O recente conhecimento, da assinatura de acordos de defesa entre a Federação Russa e São Tomé e Príncipe e, também, com a Guiné-Bissau, fez soar algumas campainhas de alarme em Lisboa. A cooperação militar, entre a Rússia e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), não é um fenómeno recente, e foi iniciado durante a Guerra Fria. E, após as independências, essa cooperação prosseguiu, tendo diminuído com a implosão da União Soviética, nos inícios da década de 90 do século passado..Com a chegada de Vladimir Putin à liderança russa, os interesses geopolíticos em África robusteceram-se, assumindo, nos últimos anos, dinâmicas diferentes das praticadas anteriormente. A principal mudança residiu na (má) utilização de companhias militares privadas para a prossecução de objetivos de natureza geopolítica e geoestratégica da Federação Russa, nomeadamente a conhecida Wagner, com uso de campanhas de desinformação e usurpação de recursos, apoio a golpes de Estado e emprego de forças militares com grave atrição para populações civis, ao arrepio dos princípios mínimos do Direito Humanitário. Esta estratégia materializou-se em países da África francófona, que vivem situações de crise securitária, como é o caso da República Centro-africana, do Mali, do Burkina Faso e, mais recentemente, do Níger. Aconteceu também no Sudão e na Líbia, onde membros do Grupo Wagner (agora designado Africa Corps), têm apoiado algumas fações nas guerras civis em curso..A Federação Russa mantém modelos de cooperação de Defesa (dita “normal”) com muitos países em África, onde não tem colocado em causa as relações desses países com o Ocidente, nomeadamente com as ex-potências coloniais, como tem sido o caso dos PALOP. O único caso conhecido, de presença do Grupo Wagner na lusofonia, foi em Moçambique, em 2019, onde participou em operações de luta contra o terrorismo islâmico em Cabo Delgado, sem grande sucesso, tendo retirado ao fim de alguns meses de operações com a Forças Armadas de Moçambique..A guerra da Ucrânia acelerou as fraturas geopolíticas entre os países democráticos e algumas das autocracias poderosas, como a Rússia e a China, em que o campo de confrontação tem sido a Ásia, a América Latina e, especialmente, a África. Esta luta global, geopolítica e geoestratégica, tem tornado mais difícil a diplomacia dos países do chamado Sul Global, que sempre apoiaram as suas relações internacionais, durante muito tempo, numa base multilateral, em que a agudização da crise geopolítica tem reduzido o leque das opções, levando as lideranças de muitos destes países a terem de optar entre um relacionamento com o Ocidente ou, com a China e, especialmente, com a Rússia..Com a morte de Prigozhin, a Wagner diminuiu a sua atividade em África, mas, com a sua transformação no Africa Corps, tendeu a ver redinamizada a atuação neste continente, em especial na região subsariana..Os PALOP não têm, de momento, crises securitárias graves, condição-base para a atuação do Grupo Wagner, conforme fomos constatando na África francófona. De qualquer modo, é sempre um assunto a seguir com cuidado, pois a metodologia de atuação do grupo presta-se a criar desestabilizações, com apoio a uma das partes, como vimos no Sudão, podendo gerar crises, em especial em países que possuam recursos naturais imediatamente exploráveis, como o ouro, os diamantes e as madeiras. As concessões de exploração são a moeda de troca que a Wagner tem exigido para apoiar militarmente as fações no conflito existente, ou criado..Portugal tem mantido, desde a década de 80 do século passado, programas de cooperação militar com todos os países lusófonos, em especial os PALOP e Timor-Leste. Essa cooperação tem tido períodos melhores e outros menos bons, fruto essencialmente dos recursos financeiros disponibilizados pelo Estado Português, e do interesse das partes nesta cooperação no domínio da defesa (CDD), como agora é designada. Assenta na aprovação de programas-quadro plurianuais, consubstanciados em diversos projetos, muito centrados em atividades formativas e de organização, com a presença de assessores militares portugueses nesses países e a vinda a Portugal de militares, para atividades diversas, maioritariamente no âmbito da formação militar..A constatação óbvia é que esta cooperação já teve melhores dias, sendo necessário, do lado português, fazer uma reflexão séria sobre o nível de ambição da cooperação bilateral e multilateral com os países lusófonos, quais os seus objetivos e mecanismos, de modo a ser mais eficaz nesta nova realidade geopolítica mundial, cujos parâmetros são completamente diferentes do passado. Mesmo com a própria CPLP, nem conseguimos perceber que dinâmica tem, parecendo por vezes desaparecida e com pouco interesse dos países em participarem nas suas atividades. A empatia entre o povo português e os povos dos países lusófonos não se tem perdido, até porque temos em Portugal comunidades desses países bastante bem integradas, assim como comunidades portuguesas e empresas a operar na economia desses mesmos países, também bem aceites e integradas. Mas continua a ser necessário cuidar desta realidade, não dando por adquirido que este clima de amizade e cooperação possa continuar, sem se fazer nada por isso..Urge pensar a cooperação portuguesa com os países lusófonos, com uma estratégia que garanta a sua continuidade em prol da comunidade de língua portuguesa, como entidade geopolítica que é, atendendo às ambições de todos os seus membros. Mas mesmo que a cooperação económica funcione, e está a funcionar, a cooperação nas áreas da soberania é um elemento fundamental para estruturar e potenciar a cooperação política, elemento fundamental para o seu futuro. E, aqui, a cooperação na área da Defesa e Segurança é um pilar fundamental deste ecossistema cooperativo..A cooperação, entre os sistemas de Defesa Nacional dos países lusófonos, terá de repensar o seu paradigma de funcionamento dos últimos 40 anos, pois estamos num mundo completamente diferente, com novos desafios. E terá de ser mais ambiciosa, pois o nível de ambição dos países africanos de língua portuguesa aumentou e querem ter sistemas militares mais robustos e mais operacionais, pois é daí que advém a sua Defesa e Segurança e, consequentemente, o reforço da sua soberania..Um dos aspetos a robustecer é o da economia de defesa, que tem um caminho a fazer com a articulação de capacidades e potencialidades que alguns países possuem, como é o caso de Portugal e do Brasil..Outro ponto importante é que, hoje, a ambição das Forças Armadas desses países reside mais em aspetos de capacitação operacional do que, exclusivamente, atividades de formação e qualificação, que sendo importantes não chegam para uma capacitação operacional integral. A capacitação operacional é um sistema que junta formação técnica e tática, doutrina, infraestruturas e equipamentos, que permite produzir unidades que aportam capacidade operacional para a defesa da soberania desses países e a sua sustentabilidade. É o caso, por exemplo, dos sistemas de segurança marítima e da proteção de aeroportos militares, da capacitação dos sistemas de comando e controlo, das unidades de combate e apoio de combate e dos sistemas de saúde militar, entre muitos outros..Economia de Defesa, capacitação operacional e interoperabilidade são os elementos-chave na renovação do paradigma da cooperação militar, com os países de língua portuguesa. Se não o fizermos outros o farão.