Deixe-me começar com uma pergunta bem portuguesa: qual a importância para o futuro de Napoleão da derrota para as forças anglo-portuguesas e depois de algum tempo a ação militar conjugada de portugueses e espanhóis em coordenação com os britânicos? A intervenção de Napoleão na Península Ibérica, várias vezes referida na época como a sua "úlcera espanhola" e o seu "ninho de vespas espanholas", foi uma aventura mal concebida e executada de forma caótica que contribuiu muito para a sua queda. Havia, é claro, uma razão perfeitamente lógica por trás disso: depois de ele ter emitido os decretos de Berlim de novembro de 1806 estabelecendo o Sistema Continental, que pretendia privar o comércio britânico dos seus mercados europeus, teve de garantir que nenhuma mercadoria britânica pudesse desembarcar em qualquer lugar no continente. Dadas as suas estreitas relações com a Grã-Bretanha, Portugal tinha, portanto, de ser protegido. Então, em setembro de 1807, ele escreveu ao regente D. João perguntando-lhe se apoiaria a França ou a Grã-Bretanha. O regente respondeu que se aliaria à França e declararia guerra à Grã-Bretanha. Impaciente como sempre, Napoleão não esperou por essa resposta e concluiu um tratado com Espanha através do qual eles aboliriam Portugal e dividiriam o seu território entre si. Para o concretizar, ele enviou o General Junot com um exército que atravessaria Espanha para invadir Portugal. Junot não tinha mapas nem abastecimentos organizados, pois Napoleão não notificou as tropas espanholas para os fornecer. Junot partiu com 20 000 homens, mas quando chegou a Lisboa restavam apenas 1500, sem cavalaria ou artilharia para os apoiar. E toda a operação se revelou inútil: a frota britânica chegou primeiro, embarcou a família real e partiu para o Brasil, levando consigo a marinha portuguesa. Junot não conseguiu manter Portugal e foi enviado de volta para França em navios britânicos. Em vez de garantir a segurança de Portugal, a ação de Napoleão produziu o resultado que deveria evitar - deixar os britânicos tomarem o controlo da Península Ibérica. E isso significava que ele agora tinha de proteger Espanha, que era uma aliada de França, mas uma aliada não confiável. A monarquia estava em guerra consigo mesma, e Godoy, o Príncipe da Paz, estava a negociar com os britânicos. A menos que Napoleão ocupasse toda a Península, ele acabaria por ter as tropas britânicas ao longo dos Pirenéus. Assim, levou a cabo a invasão e instalou o seu irmão José no trono. José tinha sido um rei de Nápoles relativamente bem-sucedido e poderia muito bem ter feito o mesmo em Espanha, onde muitos dos mais cultos estavam ansiosos por modernizar o país de acordo com as linhas francesas. Mas Napoleão recusou-se a apoiá-lo e a dar-lhe o comando dos exércitos franceses em Espanha, onde cada um deles operava independentemente sob o comando de marechais que se odiavam mutuamente. Se todas as forças francesas na Península estivessem sob o comando de Soult, Wellington não teria tido uma vida tão fácil. Mas toda a operação estava condenada desde o início, porque a lógica subjacente estava condenada ao fracasso: se impedirmos os nossos aliados de negociar, tornamos-lhes a vida impossível e forçamo-los à resistência..Vê Napoleão como uma espécie de herdeiro da Revolução Francesa, mesmo sendo um monarca? Napoleão pertenceu à geração que fez a Revolução. Ele tinha-se tornado um republicano muito antes de 1789. Desprezava as instituições arcaicas nas quais o Ancien Régime se apoiava e acreditava no racionalismo do Iluminismo francês. Era também um organizador instintivo e bastante preparado para quebrar os ovos para fazer a omeleta, admirava Robespierre e acreditava que só o poder absoluto poderia fazer as coisas acontecerem. Como muitos outros, no final da década de 1790 ele percebeu que a Revolução não estava a ir a lugar nenhum e estava determinado a levá-la ao que via como sendo a sua conclusão - o estabelecimento de um Estado forte e funcional construído ao longo de bases racionais para o benefício de todos os seus cidadãos. E foi isso que fez. Em 1804, quando o seu Código Civil (mais tarde conhecido como Código Napoleónico) se tornou lei, ele implantou todos os blocos de construção da política moderna com que os philosophes do século XVIII tinham sonhado. Nesse sentido, ele era o herdeiro da Revolução, e o facto de se tornar um monarca não o contradizia necessariamente. Embora a vaidade tenha desempenhado o seu papel, os principais motivos para a sua coroação como imperador eram dois. Um era alinhar a França com outros Estados europeus. Com exceção da Suíça, todos eles eram monarquias e nunca poderiam contemplar com serenidade a vizinhança do desafio ideológico representado por uma república poderosa. O outro era que uma dinastia, ao garantir a continuidade, salvaguardaria tudo o que tinha sido conquistado. O problema começou a surgir quando se tratou de estabelecer as formas reais da nova monarquia: quanto mais aprofundava a história e a cultura do Ancien Régime, mais Napoleão começou a identificar-se com elas, com os resultados grotescos que se podem ver nos retratos dele com mantos imperiais..Quão importante foi a família para a ascensão de Napoleão? E por que colocou tantos irmãos como reis? A sua família era extremamente importante para ele porque, como a maioria das pessoas de lugares como a Córsega, Sardenha, Sicília e outras sociedades mediterrânicas herméticas, ele via-a como uma empresa, um negócio conjunto. Apenas um dos seus irmãos o ajudou na sua ascensão, e esse foi Lucien, que salvou o golpe de Estado de 1799 de fracassar. Mas eles nunca se entenderam bem e Lucien era um embaraço pela sua independência e mau comportamento. Napoleão tinha uma relação problemática com José que, como irmão mais velho, era de acordo com o costume da Córsega, o chefe da família e não parava de o lembrar disso. Em parte, foi para o tirar do caminho e excluí-lo da sucessão que mandou José sentar-se em tronos distantes, primeiro em Nápoles e depois em Espanha. O único dos seus irmãos que Napoleão amava realmente era Luís, mas Luís ressentia-se da maneira como ele tentava gerir a sua vida, primeiro forçando-o a casar-se com a filha de Josefina, Hortense, depois adotando o filho deles e, finalmente, perturbando o bom trabalho que estava a fazer como rei da Holanda. O motivo para dar tronos aos seus irmãos era para se prover de aliados confiáveis, mas ao mesmo tempo ele não confiava neles totalmente e, como continuou a interferir nos seus reinos, acabou por os voltar contra si. E as suas irmãs eram sobretudo um risco. Portanto, apesar de tudo, embora a família fosse importante porque lhe dava um sentimento de pertença, especialmente nos seus primeiros anos, ela na verdade atrapalhou o seu caminho na maior parte do tempo e contribuiu pouco para o seu empreendimento..A falta de um herdeiro até 1811 era um ponto fraco no projeto de Napoleão? A falta de um herdeiro homem até 1811 era um problema e não apenas por motivos emocionais. Ele sentiu que, se morresse sem um filho, José ocuparia o seu lugar e seria uma confusão. Pode ter sido por isso que ele se recusou a permitir que José comparecesse às cerimónias de batismo do seu filho. E o problema da sucessão não ficou resolvido por ele ter um filho: quando conspiradores tentaram tomar o poder em 1812, declarando que Napoleão tinha sido morto na Rússia, em vez de proclamar automaticamente o seu filho imperador, começaram a debater o que fazer a seguir. Como Napoleão observou aquando do seu regresso, a única grande vantagem de uma monarquia está no anúncio tradicional sobre a morte de um rei: "o rei está morto, viva o rei". E isso não aconteceu..Como descreve Napoleão como líder militar? Ele era mesmo um génio ou o tamanho do exército francês, a vantagem demográfica da França, também foi um motivo para seu sucesso? Não gosto de chamar génios às pessoas, e é difícil chamar génio a um homem que foi o responsável pelo maior desastre da história militar: em 1812, por descuido, falta de concentração e pura teimosia destruiu o maior exército que o mundo já havia visto. Ele poderia ter evitado o desastre em vários estágios do curso daquela campanha, mas não o fez. Napoleão foi um comandante militar extraordinário, especialmente durante a sua primeira campanha italiana. O seu sucesso então foi fruto de um estudo profundo do terreno e das táticas do inimigo, de ousadia, energia, determinação e uma capacidade de inspirar as suas tropas a atos de coragem extraordinária. E sempre que se encontrava numa situação difícil e precisava de lutar pela sua vida, exibia essas qualidades. Austerlitz é um bom exemplo: ele cavalgou o terreno várias vezes e planeou toda a batalha. Mas, com a idade, ficou preguiçoso e confiou cada vez mais nos números e na sua reputação. E embora os seus inimigos aprendessem com ele, ele não aprendia com eles..Wellington contra Napoleão. Como explica a vitória final do general britânico? Wellington foi certamente um excelente comandante. Ele era bem organizado, muito cuidadoso, não desperdiçava a vida das suas tropas e exibia um pragmatismo implacável; ele usou a nova espingarda com grande efeito, dizendo aos seus "casacas verdes" para atirar nos oficiais inimigos. As tropas que enfrentou eram mal lideradas por marechais que não cooperavam entre eles. Estavam desmoralizados pelas condições e a selvajaria da guerra. A maioria deles não era francesa, mas alemã, holandesa, polaca, italiana, suíça ou croata e, naturalmente, não estava disposta a lutar numa guerra que não fosse a sua. As tropas de Wellington eram um exército altamente motivado, e os seus aliados espanhóis e portugueses estavam estimulados pelo desejo de expulsar os franceses das suas terras, o que lhes deu uma vantagem sobre os seus inimigos. Esta aventura francesa na Península Ibérica é algo que considero necessário rever e pretendo escrever sobre o assunto. Quanto à vitória final de Wellington em Waterloo, foi uma confusão em que ambos os comandantes mostraram pouco mérito e, como Andrew Roberts tão bem disse, Wellington não merecia vencer a batalha, mas Napoleão certamente merecia perdê-la..Os seis anos de exílio em Santa Helena. Quão terrível foi para Napoleão ser um prisioneiro de guerra depois de provar o poder absoluto? Este foi um período muito curioso e interessante na vida dele. Napoleão estava a sentir-se velho e não muito bem na maior parte do tempo. Ao entregar-se aos britânicos, ao entrar a bordo do HMS Bellerophon, fica-se com a impressão de que sentiu uma enorme sensação de alívio. Ele esperava receber um refúgio em Inglaterra adequado à sua posição e ser tratado com respeito cavalheiresco (tinha uma ideia curiosa e inteiramente falsa de que os ingleses gostavam dele). Ficou indignado quando passaram a tratá-lo mal, recusando-se a chamá-lo pelo seu título, e referindo-se-lhe apenas como "General Buonaparte". Também ficou indignado quando lhe tiraram a maior parte do dinheiro que tinha consigo, sentiu-o como um truque inglês barato. E ficou horrorizado quando soube que não seria levado para Inglaterra, mas para uma ilha remota. Mas durante a longa viagem para Santa Helena, ele parecia resignado e não mostrou nenhum mal-estar para com os seus captores. Quando chegou, como não havia alojamento preparado para ele, ficou com uma família e gostava muito de brincar com a filha de catorze anos. Na verdade, em nenhum momento, até à sua morte, deu qualquer sinal de desejar estar de volta às Tulherias e dar ordens. O que o incomodava mesmo era o clima e a falta de alimentos frescos. Ele havia sido criado e tinha vivido no mundo mediterrânico e odiava o frio húmido do Atlântico sul. Mas o que realmente o enfureceu foi o que viu como a falta de respeito com que era tratado. As autoridades britânicas continuaram a tratá-lo como um arrivista, sem consideração pelas suas realizações e estatuto. Ele ficou indignado por não se poder corresponder com a mulher e o filho, ou com qualquer membro da sua família, e salientou que mesmo o criminoso mais comum tem permissão para ver a família, enquanto um prisioneiro de guerra é libertado no fim das hostilidades. Foi submetido a uma vigilância e censura humilhantes, efetuadas por um carcereiro particularmente tolo e meticuloso na pessoa de Sir Hudson Lowe. Mas Napoleão foi um grande propagandista que criou uma imagem de si mesmo que inspirou o seu próprio povo, os seus soldados, e aterrorizou a maioria dos seus inimigos. Então começou a vingar-se dos britânicos projetando a imagem de um mártir. Fez tudo o que pôde para provocar o seu teimoso carcereiro britânico para que este tivesse atitudes cada vez mais insultuosas e garantiu que a notícia se espalhasse. Além de ditar as suas memórias a um dos seus companheiros, falou longamente sobre a sua vida, sabendo que três outros também estavam a escrever as suas versões do cativeiro. Com uma visão fantástica, ele sabia que espalhariam a história do seu martírio às mãos dos britânicos. Quando foi publicado dois anos após a sua morte, um desses relatos, o Mémorial de Sainte-Hélène, tornou-se um best-seller instantâneo, um texto seminal do movimento romântico europeu e uma espécie de evangelho que espalhou o culto a Napoleão como um santo mártir quase divino..Por que dois séculos depois da morte Napoleão é tão estudado e até admirado? Essa é uma das razões pelas quais Napoleão ainda é objeto de tanto fascínio. A imagem que deixou de si mesmo inspirou milhões de jovens, e muitas pessoas ainda pensam nele como sendo de alguma forma sobre-humano - é por isso que escrevi o livro que escrevi!.leonidio.ferreira@dn.pt