Estado Islâmico ou ligação ucraniana, como sugere Putin, quem orquestrou o ataque em Moscovo?
Num vídeo de cinco minutos e meio Vladimir Putin anunciou que os quatro atiradores envolvidos no atentado contra o Crocus City Hall já foram detidos e garantiu que todos os responsáveis pela preparação e execução do ataque contra a sala de espetáculo moscovita - que já fez pelo menos 133 mortos e mais de 100 feridos - serão identificados e punidos. Denunciando um “ato terrorista bárbaro”, o presidente russo acrescentou que os atacantes “se dirigiam para a Ucrânia, onde [...] foi preparada uma janela para que atravessassem a fronteira”, sem dizer palavra sobre a reivindicação feita poucas horas antes pelo Estado Islâmico (EI).
Kiev já negou qualquer ligação ao atentado em Moscovo, considerando a ideia “absurda”, mas com o conflito na Ucrânia a já ter entrado no seu terceiro ano e o ataque ao Crocus City Hall a ter ocorrido precisamente no dia em que o Kremlin usou pela primeira vez a expressão “estado de guerra”, em vez de “operação militar especial”, para se referir aos eventos que se seguiram à invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, não terá sido uma surpresa para ninguém ouvir o líder russo insinuar que os atacantes podem ter ligações no país vizinho.
Então, mas e a reivindicação do EI? Depois de uma primeira mensagem colocada no Telegram na sexta-feira à noite a reivindicar o ataque em Moscovo, o EI voltou a recorrer a esta rede social ontem para dar mais pormenores. “O ataque foi realizado por quatro dos nossos combatentes armados com espingardas automáticas, uma pistola, facas e engenhos explosivos”, lia-se nessa segunda mensagem em que o grupo jihadista aplaudia o facto de os seus homens terem matado “dezenas de cristãos” no contexto da “guerra” aos inimigos do islão.
Apesar destas mensagens terem sido divulgadas em canais do EI, muitos comentadores e analistas, inclusive dos EUA, atribuíram o ataque a uma das suas filiais - o Estado Islâmico - Khorasan, sediada no Afeganistão. Este grupo surgiu em 2015, no pico da expansão do “califado” que o EI procurou criar na Síria e no Iraque quando nasceram várias filiais suas, desde o Magrebe ao Sudeste Asiático, passando por várias regiões de África. Na altura, dezenas de combatentes talibãs, das fações afegã, mas também alguns paquistaneses, desiludidos, deixaram-se facilmente atrair pela ideologia extremista e os vastos recursos do EI, formando o Estado Islâmico - Khorasan.
Esta filial do EI notabilizou-se sobretudo pelos ataques em território afegão - como dois em 2020 contra a maternidade de Cabul e contra a universidade na mesma cidade, mas também vários outros contra minorias étnicas, e, no ano seguinte, um atentado no aeroporto de Cabul que matou 13 soldados americanos e mais de 150 civis durante o caos da retirada americana do Afeganistão.
Foi precisamente depois de o presidente Joe Biden ter ordenado a saída das tropas americanas de solo afegão, onde estavam desde 2001, na sequência do 11 de Setembro, que o Estado Islâmico - Khorasan internacionalizou mais as suas ações, atacando alvos no Tajiquistão e no Paquistão, além de os EUA lhe terem imputado a autoria do duplo atentado que matou quase 100 pessoas no Irão em janeiro.
Quanto à Rússia, os líderes do EI não veem com bons olhos o apoio de Putin ao presidente Bashar al-Assad, que mudou o rumo da guerra na Síria, além de considerarem que Moscovo faz parte da grande coligação de forças cristãs e ocidentais contra o islão.
Em setembro de 2022, o Estado Islâmico - Khorasan reivindicou a autoria de um atentado suicida contra a embaixada russa em Cabul. Para Michael Kugelman, do Wilson Center em Washington, o grupo “vê a Rússia como cúmplice em atividades que oprimem regularmente os muçulmanos”, disse, citado pela Reuters. Também Colin Clarke, especialista em contraterrorismo citado pelo The New York Times, garantiu que “há dois anos que o Estado Islâmico - Khorasan estava focado na Rússia.”
No passado dia 7 de março, o FSB (sigla dos serviços secretos russos herdeiros do KGB) anunciava ter evitado um ataque armado do Estado Islâmico - Khorasan contra uma sinagoga na região de Kaluga, perto de Moscovo. Horas depois, a embaixada dos EUA na capital russa emitia um alerta pouco comum: pedia a todos os cidadãos americanos para que evitassem grande ajuntamentos, e sobretudo concertos, apelando mesmo a que deixassem a Rússia. Washington garantiu ter partilhado informações com Moscovo. Mas na semana passada Putin considerou o alerta dos EUA como “uma provocação” e “uma chantagem para intimidar e desestabilizar a nossa sociedade”.
Flores e filas para dar sangue
Enquanto no local do ataque as equipas de emergência ainda estavam a trabalhar, retirando corpos dos escombros, junto ao Crocus City Hall multiplicavam-se os gestos de homenagem às vítimas, com muitos moscovitas a depositarem flores e bonecos de peluche. Segundo o governador de Moscovo, o número de vítimas ainda deverá aumentar. Numa mostra de solidariedade, muitos fizeram fila à chuva para dar sangue.
Passava pouco das 20 horas de sexta-feira quando quatro homens armados e vestidos com camuflados militares entraram na sala de concertos nos arredores de Moscovo e começaram a disparar sobre as mais de seis mil pessoas que ali se juntaram para assistir a um concerto do grupo de rock russo Picnic. De acordo com a Comissão de Investigação russa, os atacantes usaram também um líquido inflamável para incendiar o local, tendo sido necessárias mais de 10 horas para controlar o incêndio.
Os atacantes terão escapado, com o deputado russo Alexander Khinshtein a afirmar ontem aos media russos que os quatro deixaram o local num Renault branco, que terá sido mais tarde intercetado pela polícia na região de Bryansk, a 340 km da capital, com dois suspeitos a serem detidos no local e os outros dois a fugir.
Passadas 14 horas do ataque, o FSB anunciou a detenção de 11 pessoas, incluindo os quatro “diretamente envolvidos”. Não foram reveladas as identidades, mas o Ministério do Interior garantiu não serem cidadãos russos. Segundo a BBC, circulavam informações de que seriam nacionais do Tajiquistão, tendo Khinshtein também avançado ter sido encontrado um passaporte tajique no carro da fuga. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Tajiquistão afirmou à agência russa TASS estar em contacto com Moscovo para apurar a eventual participação de cidadãos tajiques neste ataque terrorista.
Ao fim do dia, a televisão russa exibiu vídeos de interrogatórios dos quatro atacantes. O canal público Pervy Kanal mostrou imagens dos suspeitos, três deles com o rosto ensanguentado, sendo escoltados por agentes armados. Um dos detidos estava com a cabeça enfaixada e apresentava vestígios de sangue na área da orelha direita.
Durante os interrogatórios, dois suspeitos admitiram serem culpados e um deles afirmou ter agido por dinheiro. "Eu matei pessoas por dinheiro", declarou, acrescentando que lhe ofereceram "meio milhão de rublos" (cerca de cinco mil euros) e que já havia recebido metade na sua conta bancária.
Durante a manhã, os serviços secretos russos afirmaram que os atacantes tinham “contactos” com a Ucrânia, mas sem apresentar provas. Ao final do dia, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou o Kremlin de estar a tentar “virar a culpa” contra Kiev: “Aquele falsário do Putin, em vez de lidar com os cidadãos russos, de lhes dar respostas, esteve em silêncio durante um dia, a pensar como é que ia culpar a Ucrânia. É tudo previsível.”
Com Putin pressionado para recuperar a imagem de líder forte, resta saber o que irá fazer a seguir. E com as autoridades russas a falarem numa ligação entre os atacantes e a Ucrânia aumentam os receios de que o Kremlin aproveite o momento para ordenar uma escalada nos ataques em solo ucraniano.
Condenação unânime
A comunidade internacional mostrou-se unânime na condenação do ataque em Moscovo. Do presidente chinês, Xi Jinping, ao secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, passando pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, ou o presidente francês, Emmanuel Macron, todos denunciaram um ataque terrorista contra “pessoas indefesas”, nas palavras do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell.
Por um lado, o atentado contra o Crocus City Hall veio recordar ao mundo, sobretudo ao mundo ocidental, que não só o EI ainda pode ser uma ameaça (se se confirmar a sua ligação) como que os ataques terroristas de grande escala não desapareceram e é preciso continuar vigilante, como lembrava numa análise Dan Sabbagh, editor de Defesa e Segurança do jornal britânico The Guardian.