Debates junto à tempestade
Apesar de todos os protestos sociais, a campanha eleitoral vai correndo serenamente. Contudo, a relativa bonança dos debates parece ser semelhante à calma antes das grandes tempestades. Os líderes partidários discutem escolhas orçamentais ao serviço de diferentes políticas públicas, como se isso dependesse das suas preferências e talento pessoais. Na verdade, os aparentes dissensos escondem um perigoso consenso. A campanha eleitoral funciona como se houvesse um pacto não-escrito, inscrito no inconsciente dos nossos representantes. Todos os atores políticos convergem na aceitação da ficção de que de dentro da nossa pequena casa portuguesa ainda é possível, nos condicionamentos atuais, vislumbrar um futuro viável.
O problema da verdade, na política como na vida, é que nós podemos esquecê-la, mas ela volta sempre para cobrar o imposto devido pelo nosso esquecimento. Há 50 anos, a questão nacional era o nosso isolamento internacional. É verdade, como escreveu Franco Nogueira em 1971, que em toda a África meridional nenhum Estado ousava dar um passo sem saber o que faria Lisboa. Mas isso servia de fraco consolo num velho império europeu onde até as elites já estavam cansadas da pobreza do povo e da absurda falta de liberdades básicas.
Com um coração, muitas vezes ingénuo, abrimo-nos inteiramente à nossa condição europeia e ocidental. Infelizmente, com raríssimas exceções, o entusiasmo costuma ser inversamente proporcional à lucidez das decisões. Entrámos no processo da construção europeia, determinados a ficar no “pelotão da frente” (sem nunca se aprofundar as reais implicações dessa metáfora vinda do ciclismo). Depois de uma hesitação breve de Cavaco Silva, mergulhámos de cabeça e olhos vendados no caldeirão da união monetária.
Em 2008 começámos a pagar a conta. Não foi só a enorme dívida pública acumulada, que poderia ter sido minimizada como ficou demonstrado pela conduta imposta por Draghi ao BCE a partir de 2012. Fomos entregues ao pânico dos mercados e, com o ultimato da troika, vimos setores fundamentais da economia serem transferidos para centros externos de decisão.
Mas o nosso compromisso ocidental inclui a NATO e a hegemonia militar dos EUA. Apesar de já não existir o império que justificava o alinhamento com a potência marítima dominante, e de termos usado o orçamento que deveria ser da Defesa como mealheiro para outras necessidades consideradas mais urgentes, deixando as Forças Armadas em estado lastimável, continuámos fervorosos atlantistas.
Fechámos os olhos à mudança gradual da liderança dos EUA, no sentido de um unilateralismo cada vez mais aventureiro e beligerante. Os aliados foram arrastados ou hostilizados em sucessivos conflitos que semearam o caos nas fronteiras da UE, de 1999 em diante. A guerra na Ucrânia e o genocídio de Israel em Gaza não nasceram sem causas profundas. A opção presidencial Biden ou Trump é um sintoma de grave doença democrática nos EUA, e um perigo para o mundo.
Tudo isto está quase ausente do debate eleitoral. As questões-chave da paz e da guerra, num tempo de armas nucleares, a viabilidade de uma economia capaz de suportar o Estado social sem devorar o ambiente, deixaram de ser objeto de política, para mergulharem numa espécie de destino. Em 1974, o nosso problema era um crispado e cansado isolamento internacional. Em 2024, o problema, criado também por negligência própria, é a coabitação num condomínio crescentemente asfixiante e em perigosa deriva.