Faz sentido defender que subsídios de combate à pobreza não tenham condição de recursos, ou seja, não haja o cuidado de perceber se quem os recebe precisa mesmo deles? Alguém, num país com óbvios constrangimentos orçamentais e persistentes bolsas de pobreza, achará bem dar pouco a muitos que não se sabe se precisam em vez de identificar os realmente necessitados e dar-lhes mais? E que equidade há em tratar da mesma forma quem descontou 30 anos e quem descontou 10 ou cinco?.A resposta devia ser não, ninguém e nenhuma. Mas, como se tem visto nas últimas semanas, não é: há mesmo pessoas a defender que é um escândalo impor condição de recursos a subsídios sem base contributiva. E, pior, a querer convencer que isso corresponde a insensibilidade social e a "abater pensões", e que é uma "coisa de direita". Uma dessas pessoas é, lamento dizer, Francisco Louçã..O fundador e ex coordenador do BE, doutorado em economia, e por quem tenho grande simpatia pessoal, respondeu sábado, no seu blogue no Público, com um extenso post de 8300 caracteres ao meu texto de sexta-feira (com 2900) no qual referia um seu texto anterior..Peço que me perdoem o facto de, para por minha vez lhe responder, não só voltar ao assunto das pensões mínimas, com o qual ao longo dos anos tenho seringado a paciência de quem me lê , como de escrever um pouco mais que de costume..FL começa com chumbo grosso, dizendo que defendo que se "abatam pensões sociais" e que tive "o azar" de no mesmo dia em que o meu texto foi publicado Passos ter vindo a público dizer que está disposto a entrar em acordo com o governo "para ir buscar mais um bocadinho de dinheiro às pensões sociais." "Uma coincidência constrangedora", diz FL..[destaque:Como é que alguém de esquerda pode defender que quem contribuiu muito pouco, e pode portanto ter trabalhado muito pouco, seja favorecido, ao receber um subsídio sem aferição de necessidade, em relação a quem trabalhou e contribuiu toda a vida?].De Passos, confesso, não espero rigor, nem neste assunto nem em nenhum. Mas de Louçã esperava bastante mais, e sobretudo que não apanhasse boleia do ex PM, da sua demagogia e da sua sempre expectável ignorância, para rebater alguém com uma opinião distinta da sua..Não, não se trata de "cortar" nem "abater" pensões. Como FL bem sabe, estou e estive sempre a falar do complemento que é pago pelo Estado, como subsídio, nas pensões chamadas mínimas, para que estas perfaçam um determinado valor que é legalmente fixado como "mínimo" - um valor que sai dos impostos de todos e que se soma àquilo que seria a pensão a que a pessoa teria direito com base nas suas contribuições. Ou seja, a ideia é verificar se o subsídio deve ser atribuído; se a pessoa tem necessidade e portanto devemos onerar o Orçamento de Estado com esse complemento ou não. Uma vez que a proposta do governo, que FL ataca, é em relação a pensões futuras, não se pode sequer, em relação a ela, usar a expressão "corte", muito menos "abate". (E já agora cuidado com a terminologia: não se está a falar de "pensões sociais" - essas já têm condição de recursos, porque são um subsídio, não correspondendo a uma carreira contributiva - mas das "pensões mínimas")..Assim, se há aqui constrangedora coincidência, é a de ver Louçã e Passos partilhar termos e imprecisões..Aliás, diz FL que esta proposta é "namorar a direita". Falará da mesma direita que esteve no poder quatro anos e que não só nunca falou de impor condição de recursos nas pensões mínimas como cortou o Complemento Solidário para Idosos, criado em 2006, com condição de recursos, para, precisamente, combater a pobreza nos idosos que recebem pensões baixas? A mesma direita que aumentou as mais baixas das pensões mínimas, aquelas que segundo a secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim têm uma média de carreira contributiva de nove anos? A mesma direita que atacou de imediato a proposta do governo? Será essa direita? É que o que se anota é a coincidência de pontos de vista entre essa direita, a do PSD e CDS, e a posição dos que à esquerda atacam a condição de recursos. Quem namora quem?.Depois, como já fizera no texto anterior, FL põe em causa o estudo de Carlos Farinha Rodrigues e Miguel Gouveia publicado em 2003 referente a dados de 2000 e que eu, como muitas outras pessoas, invoco para defender a imposição de condição de recursos às pensões mínimas.."O estudo está desactualizado", afirma FL, como se alguém alguma vez tivesse pretendido que é de ontem. Por amor de deus, Francisco Louçã: ninguém refere o estudo porque acha que a percentagem de pessoas que recebem pensões mínimas e não são pobres é, como seria em 2000, de 70%. Simplesmente não se sabe quantas são hoje. Mas o que se sabe a partir deste estudo, e daí a sua importância fundamental, é que receber pensões mínimas não implica ser pobre. E isso, ao contrário do que FL afirma, permite fazer política para 2017 e 2018. Não, não é "ideologia e preconceito": é racionalidade e seriedade. Ideologia e preconceito será fazer de conta que o estudo não existe..Mas, precisamente, FL quer pôr essa conclusão em causa. E para tal volta a referir (já o tinha feito no texto sobre o qual escrevi) os valores de 2000 como se fossem atuais: "Como a definição estatística do nível de pobreza era nesse ano de 307 euros, então não seriam considerados "pobres" em 2000 dois adultos (o segundo conta como 0,5, segundo a regra estatística) que tivessem 231 euros cada um." E prossegue: "A conclusão é simplesmente irrefutável e FC não tenta contrariá-la. Estamos a falar de pobres que não seriam considerados "pobres" para justificar que deixassem de receber a pensão.".Não, de facto não tentei refutar que o estudo diz que duas pessoas em 2000 com um rendimento de 462 não eram consideradas pobres. O que fiz foi exatamente o contrário: lembrei que em 2000 o salário mínimo era 317 euros e portanto um rendimento de 462 euros estava 45% acima. Portanto não, não eram pobres..Mas FL chama a isso "uma conta estranha": "FC prefere antes mergulhar numa conta estranha, actualizando estes valores da linha de pobreza com o fingimento de que está amarrada ao salário mínimo (onde é que foi inventar esta?), para concluir que os 231 euros de há uma dúzia de anos equivaleriam hoje a dois adultos com 384 euros e que portanto é algum dinheiro.".Contas estranhas, peço desculpa, e afirmações estranhas são as de FL. Não, não escrevi que a linha da pobreza está ligada ao salário mínimo - quem inventou que inventei essa foi mesmo FL. O que fiz foi contextualizar os valores, porque nem toda a gente é doutorada em economia e haverá muitos a achar que os 231 euros citados valem o mesmo em 2016 - o que está errado..[destaque:Mais que a forma desastrada - chamemos-lhe assim - como Francisco Louçã argumenta nesta matéria, espanta-me a incoerência].Se FL acha que não faz sentido mencionar o valor contemporâneo do salário mínimo, bastar-lhe-ia dizer que 462 euros de 2000 correspondem a 630 euros a preços de hoje. Mas não o faz. Porquê? Tenho um palpite: é que não poderia de cara séria certificar que isso é pobreza, no sentido de precisar de um subsídio estatal. "Há limites na decência", diz FL. Quererá talvez dizer que há limites para lá dos quais se está fora da decência; nisso concordamos..Porém, mais que a forma desastrada - chamemos-lhe assim - como FL argumenta nesta matéria, espanta-me a incoerência. No texto anterior, admitia que há casos de pessoas a receber pensões mínimas que as acumulam com pensões do estrangeiro e que é necessário "corrigir" isso. Ora se corrigir isso não corresponde a condição de recursos, corresponde a quê? E como pode FL admitir que no caso de quem recebe uma outra pensão (desde que suficiente) se retire o complemento social mas a quem, por hipótese, tenha milhões no banco não? Qual a lógica disto?.A incongruência continua quando FL diz que a condição de recursos do Complemento Solidário para Idosos é má porque exige conhecer os rendimentos dos filhos. Será este o mesmo Francisco Louçã que defende o fim do sigilo bancário? Portanto, o fisco deve poder saber quanto toda a gente tem nas contas, mas a Segurança Social não pode exigir essa informação a quem lhe pede um subsídio de pobreza?.Refira-se que FL elogia o CSI, apesar de considerar que "a condição de recursos no CSI é um entrave no combate à pobreza". De facto, e nisso estou de acordo com Louçã, o CSI devia chegar a mais idosos: a todos os que precisam dele. Mas FL, frise-se, não sugere que se acabe com a condição de recursos do CSI; acha que deve ser alterada, melhorada. Pergunte-se: qual o racional de aceitar que o CSI deve ter condição de recursos e defender o contrário para o complemento das pensões mínimas? Não são ambos prestações sociais não contributivas com o objetivo de combater a pobreza nos idosos?.(Já agora: a condição de recursos do CSI só exige uma participação aos filhos dos idosos que tenham rendimentos individuais a partir de 1200 euros. Num salário de 1600 euros, o valor mensal da ajuda exigida aos filhos é 20 euros. Dizer, como diz FL, que "se os filhos tiverem mesmo que um pequeno rendimento, os pais estão fora do complemento" simplesmente não é verdade.).Por fim, a incongruência suprema: como é que alguém de esquerda pode defender que quem contribuiu muito pouco, e pode portanto ter trabalhado muito pouco, seja favorecido, ao receber um subsídio sem aferição de necessidade, em relação a quem trabalhou e contribuiu toda a vida e fez a totalidade dos descontos? Não é suposto a esquerda defender o valor do trabalho e do esforço contributivo? Onde está a justiça social em gastar com quem não sabemos se precisa em vez de dar a quem precisa mesmo?."Se FC sabe de uma boa razão para desencadear esta crise [entre o governo e o seu apoio à esquerda], gostaria de a conhecer", diz FL..Não, Francisco Louçã, não conheço nenhuma boa razão para haver uma crise por causa desta proposta; só más, péssimas, razões. Do meu ponto de vista, esta discussão só peca por tardia. E estou muito contente por ter havido finalmente um governo com coragem para a fazer, porque se trata de um assunto em que é muito fácil usar demagogia e explorar a ignorância e os medos das pessoas. Como se demonstra.