Governo aprova lei que “beneficia” ex-ministra da Justiça
A diferença entre a jubilação e a reforma é substancial. Os juízes mantêm regalias e deveres dos colegas no ativo e continuam a receber um suplemento de compensação, auferindo, assim, um valor mais elevado enquanto jubilados, comparativamente aos que se reformam pela Segurança Social. Francisca Van Dunem foi ministra da Justiça do primeiro Governo liderado por António Costa e tomou posse como juíza conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, em março de 2016, quando estava no Governo. Deixou as funções governativas em 2022 e pediu a jubilação. Contudo, à data do pedido, o Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) exigia atividade ininterrupta, nos últimos cinco anos anteriores à jubilação.
Francisca Van Dunem tinha interrompido esse período ao assumir o cargo de ministra. Para além desse impedimento, surgiu ainda outro problema. Ao que o DN apurou, a Caixa Geral de Aposentações (CGA), que gere as reformas dos funcionários públicos e equiparados, pediu ao Ministério da Justiça (MJ) o pagamento de valores pendentes de descontos. Isto porque, o ordenado de ministra é inferior ao de juíza conselheira e seria necessário entregar à CGA cerca de 20 mil euros em falta. Na sequência da exigência da CGA, o MJ pediu, em maio de 2023, um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e o órgão foi taxativo na sua análise. Com base no EMJ, a ministra não teria direito à jubilação. O parecer data de julho de 2023.
Entretanto, o Governo entrou em período de férias e, em setembro, deu entrada a uma proposta de lei. Na proposta, o Governo pedia várias alterações, entre as quais “garantias quanto ao reassumir das funções profissionais por quem seja chamado ao exercício de funções governativas e da contagem do tempo de exercício de cargos políticos para efeitos de aposentação ou reforma”. A proposta foi votada na Assembleia da República (AR), em novembro do ano passado, e aprovada com votos a favor do PS, PSD, PCP, BE e Livre, contra do Chega e abstenção da Iniciativa Liberal. A nova lei (n.º 26/2024) foi publicada em Diário da República, no passado dia 20 de fevereiro.
Segundo o EMJ, apenas por motivos de saúde ou pelo exercício de funções públicas emergentes de comissão de serviço” se pode interromper o período de contagem dos cinco anos ininterruptos anteriores ao pedido de jubilação (CAPÍTULO VI - Jubilação, cessação e suspensão de funções - SECÇÃO - Jubilação e aposentação ou reforma; Artigo 64.º). Contudo, as funções ministeriais não se enquadram nessas exceções. O DN consultou o advogado Paulo Saragoça da Matta, para entender, com base nas exceções presentes no Artigo 64.º do EMJ, se seria possível a Francisca Van Dunem requerer a jubilação. O causídico nega essa possibilidade. “O exercício de funções como político local, regional ou nacional (como presidente de câmara, como deputado, como secretário de Estado, como ministro), não é, em caso algum, ‘exercício de funções públicas emergentes de comissão de serviço’. Nenhum caso de exercício de funções políticas ocorre em ‘comissão de serviços’ (esta comissão de serviços está prevista para os funcionários e trabalhadores do Estado, o que é vínculo distinto do vínculo dos políticos)”, explica. Para Paulo Saragoça da Matta, “a interrupção de exercício de funções de magistrado judicial para exercício de qualquer das referidas funções políticas, não cai na exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, in fine do EMJ, mas sim na regra”. A título de exemplo, explica ainda que “caso haja jurisprudência a equiparar exercício de funções políticas a comissão de serviço, considerando que os Tribunais em situações semelhantes, com intenção e política de proteção de classe, interpretam os conceitos de modo a ser-lhes aplicável uma solução mais favorável do que aquela que aplicam ao comum cidadão”. “Disto é exemplo o corte das pensões de aposentação dos funcionários públicos impostos pelo Governo de Passos Coelho, que os tribunais entenderam não violar lei nem Constituição, mas já violavam quando aplicadas a presidentes de câmara e juízes, que beneficiaram de regimes de exceção”, sublinha.
“A minha passagem pelo Governo foi uma tragédia”
Contactada pelo DN, Francisca Van Dunem diz desconhecer que o seu pedido de jubilação pudesse ter sido posto em causa, afirmando ter conhecimento, apenas, do contencioso com a CGA. E explica, referindo-se aos impedimentos presentes no EMJ, que “essa norma foi criada para prever situações em que os magistrados, que antes não ganhavam tão bem, trabalhavam como advogados, depois reingressavam na magistratura e jubilavam-se”. “Mas essas pessoas exerciam no privado e queriam acumular com o estatuto da jubilação. Historicamente a norma foi criada por isto”, avança. Algo que, sustenta, não se enquadra no seu caso. Sobre o pagamento dos descontos em falta para a CGA, a antiga governante afirma ter a sua situação regularizada, estando “convencida” de que o MJ pagou o diferencial. “Eu não iria pagar, depois de perder milhares de euros por ter assumido funções de ministra, uma quantia que não recebi. Estive seis anos a perder dinheiro (em 2015, foram mil euros líquidos por mês, e 1500, a partir de 2019) e seria uma dupla penalização. Não vejo quem possa dizer algo contra isto”, afirma. Sobre os cerca de 20 mil euros de descontos, Francisca Van Dunem relembra tratar-se de “dinheiro público, do Orçamento do Estado e não do privado”. A antiga governante recorda, também, que não poderia optar pelo ordenado de juíza em detrimento do de ministra, porque “o salário seria superior ao do primeiro-ministro”, uma situação ilegal, à luz da lei.
A ex-ministra da Justiça recorda que, quando assumiu as funções ministeriais, “tinha a cobertura constitucional que prevê que ninguém pode ser prejudicado por exercer cargos políticos”. “Estava convencida que não seria prejudicada no futuro, mas sabia que, no imediato, iria ganhar menos do que na magistratura. A minha passagem pelo Governo foi uma tragédia. Uma hecatombe financeira”, refere. Questionada pelo DN se não teme que a opinião pública veja a alteração à lei como um favorecimento, Francisca Van Dunem afirma não ter qualquer receio. “Se o Conselho Consultivo da PGR disse que não me podia jubilar, disse mal e não entendo porquê. Não receio interpretações. Imaginar que algo foi feito especialmente para mim era atribuir-me uma importância que, francamente, não tenho”, frisa.
Para a magistrada, a origem do problema está num erro do Executivo que revogou, inadvertidamente, uma lei de proteção aos titulares de cargos políticos. Segundo avança, até 2005, essa proteção estava prevista. “Depois, houve alterações específicas em todos estatutos exceto no Governo. Já quando estava no cargo de ministra, houve uma limpeza, no âmbito do Simplex, fez-se um trabalho técnico para eliminar diplomas antigos. No meio desses diplomas, foi revogado um que tinha a ver com garantias de membros do Governo. Acredito que será essa a razão que levou agora a alterações na lei”, explica.
Francisca Van Dunem não desvaloriza a coincidência entre o seu pedido de jubilação e as alterações subsequentes, porque “o processo legislativo é lento”, mas reafirma não se tratar de qualquer benefício “à medida”. “Este diploma não se aplica só a mim, mas a todos os membros do Governo. Ninguém pode ser prejudicado. A garantia de não retrocesso profissional está prevista na Constituição. Se o Governo percebe que está a prejudicar as pessoas, tem obrigação de rever o que fez”, conclui. Qualquer outra interpretação, afirma, seria “uma leitura jurídica politicamente motivada”.