Raros são os rostos dos filmes, os corpos que o cinema eterniza, capazes de transcender os limites das histórias que interpretam, impondo-se como símbolos universais da magia das imagens. Alain Delon foi um desses protagonistas que se instalou no nosso imaginário no começo da década de 1960, aí permanecendo como modelo universal da mitologia de uma estrela de cinema e, em particular, da utopia romântica a ela associada. No domingo, chegou a notícia da sua morte, em Douchy, no Vale do Loire, na propriedade que era a sua residência principal desde o começo dos Anos 70 - contava 88 anos..O seu nome surge muitas vezes associado aos tempos heroicos da Nova Vaga francesa, o que não deixa de ser uma forma ambígua, algo imprecisa, de situar historicamente a sua carreira..Ao contrário do companheiro de geração Jean-Paul Belmondo, Delon nunca foi uma escolha regular dos novos autores, à exceção de Jean-Pierre Melville, ele próprio algo marginal do interior daquele movimento que transfigurou o cinema francês. Foi sob a direção de Melville que interpretou alguns dos seus títulos mais emblemáticos, incluindo Le Samouraï/O Ofício de Matar (1967), uma variação austera sobre os modelos clássicos do cinema noir de Hollywood..O seu primeiro grande sucesso, em À Luz do Sol (1960), de René Clément, é um herdeiro desse género made in USA: trata-se de uma adaptação de O Talentoso Mr. Ripley, o romance em que Patricia Highsmith lançou a personagem de Tom Ripley (recentemente refeito como Ripley, minissérie assinada por Steve Zaillian)..É ainda na mesma década que contracena com Romy Schneider em A Piscina (1969), de Jacques Deray, por certo um dos filmes mais populares na definição da iconografia erótica que pontua muito cinema da época. Também sob a direção de Deray, e na companhia de Belmondo, participou em Borsalino (1970), variação revivalista sobre o filme de gangsters e um dos maiores sucessos de toda a sua carreira..Celebrado como herói do star system francês, há algo de irónico no facto de os três grandes clássicos que Delon protagonizou na mesma época terem chancela italiana, tanto em termos de produção como no plano autoral. A saber: Rocco e os Seus Irmãos (1960) e O Leopardo (1963), ambos de Luchino Visconti, e O Eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni..Indissociáveis de uma energia narrativa que remete, em última instância, para os artifícios da ópera, os filmes de Visconti refletem uma apurada visão crítica das convulsões da história italiana, também presente no modo como Antonioni expõe as amargas ilusões da “sociedade de consumo” - O Eclipse encerra mesmo uma trilogia sobre a mercantilização das relações humanas, iniciada com A Aventura (1960) e A Noite (1961). Neles encontramos alguns dos mais belos pares que Delon integrou: com Annie Girardot e Claudia Cardinale, respetivamente em Rocco e os Seus Irmãos e O Leopardo, e Monica Vitti, musa de Antonioni..“Sou uma estrela”.Nascido a 8 de novembro de 1935, em Sceaux, nos subúrbios de Paris, Delon foi sempre um ator “selvagem”, sem outra formação que não fosse a “escola da vida”. Depois do Serviço Militar (participou na Batalha de Dien Bien Phu, na Guerra da Indochina) e uma série de empregos acidentais, seria a amizade do ator Jean-Claude Brialy a introduzi-lo no mundo do cinema, muito rapidamente triunfando com À Luz do Sul e os convites de Visconti e Antonioni..Mesmo quando o mercado parecia reduzi-lo à condição de “duro”, em variações menores da imagem construída com Melville, surgiu em obras realmente excecionais como Mr. Klein - Um Homem na Sombra (1976), de Joseph Losey, rigorosa desmontagem do racismo inerente à ideologia nazi, ou Nova Vaga (1990), de Jean-Luc Godard, ensaio sobre o fim do romantismo em que contracena com Domiziana Giordano, atriz consagrada por Andrei Tarkovsky, em Nostalgia (1983)..Vítima de um AVC em junho de 2019, Delon viveu o resto da sua vida com crescentes limitações de saúde - incapaz de gerir o seu património, a sua situação desencadeou mesmo conflitos familiares que, para lá da sua gravidade, foram amplamente explorados pelos tabloides franceses..Um mês antes, no dia 19 de maio, o Festival de Cannes atribuíra-lhe uma Palma de Ouro honorária. Na respetiva sessão de homenagem, disse: “Fiz um trabalho que escolhi, dirigido pelos maiores e melhores, e parece que sou uma estrela - mas se sou uma estrela, é ao público que o devo e a mais ninguém.”