A Ciência abre a correspondência secreta de Maria Antonieta
Há mais de 150 anos que o mistério das cartas rasuradas de Maria Antonieta alimentava a curiosidade de historiadores e investigadores. Agora, o Centro francês de Investigação da Conservação de bens culturais (CRC) acaba de dar resposta a uma grande parte da incógnita, num artigo, publicado no início do mês, na revista científica Science Advances.
No texto, os responsáveis da investigação relatam como os Arquivos Nacionais de França lhes apresentaram o desafio, pela primeira vez, há cerca de sete anos. Sobre a mesa, quinze cartas escritas por Maria Antonieta e o conde sueco Axel de Fersen, entre julho de 1791 e agosto de 1792, quando a monarca já se encontrava detida no palácio parisino das Tulherias, depois da precipitada fuga de Versalhes e quando qualquer comunicação com o exterior era arriscada e muito limitada. Em todas as missivas, vários parágrafos ou linhas tinham sido rasuradas ou intencionalmente modificadas por um misterioso censor. Foi assim que estas cartas chegaram às mãos do Estado quando este adquiriu a correspondência do conde sueco, incluída num lote de sessenta documentos vendidos por um dos descendentes do aristocrata nos anos 80 do século passado.
Axel de Fersen e Maria Antonieta encontraram-se pela primeira vez num baile de máscaras na Ópera de Paris, por volta dos finais de 1770, pouco anos depois da chegada da, então, jovem princesa austríaca à corte francesa. Os rumores de um romance salpicaram, desde então e durante séculos, aquela que foi uma das amizades mais íntimas da esposa de Luís XVI. Nascido em 1755, como Maria Antonieta, Fersen pertencia ao círculo mais próximo da rainha, um reduzido grupo de amigos com os quais partilhava a intimidade do palacete do Pequeno Trianon, o "jardim secreto" da fatídica soberana em Versalhes.
Apesar de longos períodos de ausência, a relação entre o conde sueco e a rainha francesa iria prolongar-se para lá da queda da monarquia com a tomada da bastilha em 1789. Dois anos depois dos revolucionários começarem a guilhotinar a velha ordem monárquica nas praças de Paris, o conde de Fersen seria um dos organizadores da tentativa falhada de fuga da família real para Varennes que terminaria com a detenção do casal de monarcas. A correspondência entre os amigos íntimos é um dos últimos testemunhos da rainha antes do seu destino terminar na guilhotina, depois de ter inflamado ódios e paixões. Conspiração, segredos de Estado ou novos planos de fuga, mas também a possível confirmação de Fersen como amante da rainha, eram algumas das interrogações da investigação do CRC sobre as palavras e frases ocultas dos manuscritos.
A análise da correspondência rasurada, no quadro da investigação do CRC batizada Rex, revelou duas características comuns em todos os documentos. Por um lado, as palavras não tinham sido apagadas, mas apenas riscadas, de forma intencional, para que certas informações não pudessem passar à posteridade, embora permanecessem sobre o papel. Por outro lado, a intervenção do censor das cartas foi metódica ao ter dissimulado a escrita original com uma perfeita sobreposição de letras, utilizando-se de uma tinta grossa, muito negra e absorvente, e que representava agora o maior obstáculo para os investigadores. O objetivo da pesquisa passava assim por tentar encontrar um método científico para distinguir as tintas e tornar legíveis as frases e palavras censuradas, mas sempre sem danificar o documento.
Depois de longos debates e análises, os cientistas apostaram com êxito na "espetroscopia de fluorescência de Raios X", uma técnica que permite identificar a composição de cada tinta e detetar os seus vestígios, complementada com o recurso a uma série de programas de processamento de dados que permitiram analisar os resultados finais e decifrar muitas das palavras ocultas. Os resultados eram, a priori, e pela primeira vez na história, inquestionáveis. As palavras reveladas pelo método dos investigadores - "bem-amado", "terno amigo", "a liberdade de nos vermos" ou "amo-te loucamente" - acabariam por comprovar a relação sentimental entre a rainha e o conde sueco. "A intensidade da linguagem amorosa empregue nas cartas é surpreendente porque já se conheciam há muitos anos. É como se estivessem ainda na fase de enamoramento. Maria Antonieta e Fersen trocavam cartas muito extensas nas quais falavam, por exemplo, de temas políticos e, subitamente, surgem estas frases censuradas que são, digamos, a parte mais espontânea. Temos a sensação de estar a ouvi-los quando estas cartas foram escritas há mais de duzentos anos", afirma Isabelle Aristide, historiadora e conservadora dos Arquivos Nacionais de França, que se dedicou a contextualizar os resultados do estudo. Mais prudente, a investigadora do CRC, Anne Michelin, coautora da investigação científica, explica que "é preciso recordar o contexto revolucionário destas cartas, trata-se de uma situação de crise, que vai condicionar a escolha do vocabulário e o que se escreve. Maria Antonieta é consciente de que a sua situação piora de dia para dia e isto tem um impacto sobre a sua escolha de palavras. Ela já utilizava este vocabulário com as amigas, mas é claro que existia uma relação de afeto profundo entre eles. Mas, mesmo assim, eu não poderia afirmar rotundamente que os dois eram amantes, simplesmente porque não fui testemunha direta da relação, remata.
O projeto do CRC, um serviço de investigação que associa o Museu de História Natural, o Centro Nacional de Investigação Científica e o Ministério da Cultura franceses, tinha também como objetivo descobrir a identidade do censor das cartas de Maria Antonieta e resolver assim outro dos mistérios com que esta correspondência tinha entrado na História. Até agora, a hipótese privilegiada e que os investigadores referem no artigo científico, era de que um sobrinho-neto de Fersen, o Barão Klinckowström, tivesse rasurado e censurado os textos originais na segunda metade do século XIX para tentar proteger a reputação da família. Mesmo o célebre escritor Stefan Zweig faz referência, na sua biografia de Maria Antonieta publicada nos anos 1930, a, "duas notas rasuradas com tinta pela mão pudibunda do descendente do famoso fidalgo", ao reunir em vários capítulos do livro o conteúdo legível das cartas de Fersen, conhecidas muito antes de passarem a ser propriedade do Estado.
Recorrendo à grafologia, os investigadores descobriram que alguns dos documentos atribuídos a Maria Antonieta, eram, na realidade, cópias redigidas pelo próprio Fersen. Uma prática habitual nesta época, como assegura a equipa do CRC, quando se faziam duplicados das missivas importantes por questões políticas ou administrativas. Mas ao comparar mais tarde a composição da tinta das cópias realizadas por Fersen com a das letras que foram sobrepostas pelo censor para dissimular o conteúdo original, os cientistas conseguiram finalmente revelar que os dois supostos autores das modificações se tratavam de uma única e mesma pessoa. O sobrinho neto do conde era assim absolvido pela ciência. Relativamente a Fersen, a equipa do CRC afirma, no seu artigo, que a censura do aristocrata pretenderia proteger a honra da rainha, ou simplesmente, defender os seus próprios interesses.
Foi com esta afirmação, em tom humorístico, que a conservadora dos Arquivos Nacionais, Isabelle Aristide, defendeu o trabalho dos cientistas na imprensa francesa. Os autores da investigação, asseguram também na sua publicação que o mais importante nos resultados não era confirmar a relação sentimental de Maria Antonieta e Axel de Fersen, mas restaurar a integridade da correspondência para facilitar uma leitura histórica da mesma e retraçar o seu particular procedimento de redação e transmissão. Nas conclusões do projeto destaca-se, ainda, a importância deste testemunho como um exemplo de como a sociedade da época teve que gerir as emoções e incertezas provocadas pelo colapso do antigo regime.
As palavras sentimentais trocadas entre a rainha de França e o seu amigo íntimo faziam também eco dos acontecimentos sociais e da atualidade política. Depois do artigo científico publicado em Science Advances, a transcrição total de todas as frases e linhas censuradas integra agora um livro publicado esta quinta-feira pela editora francesa Michel Lafon, assinado pela historiadora Isabelle Aristide e intitulado: Maria Antonieta e Axel de Fersen - correspondência secreta.
O livro apresenta a correspondência, agora completa, entre os dois amantes expostos aos raios X, no seu contexto e com uma interpretação muito detalhada. A equipa do Centro de Investigação para a Conservação recorda, no entanto, que o mistério prossegue já que só 8 das 15 cartas deram resultados positivos depois de terem sido submetidas à técnica da fluorescência dos raios X. Se, durante o anúncio da descoberta, os investigadores sublinhavam a necessidade de uma reflexão ética sobre o facto de revelar segredos que resistiram ao passar da história, no artigo científico não escondem que, se o conde de Fersen quisesse fazer desaparecer para sempre os vestígios da sua estreita amizade com Maria Antonieta poderia ter, por exemplo, queimado as cartas com a versão censurada da correspondência.
"Maria Antonieta e o conde Axel de Fersen trocaram muitas mensagens íntimas, coisas que não se sabiam naquela época e que Fersen quis esconder. Claro que nos interrogámos se não estaríamos a entrar no quarto sem bater à porta. É evidente que tratar este tipo de documentos é algo delicado. Uma grande parte da informação são conteúdos amorosos, mas acredito que esta relação é sublimada nestas cartas", assegura Isabelle Aristide. A autora da obra que detalha agora os resultados da investigação ressalta também o interesse de Fersen em não riscar da história a totalidade da correspondência, "o conde também falava dele nas suas cartas, porque ele não era um simples amante da rainha, era um representante do rei da Suécia e queria ser tratado como um diplomata, como alguém importante nas cortes europeias.
Se Fersen optou por não destruir as cartas foi talvez por razões sentimentais, mas também para garantir que o papel que teve na História pudesse passar à posteridade". Isolada do mundo por uma revolução que tentava compreender através das cartas de Fersen, Maria Antonieta seria executada na guilhotina em Paris em 1793. O conde sueco seria linchado por uma multidão em fúria em Estocolmo dezassete anos depois, sem imaginar que a censura das cartas da sua "bem-amada" acabaria por converter-se na prova histórica da relação que tentou ocultar para a posteridade.
A físico-química francesa e coautora da investigação às cartas de Maria Antonieta explica o método utilizado para recuperar as mensagens rasuradas. Raios X e processamento de dados fazem com que a tinta do censor deixe de ser permanente.
O que sentiu quando conseguiu ler pela primeira vez as frases censuradas?
Nós trabalhamos com documentos importantes do passado que incluem informações que estão ocultas há muitíssimos anos. É muito satisfatório chegar ao fim desta história, porque demorámos muito tempo a encontrar a boa técnica e o procedimento posterior para conseguir ler os resultados. Para nós é uma vitória ter superado este desafio científico.
Porque optaram pelo método de espetroscopia de fluorescência de raios X (XRF)?
Para nós tratava-se da técnica mais adequada, pois as tintas analisadas são ferro-gálicas, compostas por sulfato de ferro misturado com taninos. Este sulfato de ferro não é puro, é de origem mineral, e encontrámos outros elementos misturados, como o cobre ou o zinco. Dependendo da sua fabricação, a composição das tintas poderia ser ligeiramente diferente. E era isso que procurávamos. Concentrámo-nos no XRF pois é precisamente uma técnica que permite aceder à composição das tintas. Numa primeira fase do projeto, começámos a testar outras técnicas, mas a tinta utilizada para modificar as frases era muito grossa e a sobreposição das letras era perfeita, fazendo coincidir ao milímetro o traçado das duas tintas, o que representava um grande obstáculo para o nosso trabalho.
Esta técnica não é nova. De que forma foi adaptada a esta pesquisa?
Trata-se de uma técnica utilizada em muitos outros setores. A novidade tem a ver com o tratamento dos dados que obtivemos a partir da análise dos documentos. O nosso trabalho centrou-se em estabelecer uma metodologia com diferentes objetivos, do mais simples ao mais complexo, para propor soluções aos obstáculos que constatámos nas análises de cada uma das cartas.
Esta metodologia abre novas portas ao nível da investigação deste tipo de documentos antigos?
É uma técnica que se pode continuar a utilizar para casos similares de textos rasurados ou censurados, mas o importante é que a metodologia que estabelecemos possa ser aplicada a muitas outras áreas. O importante é que conseguimos responder à pergunta de como separar duas informações sobrepostas.
Porque é que no seu artigo se mostra prudente à hora de afirmar que Maria Antonieta e o conde de Fersen eram amantes?
Eu não sou historiadora, o meu trabalho não passa pela interpretação destes textos, e acredito que também não fosse o objetivo principal desta investigação, ainda que fosse o que despertou mais entusiasmo. O contexto dos documentos é muito particular, trata-se de um contexto revolucionário, de crise, que se reflete no vocabulário empregue e na escolha das palavras. Maria Antonieta está consciente de que a sua situação piora de dia para dia, e isto tem um impacto na seleção de palavras. Para além disso, na sua correspondência a monarca também utiliza expressões como "meu coração". Ela já utilizava este tipo de vocabulário, ainda que seja um estilo algo invulgar por parte de uma rainha. Mas é evidente que existe uma relação de afeto profundo entre os dois correspondentes. Mas, mesmo assim, não poderia afirmar que eram amantes, simplesmente porque não estava lá e tudo o que posso ver é um simples texto. A relação entre eles é uma parte da história destes documentos, mas não a totalidade. Os historiadores ainda têm muito que contar.
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