1816, o ano sem verão que deu ao mundo o ogre da inglesa Mary Shelley
Em 1815, nas longínquas Ilhas Orientais Holandesas, hoje Indonésia, fervia sob a superfície terrestre a matéria-prima para uma tragédia que mudaria a história do mundo nos anos subsequentes. A devastação deu-se sob a forma de uma explosão vulcânica cataclísmica. Um ano mais tarde, em 1816, o planeta Terra dispensava a palavra verão do calendário anual. Em junho, os Estados Unidos debatiam-se com a neve. Na Europa, em julho, vingavam as geadas. Num retiro literário suíço, açoitado pela chuva e vento, a britânica Mary Shelley urdia as primeiras linhas do seu livro maior, Frankenstein.
A 1 de janeiro de 1818, Mary Wollstonecraft Shelley ganhava a imortalidade. Após ver o seu manuscrito rejeitado por duas vezes, a londrina de 20 anos, recebia a notícia da impressão de 500 exemplares da obra que lhe ocupava a escrita há perto de dois anos. Coube à Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, editora sediada na capital inglesa, levar ao prelo a primeira edição da história ficcionada do médico Victor, pai da "criatura", "ogre" e "demónio", como se lhe referia Shelley. Ser de tez amarela e de lábios negros que ensombraria posteriormente a nossa memória coletiva.
Mary Shelley, convocava para a capa de Frankenstein: ou o Moderno Prometeu (no original Frankenstein; or, The Modern Prometheus), obra literária em três volumes, a antiga designação de uma localidade da Silésia, na República Checa. A vila de Frankenstein, que viu alterado o nome após a Segunda Guerra Mundial, alimenta uma história de peste, horror e morte no século XVII.
No século XIX, Victor Frankenstein, nascia em 1816, nas margens suíças do Lago Léman. Em ambiente de tertúlia literária, os escritores George Gordon Byron (Lord Byron), John William Polidori, Percy Bysshe Shelley e Mary Godwin (mais tarde Mary Shelley, após casar com Percy), entretinham dias de frio e chuva no seu refúgio de férias. Juntos, recriavam histórias de terror saídas da literatura gótica alemã.
Nas horas que se sucediam invernais, a jovem Mary, então com 18 anos, redigia as linhas embrionárias da sua história, embalada por um verão que ficaria sublinhado com a palavra tragédia no Hemisfério Norte. No Leste dos Estados Unidos da América a geada cobria o solo com maio já amadurecido. Em junho, o Canadá, a Terra Nova e o Labrador, penavam sob violentas tempestades de neve. A Europa Setentrional não escapava à neve e, a Oriente, a China via as suas colheitas afogadas sob cheias épicas, enquanto a Índia soçobrava à cólera e a uma monção fora de época.
O fenómeno que ligava os dias cinzentos, embora inspirados de Mary, as culturas falhadas de cereais e frutas nos Estados Unidos e Europa e o padecimento de milhões de seres humanos, eclodira um ano antes como a maior erupção da história moderna. Em abril de 1815, o Monte Tambora, na Ilha de Sumbawa, na Indonésia (na época Ilhas Orientais Holandesas), entrava em erupção e lançava o mundo para um inverno de cinzas e gazes vulcânicos. Em poucos dias, a atmosfera recebia dezenas de milhões de toneladas de material extraído ao âmago do planeta e expelido pelo cone vulcânico. Em duas semanas, partículas de enxofre, entre outras, colavam-se tragicamente à estratosfera terrestre, para a cobrir nos meses seguintes com uma película mortal, alastrando de Polo a Polo. Em consequência, a temperatura global do planeta baixou perto de 1 ºC. Isto numa época que vivia, desde o início do século XVI (há climatologistas que apontam o início no século XIII), uma "Pequena Idade do Gelo". Condimentos para criar a tempestade perfeita. E foi-o literalmente.
Estima-se que a erupção vulcânica do Monte Tambora seja responsável pela morte direta de dez a 12 mil seres humanos. A médio prazo, 60 a 70 mil almas terão sido ceifadas devido à fome e a doenças como a cólera e febre tifoide. 1816 ficaria conhecido como "O Ano Sem Verão" ou "O Ano da Pobreza".
Numa Europa que recuperava das Guerras Napoleónicas, chuvas catastróficas de verão atrasaram ou aniquilaram colheitas. Num mundo, então, agrícola, a ausência de trigo, milho, batata, base para a subsistência das populações, traduziu-se em fome e migrações massivas do campo para as cidades. Os preços dos bens alimentares inflacionaram dramaticamente. Os cavalos, principal força de transporte, sucumbiram à falta de aveia. Por seu turno, populações famintas revoltavam-se frente aos mercados e às padarias. Itália, Escócia, Irlanda e Suíça, entre outros países, enfrentavam epidemias de tifo.
Nos Estados Unidos, rios e lagos gelaram em julho no estado da Pensilvânia. Fenómeno semelhante ocorreu no Maine, em Nova Iorque e nas Virgínias. Mais a norte, no Quebec, os campos escondiam-se sob 30 centímetros de neve chegado o mês de junho. Vagas de migração de populações da Nova Inglaterra demandavam o Centro-Oeste dos Estados Unidos, menos afetado pelo verão bizarro.
Portugal não escapava ao estio atípico, particularmente nos meses de julho e agosto. Em 2008, uma investigação conjunta entre Portugal e Espanha, publicada no International Journal of Climatology, debruçou-se sobre o fenómeno na Ibéria e recuperou um testemunho da época, o do padre e advogado de Braga, José Manuel da Silva Tedim: "tenho 78 anos e nunca vi tal clima e frio, nem mesmo nos meses de inverno". Nesse ano, em novembro, ainda se vindimava no Minho. O verão frio atrasara o amadurecimento das uvas. No Sul do país, no Algarve, de acordo com o estudo já citado, a fruta foi escassa e de má qualidade.
Nas artes, não seria apenas Shelley a receber a inspiração do ano sem verão. Nas Ilhas Britânicas, fustigadas por chuvas inclementes, nascidas nas altas latitudes do Atlântico, Joseph William Turner eternizava na sua pintura as tonalidades dos bizarros céus tingidos com artifício pelas poeiras de Tambora.
Para uma leitura pormenorizada sobre o "Ano Sem Verão": The Year Without Summer: 1816 and the volcano that darkened the world change history.