O pré-fabricado em Benfica, junto à 2.ª Circular é, agora, a Área Dedicada à Covid-19 (ADC) de Lisboa Norte, uma das duas no concelho. É para aqui que são encaminhados os casos suspeitos de infeção com o novo coronavírus, pelos médicos e pela linha SNS 24. Também há quem apareça por sua iniciativa. Resulta da reorganização dos centros de saúde para lidarem com a pandemia, numa resposta próxima da comunidade. "Não se fazem testes", avisam à entrada. Mas a maioria das 30 a 50 pessoas atendidas todos os dias acaba por os fazer. Mais de 90 % recupera em casa, acompanhadas diariamente por médicos de família e será essa uma das mais-valias de Portugal. Não se verificou até agora um aumento exponencial de casos, acabando por não ser necessária a abertura de mais ADC"s, como previa a norma que alterou o sistema, faz amanhã um mês..O ambiente é calmo na ADC. A afluência também não tem sido exagerada mas, sempre que isso acontece, os utentes esperam do lado de fora, para evitar que estejam mais de quatro a cinco pessoas no interior da unidade. A regra principal é usar máscara e desinfetar as mãos. Pede-se sigilo sobre a identidade de quem espera, até porque esta é uma doença nova, de elevada contaminação, e a população não está preparada para lidar com a situação, até do ponto de vista psicológico, avisam os técnicos de saúde..O espaço ocupa as instalações da Unidade de Saúde Familiar (USF) Rodrigues Migueis. Tem duas entradas - uma para profissionais e outra para utentes -, o que permite ter uma zona "limpa" e outra "contaminada". Possui estacionamento e está próximo dos transportes púbicos, mas suficientemente afastada das habitações. Estas foram as razões da escolha para ser uma ADC..Existem 34 daquelas unidades na Região de Lisboa e Vale do Tejo, criadas a partir de 26 de março, após entrar em vigor a norma que prevê a reorganização dos cuidados de saúde primários na fase de mitigação da pandemia. São 185 as ADC"s inseridas na comunidade em todo o país, além das que funcionam junto às urgências hospitalares e em articulação com as unidades de saúde. Há centros que tem conseguido, também, acompanhar os utentes mais idosos, ligando-lhes para saber o seu estado de saúde..Os profissionais de saúde da ADC Lisboa Norte entram pela porta oposta à dos utentes, pela zona "limpa", medem a temperatura e respondem a um pequeno inquérito - se tem ou teve febre, dores de garganta, tosse ou outros sintomas. No fundo, preenchem o mesmo formulário da Direção Geral de Saúde (DGS) aplicado aos utentes. Na zona "contaminada" vestem calças e túnica, uma bata impermeável descartável, usam uma proteção nos pés, máscara FF P2 (com respiradores) e luvas..O "furacão" que chegou em março."Estas áreas estão inseridas na comunidade e surgiram para dar uma resposta mais próxima das pessoas, para aumentar a capacidade de controle e reforçar os cuidados a ter com a doença. Estávamos preparados para reforçar as equipas e abrir uma nova ADC. Felizmente ainda não foi necessário", explica Eunice Carrapiço, diretora executiva do Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Norte. Ocupou o cargo a 18 de fevereiro e foi obrigada a mudar tudo num ápice, quando queria perceber primeiro o funcionamento da estrutura. A médica recorda as suas palavras quando entrou em funções: "Disse: "Não vou mexer em nada, o meu primeiro objetivo é conhecer as pessoas", e 15 dias depois estava no meio de um furacão"..A norma foi publicada a 23 de março e a ADC entrou em funcionamento a 26, o primeiro dia da aplicação das novas medidas. Passou-se o atendimento dos utentes da USF Rodrigues Miguéis para o Centro de Saúde de Sete Rios. Reorganizaram-se as equipas de saúde para que a área da covi-19 funcionasse todos os dias da semana, entre as 08.00 e as 20.00. Constituíram-se seis equipas fixas - dois médicos, dois enfermeiros e um secretário em cada uma, além do segurança -, divididas por turnos e cada equipa trabalha sete dias seguidos. Tem, ainda, para os utentes linhas de apoio social e psicológico. Este último é também prestado aos profissionais. "Estão habituados a lidar com situações limite, mas neste momento, estão expostos a um cenário de uma situação prolongada e que é muito difícil de gerir", justifica a diretora do agrupamento..Os utentes que pedem para ser vistos na unidade são encaminhados por técnicos de saúde. "Podem vir por iniciativa própria, e tem acontecido, mas só devem dirigir-se aqui se tiverem sintomas suspeitos, não se devem expor à infeção sem necessidade", alerta Eunice Carrapiço. A média de idades de é 49/50 anos, o utente mais novo tem um ano e o mais velho 97. A quase totalidade acaba por sair com uma prescrição para fazer o teste à doença. Estes são realizados em laboratórios privados e a responsável pelo serviço garante não demoram mais de dois dias a serem efetuados, os três dias são a exceção..Os casos graves são encaminhados para o hospital para serem internados, mas mais de 90 % são inscritos numa plataforma e estão em vigilância ativa, sendo contactados diariamente pelos médicos de família. O clínico telefona a cada um e perguntar se já realizou o teste, qual o resultado, quais são os sintomas, se há um agravamento da situação. Na maioria dos casos não há. Quando são dados como curados, o nome é retirado da base de dados.."Esta plataforma permite um acompanhamento diário e, se houver alguma alteração, a pessoa é encaminha para as unidades especializadas. Temos várias estratégias que não se anulam, mas são complementares, no Sistema Nacional de Saúde (SNS)", diz Eunice Carrapiço..Aquele procedimento tem sido uma das mais-valias do sistema nacional para lidar com este novo coronavírus, defende Rui Nogueira, presidente da Associação de Médicos de Família. "Tivemos a capacidade de manter os casos suspeitos em casa em vez de os enviar para os hospitais, onde correm mais risco de ficarem infetadas, como aconteceu em Espanha e em Itália. Mais de 90% dos infetados estão a ser seguidos em casa pelos médicos de família, esse tem sido o nosso êxito no combate à pandemia"..Eunice Carrapiço acrescenta a qualidade dos cuidados de saúde primários. "Estão muito bem organizados e, muitas vezes, servem de exemplo a outros países. Os cuidados de saúde primários evoluíram para uma estrutura próxima das pessoas e robustecida", argumenta. Nem tudo são rosas, sublinha Rui Nogueira, também médico de família de outras unidades e zonas do país. A falta de equipamento de proteção individual, também a falta de resposta rápida na realização dos testes, são as falhas mais apontadas. Independentemente desses problemas, Portugal está muito longe da situação dramática de outros países, em especial dos vizinhos espanhóis e de Itália..Rui Nogueira reforça que o sucesso está nos serviços de saúde de proximidade. Argumenta que a informação internacional sobre a doença, proveniente maioritariamente da China, onde tudo começou, indica que 80% dos infetados ultrapassam a infeção em casa, 15% são internados e 5% necessitam de cuidados intensivos. Estas percentagens não se verificam em Portugal, com as situações de internamento - geral e grave -, a serem menos de metade da indicada. A média tem sido pouco mais de mil internamentos e 200 pessoas nos cuidados intensivos (DGS). A taxa de letalidade (proporção entre infetados e mortes) é de 3,7 %, inferior às médias europeias. E claramente abaixo da situação não só de Espanha e de Itália, como da França, Holanda, Reino Unido, Suécia e Bélgica..Ovar teve de impor fronteiras.O "furacão"de que fala Eunice Carrapiço chegou a todos os centros de saúde do país, com o anúncio do primeiro caso de infeção por covid-19, a 2 de março. Temia-se o pior e foi para esse cenário que as unidades de saúde se tentaram reorganizar, com situações mais complicadas que outras, o que dependeu da própria eficácia dos serviços e da propagação do vírus. Os sinos soaram mais alto em Ovar, concelho onde foi declarado o estado de calamidade, o que levou ao seu encerramento ao exterior. A cerca sanitária foi levantada há uma semana..Tudo se agravou quando a USF de São João fechou porque mais de metade dos seus profissionais estavam infetados. "Rapidamente, reunimos os profissionais das quatro unidades de saúde e passámos a funcionar em dois turnos. Durante a manhã, fazíamos os serviços mínimos: consultas a grávidas, a recém-nascidos, a vacinação; durante a tarde atendíamos os adultos. E, passada uma semana, estava a funcionar a ADC de Ovar", explica Eurico Silva , direção da USF João Semana. É um dos médicos destacados, em atendimentos de quatro horas cada, entre as 10.00 e as 18.00, incluindo fins de semana e feriados. Recebem 20 a 30 casos suspeitos por dia..A USF João Semana, a ADC e o estabelecimento hospitalar local, o Hospital Francisco Zagalo, formam uma espécie de campus de saúde na cidade e têm funcionado em articulação, o que "permitiu dar uma resposta robusta", sublinha o médico. Criaram, também, uma linha (só disponível no concelho) para quem tiver dúvidas sobre os sintomas da doença: 300 00 24 24. E abriram uma consulta ao sábado e domingo, para a continuação da prestação de cuidados de saúde primários aos utentes em geral e também para as doenças crónicas.."Diria que tivemos uma boa preparação e uma resposta rápida. A USF de São João de Ovar encerrou na quarta-feira e, na sexta-feira, estava montado o novo esquema de funcionamento", diz Eurico Silva, acrescentando: "Criámos um gabinete de crise, com as entidades locais e as de saúde pública, numa articulação diária e com o registo de cada caso. Tem havido um bom trabalho de equipa. Isso também foi preponderante no sucesso ao lidar com a situação. Seria expectável um número muito superior de pessoas infetadas e temos uma taxa de testes elevada, 3% da população". A DGS contabiliza 534 pessoas infetadas no concelho, que tem cerca de 54 mil residentes..É mais um exemplo de adaptação a esta nova realidade e, hoje, já se pensa como revitalizar os serviços para o pós Estado de Emergência. Além da sensibilização à população para continuar a frequentar os centros de saúde em caso de necessidade e, sobretudo, para não deixar de cumprir o Plano Nacional de Vacinação..Há utentes, mas poucos.No Centro de Saúde de Sete Rios ninguém entra sem responder a um pequeno inquérito. A triagem é feita à entrada e quem apresentar sintomas da covid-19 é encaminhado para para a ADC de Lisboa Norte. Os restantes são atendidos normalmente, mas a afluência é muito pequena. O centro está, agora, organizado por pisos. O rés-do-chão está destinado ao atendimento de doença grave e enfermagem; o primeiro piso tem as consultas das grávidas e recém-nascidos e a vacinação. Os restantes são dedicados à parte administrativa. É que grande parte das consultas foram canceladas - as consultas de rotina são feitas por telefone, os pedidos de receita podem ser por telefone ou email..Um dos maiores centros de saúde Lisboa, com horário alargado ao fim de semana, incluindo serviço de urgência, está, agora, reduzido a meia dúzia de utentes. "Tenho um quisto e vim ao médico a semana passada. Disse-me para voltar para ver se precisa de ser lancetado ou não", conta Luís Silva, 70 anos, reformado. Raramente vai ao posto: "Não tenho razões de queixa da minha saúde, só em caso de urgência", orgulha-se. Desta vez, está encantado com a rapidez no atendimento: "Na primeira, tive a sorte de ser logo atendido pelo meu médico de família, é ele que está a acompanhar o meu caso". Quanto ao novo coronavírus, o SARS-Cov-2, sente-se preparado para enfrentar a situação: "Já passei por muito, estive na guerra em Angola. Isto também é uma guerra e não sabemos onde está o inimigo, mas eu cumpro as regras, não tenho saído e tenho cuidado com a higiene"..Célia Pires, 54 anos, empregada de hotel, foi mordida por um inseto, o inchaço e as dores não a deixam descansar. Em menos de uma hora está prestes ser atendida pelo médico. "Venho ver o que se passa, sinto dores, é uma questão de segurança. Fizeram-me perguntas sobre a covid-19, se tinha alguns sintomas, mas estou bem informada, não tive problemas em vir ao centro. Venho às consultas ou quando tenho um problema urgente, como hoje, pergunto sempre pelo meu médico. Se ele não estiver, há outros médicos a atender"..A descer as escadas do edifício do Centro de Saúde de Sete Rios, vem Paulo Seia, 50 anos, engenheiro químico, agora em teletrabalho. "Vivo com o meu pai, que tem 89 anos, somos utentes da USF Rodrigues Miguéis, que agora está com a covid. Vim levantar a receita para um ventilador, que pedi por email e que tem de ser renovado. Está tudo muito bem organizado, nem sequer precisei de entrar no edifício", conta. Já quanto ao teletrabalho, não vê nada positivo. "Perturba muito a saúde mental das pessoas, temos que ser disciplinados, para não estarmos sempre agarrados ao computador, a dar cabo da cabeça.".Voltar à nova normalidade.A Área Dedicada à Covid de Aveiro funciona desde 27 de março, em tendas de campanha disponibilizadas pela autarquia e pelo Exército. Fica ao lado do centro de saúde da cidade, partilhado e, para aqui, são encaminhados os utentes das sete unidades de saúde familiar. "A zona tem tido alguns problemas, inclui algumas áreas problemáticas como Ovar e tem muitos casos em lares. Na área da covid tem havido muita procura, mas conseguimos dar uma boa resposta a quem chega, sem sobrecarga", diz Tiago Maricato, coordenador da USF de Aveiro/Aradas..Os centros de saúde passaram a privilegiar o contacto não presencial, recorrendo-se ao telemóvel e ao email, para as situações sem gravidade. Contactos à distância que poderão continuar no futuro, até porque os médicos defendem a continuação das medidas de distanciamento e de proteção individual.."O que temo é que haja uma desvalorização por parte da população, que está sempre à espera de que se resolva tudo com medicação, o ideal seria que não fosse preciso resolver o problema. Basta uma pessoa infetada e que não tenha cuidado para infetar uma série de pessoas", alerta Eurico Silva..Tiago Maricato faz um balanço positivo destes dois meses da doença, mas também sublinha que ainda não é altura para aligeirar a defesa. "A evidência começa a ser que estamos num planalto, que o pior já passou, mas há o risco de uma nova vaga da epidemia. Se não continuarmos com as medidas de contenção e de higiene podem vir novas vagas e piores"..O dirigente da Associação de Médicos de Família, clínico no Centro de Saúde Norte de Matos, em Coimbra, destaca as assimetrias, que têm a ver com meios mas também com o número de infetados. Defende a necessidade de encontrar soluções para os centros de saúde do Norte, onde há mais pessoas com a doença que está a paralisar o mundo. Pede, ainda, que haja uma maior intervenção nos lares, que continuam a ser uma grande preocupação..Rui Nogueira credita que os mais velhos poderão estar meses sem sair à rua com total liberdade. Já a população mais nova poderá mais facilmente regressar ao trabalho e a outras atividades..Chama a atenção para o número elevado de pessoas que recorriam aos centros de saúde e que, agora, desapareceram - mas não as doenças, que continuam a existir. "Os doentes estão ausentes e nós, os médicos, estamos preocupados com as outras doenças, que são muitas e também matam. Quantos doentes crónicos tem o país? Mais de um milhão: diabetes, hipertensão, insuficiência cardíaca, doença oncológica, etc... Éverdade que uma consulta pode ser adiada duas ou três semanas, não podemos adiar muito mais. Estes casos precisam de uma observação direta, ser acompanhados. Antes desta situação, todos os dias recebíamos doentes com dores, enfartes de miocárdio. E agora, não há dores no peito, AVC"s? Estamos demasiado focados na covid e os outros doentes são esquecidos", conclui.