados pela má Política.

De que é coautor também?

AJT - Com o tenente-coronel João Marquês de Sousa. Vem aí em breve a publicação de um volume sobre África, feito por mim em conjunto com o coronel Nuno Lemos Pires. E haverá um outro sobre a parte final do CEP e o final da guerra, ou seja, sobre o difícil nascimento desse mundo novo, muito diferente do que se pensava, a grande confusão que a guerra vai abrir, não só no caso de Portugal mas em toda a Europa. No final da guerra, havia doze revoluções e 14 guerras civis na Europa. A guerra prolonga-se por muitos anos, quer na Europa quer noutros continentes.

Perfis dos autores

António José Telo (1952) é professor catedrático de História na Academia Militar e é autor de uma vasta obra na área da História, Defesa e Relações Internacionais, incluindo 20 livros e mais de 120 artigos e colaborações. Galardoado com o Prémio John dos Passos pela História Contemporânea de Portugal - do 25 de Abril à Atualidade.

Augusto Alves Salgado (1965), capitão-de-mar-e-guerra, é doutorado em História dos Descobrimentos pela Faculdade de Letras de Lisboa e tem vários livros publicados. É professor de História Naval na Escola Naval professor na pós-graduação de História Marítima no Instituto de Estudos Superiores Militares. Mergulhador e fotógrafo subaquático há mais de 30 anos.

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