A casa cor-de-rosa onde o padre Gama espantava os espíritos
A campainha dos números 463 e 661 bem pode tocar, que não há ali quem abra a porta, neste domingo. O "padre" Marcelino Humberto Gama foi para a aldeia do Cadaval, em Murça (Vila Real), descansar da correria que têm sido os último dias, desde que foi detido, na sexta-feira, por suspeita de violação enquanto praticava exorcismo. "Se quiserem vão lá ter com ele, que ele fala com toda a gente", avisa um amigo e vizinho, também ele trasmontano, que não quer ser identificado e é o único que por ali o defende. "Se isto me surpreende? Não. Elas vêm aí exibir-se, queixar-se dos maridos, que eles não fazem isto nem aquilo. Praticamente metem-se debaixo dele, à espera de lhe tirar depois uns 100 ou 200 mil euros". A versão não bate certo com as notícias dos últimos dias, desde que a Polícia Judiciária revelou que o crime de violação terá ocorrido na quarta-feira passada. "O arguido, aproveitando a sua atividade de exorcista e explorando a fragilidade da vítima, especialmente vulnerável, constrangeu-a à prática de atos sexuais de relevo, após a ter colocado na impossibilidade de resistir", refere o comunicado da PJ.
A casa cor-de-rosa onde o ex-padre se dedica há anos à prática de exorcismo só tem uma vivenda próxima, mas por esta altura desabitada. Quem mora na Estrada de Minde habituou-se há anos a ver as filas de carros estacionados, um movimento que cresce no verão, com a chegada dos emigrantes. Todos sabem do gosto pelos automóveis que o "padre" Gama exibe, e de cuja coleção só uma pequena parte está à porta, entre árvores e plantas de um jardim bem cuidado. Estão estacionados três carros, mas na cave haverá mais, topo de gama. "Ele cada dia anda num carro diferente", conta ao DN uma moradora nas proximidades, que - à semelhança do que sucede com todos os populares com quem falamos - não quer ser identificada. Encontrava-se por vezes com a figura no café das bombas de gasolina, a dois passos.
Todos os dias o "padre" Gama tem o hábito de tomar um café pela manhã na Petrodaire, a cafetaria do posto de abastecimento de combustível que regista grande movimento nesta manhã, à conta da lavagem de carros que complementa o serviço. Os funcionários e clientes habituais cruzam-se com ele, mas não há grande empatia na forma como o descrevem. "Normalmente passa uma semana aqui, outra em Murça. Mas quando aqui está é sempre um corrupio", conta ao DN um dos que o encontra algumas vezes, "aqui e por aí, nos copos".
Segundo a vizinhança, a maioria dos potenciais clientes do "padre" Gama "não é de Fátima" (onde todos sabiam da sua existência), mas antes gente que vem de todo o país, pois que a fama de aliviar quem traz o diabo no corpo vem de longe. Tanto mais que esta não é a primeira nem a segunda vez que o ex-padre Gama é acusado de abusos sexuais a mulheres durante sessões de supostos exorcismos. Mas sempre negara qualquer agressão desde as primeiras queixas, que remontam a 2004. Ao longo destes 14 anos o famoso ex-padre, afastado pela Igreja católica, continuou sempre a dar consultas em vários pontos do país, incluindo Fátima, onde tem residência fixa.
Marcelino Humberto Gama, 79 anos, é natural de Mascarenhas, no concelho de Mirandela. Estudou no seminário (tal como o irmão mais novo, José) e foi ordenado padre em 1965, pertencendo à Congregação Marianos da Imaculada Conceição. Acabaria por ser afastado sete anos depois, pela Igreja Católica, "por motivos graves", quando se encontrava em Inglaterra, já depois de ter estado também nos Estados Unidos da América, onde diz ter sido professor. "Consta que ocupou altos cargos, até no Consulado", conta uma cliente habitual do café vizinho. Embora afastado da Igreja, continuou a usar as vestes sacerdotais - e a vestir o cabeção (o colarinho branco) à volta do pescoço - e praticar atos religiosos, o que a Diocese de Leiria-Fátima acabaria por considerar abusivo, em 2011, num comunicado.
Entretanto, em 2006, outra suspeita recaía sobre o ex-padre, trazendo-o à esfera mediática, pela mesma suspeita de abuso sexual durante o exorcismo. Em 2008, em entrevista ao jornal ribatejano O Mirante, o "padre" comentava as queixas, que na altura não tiveram consequências legais: "não tem nada de verdade. O impacte foi positivo. Até estive para pôr um letreiro a dizer: olhe que o abuso custa tanto, sem abuso custa menos". Uma vez que, à época, os abusos nunca foram provados, Marcelino Humberto Gama - também conhecido pelo Doutor Gama - saiu ilibado das acusações. Desta vez, a mulher de 55 anos que o acusa de violação foi encaminhada para o hospital.
Ontem de manhã o suspeito acabaria por ser libertado pelo juiz do Tribunal de Santarém, que lhe aplicou como medida de coação a proibição de se aproximar da vítima, bem como obrigação de se apresentar duas vezes por semanas às autoridades da sua área de residência, em Fátima.