Por quem sois, senhorias
Não sei se ainda é assim que se ensina, mas na escola aprendi que na sociedade do Antigo Regime existiam três estados: clero, nobreza e povo. Entre as várias distinções decretadas pelo costume e a lei para estas castas, estava naturalmente (nada tendo de natural) a diferente punição para o mesmo ato. Esta desigualdade fundamental acabaria em Portugal com a Constituição de 1911, a da Primeira República, a qual estabelecia ser “a lei igual para todos” (mesmo se permaneceriam, e por muitos mais anos, distinções legais arbitrárias entre géneros e “raças”).
Este princípio basilar do Estado de Direito costuma ser galhardamente defendido por (quase) todos, sendo motivo de grande e justa revolta a suspeita de que a grupos ou pessoas consideradas “poderosas” a lei não é aplicada como aos demais. Não é pois comum assistir-se, em público e para a multidão, à defesa do contrário.
Mas foi isso mesmo que aconteceu, sob variadas formas e desculpas, naquilo a que podemos apelidar de “caso Avillez”.
Maria João Avillez (MJA), 79 anos, iniciou-se no jornalismo nos anos 1970. Tem aquilo a que chama uma “carreira” notável – ninguém o pode contestar. Estagiária do Expresso, lembro-me da primeira vez que a vi, em 1986/7, nos corredores do velho edifício da Rua Duque de Palmela, de calções e descalça, seguida por um Vicente Jorge Silva enlevado. Achei-lhe graça então e continuo, malgrado as diferenças políticas e de estilo, a achar: uma mulher da sua idade que não desiste de trabalhar e de permanecer na ribalta televisiva (sabendo-se o quão misógina e idadista é a sociedade portuguesa) merece a minha admiração.
Como os demais jornalistas profissionais desde que existiu um título habilitante da profissão (primeiro “passado” pelo Sindicato dos Jornalistas e depois pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista/CCPJ), Avillez possuía o seu e não há notícia de que alguma vez tenha contestado a respetiva necessidade. Até que em 2006, por ter participado numa campanha publicitária do Banco Privado Português (com um texto sobre dinheiro), e não entregado, como a lei do Estatuto do Jornalista determina – a atividade publicitária é considerada incompatível com o jornalismo –, a sua carteira pelo período mínimo de seis meses, foi notificada pela CCPJ a fazê-lo. A CCPJ, foi noticiado na altura, iria decidir se lhe aplicava uma coima (que poderia ir até 5000 euros); o pedido de renovação da carteira, a existir, poderia ou não ser deferido.
Alegando que ao aceitar participar na campanha do BPP não pensara que podia estar a violar “qualquer legislação”, MJA decidiu entregar o título para, disse ao Público o seu advogado, José Miguel Júdice, “não ter mais chatices”. Júdice também afiançou que Avillez podia “entregar o título para sempre e continuar a fazer jornalismo porque a lei lho permite.”
A cliente terá, contra aquilo que qualquer pessoa conclui ao ler a lei (“É condição do exercício da profissão de jornalista a habilitação com o respetivo título, o qual é emitido e renovado pela CCPJ”), acreditado no advogado: nunca mais requereu o título, que aliás numa entrevista em 2007 ao Jornal Económico referiu como “a merda da carteira”. E continuou a, para usar uma expressão de Baptista Bastos, “cometer entrevistas”. O que de resto podia com todo o direito fazer (entrevistar não é exclusivo do jornalismo), desde que não se apresentasse como jornalista – isso está-lhe vedado, como a qualquer detentor do curso de medicina, por mais brilhante que seja, está vedado apresentar-se como médico se não estiver inscrito na Ordem e com cédula profissional em dia.
Para grande parte das pessoas, sei, é difícil perceber a questão. Desde logo porque para a maioria “jornalista” é qualquer pessoa que apareça na televisão a fazer perguntas ou a apresentar programas, ou escreva para jornais. E porque, na verdade, a distinção entre o que é e não é jornalismo não é fácil. Sobretudo quando, ao arrepio dos deveres dos jornalistas (para começar, “demarcar claramente os factos da opinião”), publicações doutrinárias como jornais da paróquia ou de partidos políticos podem contratar jornalistas com carteira profissional. E quando pessoas condenadas nos tribunais por difamação continuam a ostentar carteira profissional e podem até a dirigir jornais e canais de TV.
Tudo isto são questões que põem em causa a valia da carteira profissional. Há muito as venho colocando (coisa que comprovaria na versão online deste texto caso o arquivo digital do DN não estivesse de novo desaparecido). Mas não é por considerar que a CCPJ tem sido sobretudo inútil e por vezes até contraproducente na defesa dos princípios e dignidade desta profissão – a única que alguma vez tive –, que posso arrogar-me, querendo continuar jornalista, incumprir a lei.
Desde logo porque é a lei. E depois porque isso significaria que me estava a colocar num lugar diferente, de exceção, daquele que é o dos milhares de camaradas meus que renovam, muitos com custo porque ganham miseravelmente e os emolumentos são caros, a carteira a cada dois anos. Seria uma falta de respeito.
Daí que, se não me surpreendeu ver gente desinformada a perguntar “qual é o problema”, pasmei face à quantidade de jornalistas que disseram o mesmo. E sobretudo pasmei com os argumentos – se assim lhes posso chamar – invocados. Que se resumem à defesa da exceção e do privilégio: MJA pode, porque “é quem é”.
Desde o diretor de informação da SIC, Ricardo Costa, que disse ao DN considerar que não vê questão nenhuma no facto de MJA, não possuindo o título, ser apresentada como jornalista num espaço de informação, e depois no Twitter mandou quem não concorda ler os livros de entrevistas dela, a Ana Sá Lopes, que na CNN proclamou que lê MJA desde adolescente e é contra a existência da CCPJ porque “bastam os tribunais” (presumindo-se assim que crê que não deve haver um código ético da profissão, só a lei geral), passando por Miguel Pinheiro, o diretor do Observador, decretando que MJA é intocável, e pelo ainda há poucos meses jornalista Sebastião Bugalho, que crismou os “críticos de Avillez” de “candidatos a burocratas”.
“Candidatos a burocratas”, supõe-se, serão então para o jovem eurodeputado os defensores de uma lei igual para todos, aplicável a todos. Que disparate, a igualdade; que mau gosto, o princípio da legalidade. Para o deputado Sérgio Sousa Pinto, aliás, é tudo “deplorável” e uma “falta de respeito a MJA”.
A defesa do carácter abstrato e universal da lei, apenas e só o que está em questão, transformada assim, com absoluta – e voluntária, porque não tenho nenhum dos citados por estulto – má-fé, em “perseguição”.
Raras vezes – escrevi-o no início deste texto – se assistiu a uma tão escancarada defesa da ideia de casta. Como disse Marcelo durante a campanha presidencial de 2016, numa notável preleção que já citei aqui, o Portugal do Antigo Regime nunca desapareceu – anda sempre por aí. A ponto de ouvirmos, em coro afinado, loas a Maquiavel: “Aos amigos, favores; aos inimigos e desconhecidos, a lei.”