Em tempos normais, Eduarda Abbondanza estaria num dos seus fins de semana mais agitados do ano - aquele em que a ModaLisboa tem lugar. Desta vez tudo foi gravado em vídeo e ela é uma espectadora privilegiada. "Tenho assistido às conferências, que nunca podia, e acho as entrevistas muito interessantes". A edição que decorre até domingo é totalmente digital e será "um documento a ver no futuro", diz a presidente da associação que põe de pé este evento há 30 anos. Em outubro, de preferência ao ar livre, celebra-se. Seria impossível fazer esta entrevista em plena ModaLisboa antes. Estaríamos num regime diferente. Também estou a assistir à ModaLisboa de outra maneira. Normalmente, vejo com um olhar mais crítico e agudo. Ontem, dia do meu aniversário, tive quatro horas de aulas online [é professora na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa], a Modalisboa a arrancar online e nem pude sair de casa..Como foram as reações no primeiro dia [quinta-feira]? Ainda não tenho esse feedback. Como é tudo gravado, que daqui a um tempo este vai ser um documento de época. Consigo ler nas entrevistas montes de coisas que fazem parte do tempo e do isolamento de cada um de nós. Nunca temos uma ModaLisboa integralmente gravada. Acho que daqui a um ano e meio, iremos olhar para este documento e leremos em cada palavra o momento que passámos..Uma edição 100% digital pode ter algum lado positivo? O lado positivo é que a moda de autor e as marcas independentes, todo o sector está aqui e e está a comunicar. Estamos a envolver a comunidade toda. A maneira como cada pessoa aceitou o convite é extraordinário. Há uma necessidade das pessoas de falarem com o seu sector e a sua tribo. Já era, mas agora tem uma missão maior. por outro lado, não existindo a parte presencial, é possível criar a memória de todos os pormenores do vestuário pelas coleções serem integralmente filmadas. Sempre passámos em streaming., mas não conseguíamos captar as texturas, os pormenores e nestes vídeos conseguimos isso tudo..Podemos estar em Lisboa e ver o que se passa em Paris e Nova Iorque. O contrário também. Há uma democratização, mas, de alguma maneira, eu já via tudo. Quando não conseguia através da plataforma, via através de quem lá estava. Não vejo apenas a [emissão] organizada nem só a espontânea. Sempre me irritou a fraca opinião que as pessoas tinham do Instagram, que me permite seguir autores e criativos, apanho tudo o que quero. Sempre tive uma grande riqueza de informação..Estão a chegar a todo o lado? Estamos a transmitir para a China e a trabalhar com a imprensa internacional, só que de outra maneira. Aprendemos também que o mercado chinês tem características diferentes. Tivemos de editar os vídeos para passar. Há vetos a corpos muito nus, a exposição da pele, tivemos de editar isso tudo, se não eram cortados. Não é como nos EUA ou na Europa. Tem outras regras e tivemos de nos adaptar..Toda a gente aceitou participar neste modelo? Há pessoas que não estão a fazer a edição deste ano - Nuno Gama e Lidija Kolovrat - mas tem que ver com momentos. O Nuno Gama fechou loja e abriu outra. A Lidija Kolovrat também quis baixar stress e não participa, tem que ver com o momento.."Falta o frufru social", disse a Joana Duarte (Behén). Aceitamos por fim que a ModaLisboa acontece nos desfiles e fora deles? É óbvio. O digital salvou-nos na pandemia, mas não acho que o modelo que estamos a praticar seja de futuro - é transitório e o possível. A moda precisa de interação e emoção, o que em digital é difícil de passar. Tem que ver com atitudes e comportamentos. Tentamos é ir buscar os lados melhores que isto pode proporcionar. A proximidade entre a comunidade, transmitir conhecimento - as pessoas têm mais disponibilidade - e focar naquilo que no passado não foi possível..No futuro, manterá essa edição digital? Ganhámos todos competências que não tínhamos, não vamos andar para trás. As competências que adquirimos digitalmente vamos juntar a outras competências que já tínhamos criado ao longo do tempo. A edição dos jardins [há um ano] não foi limitada mas sim perfeita. Estivemos sempre a transmitir digitalmente. Essa mistura das duas vertentes é muito interessante, vamos somar. O futuro será composto por tudo isto e ainda mais coisas que hão de vir. Na primeira fase de confinamento, não só na moda mas também os comentadores estavam muito empenhados numa missão impossível: a futurologia. Temos de observar cada dia, estar em contacto com o máximo número de pessoas, o futuro será construído com todos e quando lá estivermos nem vamos dar por isso. O melhor é ter calma no nervoso. Estar ligado porque todos dias as coisas mudam..Este ano, passaram ao lado das estações do ano. Porquê? Temos de responder o melhor possível à situação de cada empresa de criadores. Neste momento as empresas têm de sobreviver da maneira que a sua empresa indicar. Percebemos muito atempadamente que isso é assim, ou seria assim, e deixámos logo cair logo que foi colocado em cima da mesa. As marcas direct to consumer estão com um poder de crescimento enorme. A pandemia destruiu o mundo como o vivemos até aí, mas não parou tudo. Há "n" marcas a aparecer e a crescer num momento de pandemia. Aquilo que caiu foi o sistema de moda como ele estava construído. Foi abalroado. Quem tinha uma marca tinha uma série de empresas associadas que não acabava mais e que tornavam o produto muito mais caro. Estão a nascer marcas independentes. Anulam essa rede toda de prestadores de serviço. As marcas venderem online ao seu consumidor, faz com que conheçam melhor. Vão buscar profissionais de cada sector, mas definida por eles. Pela quantidade de marcas, ainda por cima, éticas, abordando a sustentabilidade, é impossível isto não ter uma força brutal. Acho que o mass market está em crise, já estava, e vai redimensionar..Valerie Steele, professora de história da moda no FIT - Fashion Institute and Tecnology que a pandemia exacerbou tendências que já existiam. Concorda? Há "n" coisas que estavam a ser questionadas mas que não se podiam parar. E que a pandemia parou mesmo..Debatem-se dois caminhos para a moda a julgar pelos movimentos dos conglomerados de moda: o conforto e a vontade entrar nos 'roaring 20's do século XXI'? Para onde vamos? As duas coisas vão misturar-se. Nada é feito de um só ponto de vista. É uma liberdade muito grande. Eu sou eu e visto-me como quero e crio a minha imagem. Já vinha a acontecer com a morte das tendências, que é vem de há muito tempo. As pessoas criaram tribos, redes locais e internacionais - essa noção vai ser muito forte. O que também vemos é a recuperação das Arts & Crafts.- tricot, bordado, tapeçaria, macramé. As gerações mais novas foram aprender. Isso recuperou-se imenso. Começa-se por fazer pão, acaba-se a fazer camisolas..A sustentabilidade é palavra de ordem hoje na ModaLisboa. Uma imposição ou um desejo dos criadores? A sustentabilidade não tem só que ver reciclar é a maneira de pensar o produto. É muito difícil impor porque as empresas têm o seu processo, o que decidimos foi aplicar essa reconversão dentro da ModaLisboa, dentro do processo, e passar a mensagem a todos os fornecedores e a toda a gente que está connosco, pelas nossas boas práticas. A produção local é um passo enorme na sustentabilidade, para reativar esse ecossistema que se tinha perdido com o mass market. Isso está muito mais consistente e a funcionar..Estão a fazer 30 anos. Como pensam celebrar? Ainda temos mais uma edição, vamos esperar por outubro para dar uns pulos ao ar livre..Nestes 30 anos que leva de ModaLisboa, em que ponto está a moda nacional? Há 30 anos não falávamos de moda nem de nacional! Nem moda nem nacional. Estamos num momento de revolução, o mundo todo está. Apesar desta situação, os momentos de mudança têm sempre um lado de mudança emocionante e misterioso. Estamos em compasso de espera a aguardar por uma mudança.