"Fui a primeira a traduzir 'Os Lusíadas' para russo, ainda no tempo da URSS"
Traduziu Os Lusíadas para russo em verso. Foi um grande desafio?
Para mim não foi um desafio grande, foi um prazer grande. Foi sim muito difícil publicá-lo. Levei quatro anos a traduzir Os Lusíadas e mais três anos para provar a necessidade da publicação deste livro. Na altura, em 1988, os russos sabiam pouco sobre Camões e quando eu pouco depois quis fazer uma tese de pós-doutoramento foi-me dito por alguém na Universidade de Moscovo que ele não merecia, que não era um autor assim tão importante. Mas eu passei para a Academia das Ciências da Rússia e defendi a tese no Instituto de Literatura Mundial Gorki, onde trabalho agora.
Como é para uma russa estar a traduzir toda aquela aventura da história de Portugal? É um mundo muito diferente do seu.
É um mundo diferente mas muito interessante. Também fiz o prefácio e as anotações e foram estudos completamente novos para mim, e inesperados. Eu achei que traduzia e alguém faria as anotações, mas descobri que na Rússia não havia especialistas e tive de as fazer também.
Camões, comparado com outros autores famosos da época, como o inglês William Shakespeare, tem uma diferença que é ter sido soldado e viajado muito. Esteve na Ásia, em África. Isso dá mais vida àquilo que escreveu?
Com certeza. Não lhe falta o engenho e o estudo, com muita experiência à mistura.
Diz-me que é sua a primeira tradução em verso do português para russo. Antes havia só tradução a partir do francês, é isso?
Sim. E essa tradução feita em prosa era recomendada para os liceus russos. Eu trabalhei com um grande escritor que começou a escola ainda na época czarista e ele lembrava-se de ter estudado Camões.
Na era soviética o interesse desapareceu?
Não por completo porque houve um militar, Mikhail Travtchetov, que fez um esforço de tradução de Os Lusíadas nos anos 30, mas não foi publicado porque morreu.
Como é que começou a interessar-se pela língua portuguesa e por Portugal?
Comecei a interessar-me depois do 25 de Abril, quando na Universidade de Moscovo abriu um curso de português. Primeiro não tinha um interesse especial, queria ir estudar uma qualquer língua românica. Mas quando comecei a estudar vi que esta língua possui uma literatura interessante e desconhecida na Rússia e pensei que tinha de abrir essa literatura aos compatriotas.
Quando veio a Portugal pela primeira vez?
Em 1984, quando vim cá como intérprete numa visita oficial. E logo depois como leitora de russo da Universidade de Coimbra, onde fiquei até 1987.
Visita regularmente Portugal?
Sim, como bolseira da Fundação Gulbenkian, para escrever os meus livros. Tenho livros sobre literatura portuguesa, sobre Luís de Camões e sobre literatura renascentista portuguesa. Agora estou a terminar A Literatura de Portugal, desde a cantiga de amigo medieval até ao século XX, até José Saramago. E também traduzi Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, que é um dos meus autores favoritos.
Saramago, para si, mereceu o Nobel?
Mereceu. E gosto especialmente de O Memorial do Convento, mas nunca o traduzi.
Além de Camões, traduziu que nomes conhecidos da literatura portuguesa?
A Mensagem, de Fernando de Pessoa, As Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. Também o Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco e acabei agora uma tradução de Júlio Dinis, que quero propor ao Instituto Camões.
Nunca traduziu Eça de Queirós?
Nunca, mas está traduzido e foi várias vezes publicado na Rússia. A popularidade começou nos tempos de Batalha Reis, que era muito amigo dele e foi embaixador na Rússia quando aconteceu a Revolução de 1917. Ainda nos anos 20, quando se começou a publicar a Biblioteca de Literatura Universal, Eça já tinha sido incluído. Foi publicado na Rússia antes de Camões.
Disse-me que na Rússia, por uma questão de dinheiro, as editoras preferem traduzir os autores a que já não se pagam direitos
e muito menos autores recentes. Sente que há algum autor português moderno que vale a pena traduzir para russo?
Se tudo correr bem, vou traduzir Húmus, de Raul Brandão.
Mas mais recente, mais moderno, não há nenhum escritor que a tenha aliciado?
Não vejo assim nenhum.
Acha que a época antiga era melhor?
Acho que sim. No Instituto de Literatura Mundial Gorki estudamos as autores normalmente até aos anos 30 ou 40 porque se diz que temos de esperar algum tempo para perceber a importância verdadeira deles. A exceção foi feita apenas para Leonid Leonov, um escritor com quem trabalhei, nasceu em 1899 e morreu em 1994. Ele é considerado um clássico da literatura russa.
Chegou a conhecer Saramago?
Cheguei. Não era tão célebre, foi antes do Nobel da Literatura, e andava a assinar livros na Feira do Livro, e na altura um jornalista russo apresentou-me a Saramago.
Sendo a Rússia uma grande potência literária, considera que também Portugal é um país de relevo a nível da produção literária?
Sinto que sim. Um dos mais ricos a nível mundial.
No caso da literatura russa, qual é o seu escritor preferido?
Tolstoi. Ele conseguiu descrever a psicologia nacional e a maneira de ser russa melhor do que os outros escritores.
Um russo que leia hoje Guerra e Paz consegue reconhecer-se naquele livro?
Sim.
É possível viver como escritor na Rússia?
É possível, sim. Conheço alguns, os mais famosos são Zahar Prilépine e Serguei Chargunov.
Já alguma vez escreveu um romance ou só traduz e estuda os outros?
Só traduzo e estudo. Uma vez escrevi um romance mas não cheguei a publicá-lo porque tenho grande sentido crítico e quando reli o romance julguei que podia ter só interesse para a minha família.
Está sempre a comparar-se com Tolstoi?
Sim, sim.