Há filas à entrada do Design Museum que vão até ao Holland Park. Não é fácil conseguir bilhete para entrar na exposição Stanley Kubrick. Aliás, desde que abriu as portas que não se fala de outra coisa. A Time Out, o Evening Standard e o The Times dão cinco estrelas, enquanto a BBC vai passando diariamente os filmes..Dividida temática e não cronologicamente em salas onde cada filme é escalpelizado, a exposição narra a história e o percurso profissional de Stanley Kubrick. Logo à entrada, há uma montagem em vários ecrãs dos seus grandes filmes. Uma sala que evoca uma ideia de imaginário kubrickiano..Ao longo desta visita mágica estamos perante cerca de 700 objetos do próprio Kubrick, mas quando se poderia pensar que seria a habitual memorabilia o que surpreende é o grau de intimidade desses mesmos objetos. E por objetos entende-se cartas que Kubrick escreveu e recebeu, lentes que usou ou câmaras que nunca largou. Mas, antes da primeira sala, há uma espécie de antecâmara. Um espaço onde se ouve uma entrevista com Kubrick. É a sua voz pausada e apaziguada que nos guia para uma ala onde estão alguns dos seus objetos pessoais. Saltam à vista os livros que o próprio leu na obsessiva pesquisa para um dos projetos que não chegou a fazer, Napoleão. É uma voz que não nos distrai mas que tem um efeito paralisante. Apesar da multidão, não se ouve qualquer tipo de ruído..O interesse de Steven Spielberg.E é nesse silêncio que se descobre uma informação que salienta que Steven Spielberg planeia uma série de televisão a ser realizada por Cary Fukunaga (atualmente a dirigir o novo 007) desse projeto. Logo ao lado, os esboços de um outro projeto que preferiu passar a Steven Spielberg já no fim da vida, A.I.- Inteligência Artificial. Pelos desenhos dos cenários e conceito visual, percebemos que Steven Spielberg respeitou os desejos e o trabalho prévio do amigo com o seu filme de 2001..Para lá da iconografia, da vertigem de estar perto das "provas" das marcas de génio e do clima de devoção que a exposição enceta, há um trunfo mais importante: uma sensação quase invisível que o seu legado assenta sobretudo num princípio de trabalho. Kubrick fez poucos filmes mas todos eles deram um trabalhão doido. Já se sabia que era lendária a sua procura pela perfeição, mas aqui percebe-se que esse perfeccionismo era de puro amante da Sétima Arte, de alguém que acreditou que podia fazer um cinema algo melhor do que alguma da mediocridade que via quando era estudante. E se nos detalhes estava algum do seu segredo de visionário, importante reparar com olhos de ver numa moldura com uma carta que a Columbia Pictures lhe enviou dando conta de que a censura em Portugal não deixou passar Dr. Strangelove/Doutor Estranhoamor. Estávamos em 1964 e a carta tem a data de 25 de maio..Os puristas assustados.Tudo isto, claro, nem sempre é pacífico. Há puristas que defendem que esta disposição escancarada do espólio do homem e da obra é demasiado explícita e retira o mistério da criação. O inegável é uma carga de captação da atmosfera de cada filme que funciona como uma mistura de evocação das obras-primas bem como material pedagógico. Desde que o Museu do Cinema de Frankfurt ajudou a produzir este espólio em 2004 que a exposição tem girado pelo mundo, mas só agora parece ter encontrado um equilíbrio perfeito, sobretudo porque a família de Kubrick tem sabido atualizar todo e mais algum pormenor, em especial os vídeos que os fãs podem aqui ver. Acima de tudo, é um convite aos admiradores para matarem saudades das atmosferas dos filmes..Para a sala de De Olhos Bem Fechados, realça-se a música do filme e um vídeo em que se compilam os momentos musicais marcantes de todos os filmes (tem 30 minutos, chama-se By Means of Music e é realizado por Bern Schultheis). Arrepia, faz estremecer. Enquanto na ala de 2001- Uma Odisseia no Espaço , a reprodução da nave espacial é autêntica e emociona. Mas é sobretudo na evocação de Laranja Mecânica que sentimos melhor o espírito do filme, sobretudo porque podemos estar literalmente ao lado dos cenários, mais concretamente das peças de decoração do bar do gangue de Alex..Em qualquer destas alas/espaços, há textos nas paredes a contextualizarem o filme e o significado para o próprio Kubrick. Para além disso, excertos extensos de cada obra são mostrados em pequenas salas, salientando o tal efeito pretendido de "matar saudades"..Cada um que se aventurar nestas imersões em cada filme vai poder escolher o que examinar com mais atenção: se cada estudo de poster (há obras-primas sobretudo de The Shining) ou como foi possível aquele gigante falo de Laranja Mecânica ou ainda as próprias velas que iluminaram os cenários de Barry Lyndon..Cenários fantásticos.Igualmente importante: documentos, cartas e testemunhos que explicam a relação de Kubrick como o país que adotou, a Inglaterra. E neste trono de recordações, o que dizer da maquete do cenário de Doutor Estranhoamor, aquela sala de guerra criada por Ken Adams? Tal como a maquete do jardim de The Shining, que não tem mais de um metro e meio....Para além de tudo isso, como se mais nada fosse importante, antes de encontrarmos a porta da saída, relemos a carta de Sue Lyon, a jovem de Lolita que nunca mais quis ser atriz. Uma carta emocionada a explicar que se casou e que nunca mais quis ser atriz, agradecendo ao mestre a experiência de vida. Mas também podemos ficar parados e olhar para o seu tabuleiro de xadrez, presença sempre constante nos seus plateaux (ai de um ator que não aceitasse uma partida com ele...). A exposição dá para isso e muito mais. Na lista do "muito mais", inclui devorar as fotos de bastidores de De Olhos Bem Fechados tiradas pelo seu sobrinho ou as visíveis notas específicas sobre ideias de mise-en-scène nos seus meticulosos blocos de nota..Stanley Kubrick foi um dos maiores génios do cinema. Esta exposição não desmonta o lugar feito em torno da sua excentricidade. É uma celebração da capacidade de se pensar a arte cinematográfica como um espetáculo de perfeição.