Um vírus causou o covid-19. Cientistas dizem que mais uns milhares estão à espreita
Desde o início deste século, dois surtos de doenças foram causados por coronavírus que deram o salto dos animais hospedeiros para as pessoas, sofrendo mutações no processo para se prenderem às células humanas. O surto de covid-19 é o terceiro. A ciência médica está a retaliar com as ferramentas que possui e a construir novas defesas, mas as evidências sugerem que os três vírus por trás dessas doenças são apenas a vanguarda de um exército de possíveis agentes patogénicos que podem chegar aos milhares.
O facto de existir um número tão grande de vírus nos chamados reservatórios de animais não é uma surpresa para os cientistas e investigadores que os estudam. Mas a preocupação é que a evolução do comportamento humano, tanto social quanto económico, esteja cada vez mais a ir ao encontro desse exército em habitat de animais. Os especialistas dizem que isso é resultado da desflorestação maciça e da expansão de terras agrícolas para fornecer alimentos e outros bens a uma população humana que mais do que duplicou, passando dos 3 mil milhões na década de 1960 para os atuais 7,7 mil milhões.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o atrito causado está entre os fatores que permitem que doenças infecciosas surjam a um ritmo mais rápido nas populações humanas, incluindo os três principais coronavírus assassinos do século XXI até agora: Sars-CoV, Mers-CoV e Sars -CoV-2.
Embora a maioria destes novos agentes patogénicos provenha de animais, segundo a OMS, as epidemias de doenças que se seguem são o resultado de uma rede complexa de infraestrutura humana e redes de transporte espalhadas pelo mundo. É isso que dissemina rapidamente um vírus muito além da floresta, quinta ou comunidade, onde ele saltou pela primeira vez de um animal para uma pessoa, dizem os especialistas.
"Essas repercussões sempre aconteceram - isso faz parte da natureza -, mas são as nossas atividades que estão a mudar as coisas", disse o epidemiologista veterinário Dirk Pfeiffer. "Estamos a criar um desequilíbrio, estamos a aproximar-nos da floresta e a invadir o habitat de animais silvestres e de agentes patogénicos que não conhecíamos antes".
Isso é agravado pelo crescimento de megacidades que, juntamente com o desenvolvimento em massa do comércio e viagens globais, permitem que as infeções se espalhem rapidamente, disse Pfeiffer, professor da City University de Hong Kong.
"Os seres humanos moldaram o planeta para ganharem mais dinheiro e viverem confortavelmente e, ao fazê-lo, forneceram o melhor ambiente possível para a transmissão de agentes patogénicos", disse ele.
À medida que as populações crescem, as economias em crescimento e as cadeias de abastecimento globais oferecem aos consumidores que vagueiam pelos supermercados a escolha de cortes de carne bovina provenientes de herdades de gado escavadas na selva ou na savana em vários continentes diferentes. Entramos numa loja para comprar um telemóvel e ele contém componentes feitos de cobalto extraído de uma mina africana. Escolhemos um champô em Nova Iorque e ele contém óleo de palma de uma plantação que substituiu um habitat animal na Indonésia. Fornecer todas essas mercadorias significa geralmente limpar vastas áreas de florestas, o que leva as pessoas e o gado a aumentarem o contacto com a vida selvagem e os vírus que esta possa transportar. Isso cria as condições para aquilo a que o ecologista de doenças Peter Daszak chama uma nova "era pandémica".
"Precisamos de pensar em pandemias da mesma maneira que pensamos sobre as alterações climáticas - é uma ameaça existencial para nós, mas é uma ameaça que podemos realmente controlar, porque somos os seus motores", disse Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, organização de investigação sem fins lucrativos sediada na cidade de Nova Iorque, e que tem assessorado a OMS em doenças infecciosas.
Mesmo antes da pandemia de covid-19, a OMS já havia chamado o século XXI "uma longa história de flagelos", apontando para o ressurgimento da praga, que matou 200 pessoas em Madagáscar em 2017 e o surto de novas doenças virais, como a síndrome respiratória aguda grave (Sars).
Uma equipa de epidemiologistas, incluindo Daszak e George Gao, diretor do Centro Chinês de Controlo e Prevenção de Doenças, e Dennis Carroll, ex-diretor da unidade de gripes pandémicas e ameaças emergentes da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, usaram modelos matemáticos para calcularem que pode haver até 1,7 milhões de vírus desconhecidos em animais. O mesmo modelo calculou que mais de meio milhão poderia ter o potencial de causar doenças humanas.
Daszak começou recentemente a angariação de fundos para um projeto de mil milhões de dólares para encontrar e catalogar esses vírus. O objetivo é aproveitar o trabalho realizado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional para criar um banco de dados de dados genéticos para apetrechar melhor uma resposta da saúde pública a esses agentes patogénicos. Mas essa é apenas uma das estratégias de como a humanidade se pode preparar melhor para combater esse exército viral que está nos bastidores. Os especialistas dizem que são necessários mais investimentos nos serviços públicos de saúde e no desenvolvimento de meios aperfeiçoados para monitorizar febres inexplicáveis e pneumonia nas populações. Isso pode incluir o uso de grandes dados para reunir registos médicos, dados de telemóveis e padrões de voo para prever como os surtos se espalharão de forma a intercetá-los.
Depois, há a repressão da China ao comércio de animais depois de o novo coronavírus, Sars-CoV-2, ter sido vinculado a um mercado que vende animais selvagens como alimento na cidade de Wuhan. O multibilionário comércio global de animais selvagens também cria condições para surtos de doenças.
Outro desenvolvimento é a iniciativa One Health, que reúne médicos e veterinários no reconhecimento das ligações entre seres humanos, animais e o meio ambiente em epidemias. A iniciativa inclui agora centenas de profissionais depois de ter ganho força em meados dos anos 2000, durante a epidemia da gripe das aves.
Há também a corda coberta de compota de morango. Esse foi um truque usado por uma equipa de investigadores que trabalha na região da Floresta Impenetrável de Bwindi, no Uganda, que incluiu a epidemiologista e veterinária da vida selvagem Tierra Smiley Evans, que usou essa corda para fazer com que os babuínos disponibilizassem facilmente as suas amostras de saliva. Eles adoraram.
"Eles mastigavam muito, como se fosse pastilha elástica, e depois cuspiam", disse Smiley Evans, investigadora do Instituto de Saúde Davis One da Universidade da Califórnia, na Escola de Medicina Veterinária. A saliva da corda e da compota cuspidas forneceu a Smiley Evans e à sua equipa amostras para testar vírus, conhecidos ou desconhecidos, analisando semelhanças genéticas com famílias virais conhecidas. Essas informações podem ajudar os investigadores a entender quais os vírus que estão à espreita em populações específicas de animais e o risco para os seres humanos que vivem, caçam ou criam gado na proximidade desses animais. A ideia não é forçar as comunidades a mudar ou abandonar o seu estilo de vida, o que pode ser impraticável ou ineficaz, disse ela.
"Mas podemos ser muito mais inteligentes na forma como monitorizamos esses locais de alto risco e como garantimos que, se houver um evento de extravasação, investimos no treino dessas comunidades para que elas possam reconhecê-lo.... e fazer com que o mundo saiba disso."
Compreender os vírus em animais é apenas uma estratégia de batalha, destacam os especialistas. Saber quais vírus que estão realmente a saltar para os seres humanos e a deixá-los doentes - testando amplamente amostras de anticorpos ou famílias virais - é uma linha inicial de defesa crucial para impedir que esses vírus se tornem pandémicos.
"Pode muito bem acontecer que doenças semelhantes à Covid-19 se tenham vindo a disseminar para os seres humanos há anos, e porque não temos muita coisa feita no que respeita à vigilância das nossas populações, não as apanhámos" disse Sam Scarpino, professor assistente no Network Science Institute da Northeastern University. "Assim, eu colocaria isso no topo da lista."
Scarpino dirige um laboratório sobre epidemias emergentes que trabalha com agências de saúde pública para construir modelos para prever surtos e a sua disseminação.
Mas é impossível identificar quando um agente patogénico potencialmente pandémico extravasa dos animais para os seres humanos, disse Scarpino. Mesmo identificar as áreas de maior risco para doenças conhecidas é "incrivelmente desafiador", disse ele. Parte disso deve-se a preconceitos.
"Estamos focados, com alguma miopia, em partes da China e do Sudeste Asiático em relação ao surgimento de doenças e estamos a deixar de lado partes inteiras do mundo que possuem as mesmas assinaturas ambientais e fatores de risco", afirmou Scarpino. Como exemplo, ele apontou para a disseminação da nova gripe do gado para indivíduos no centro dos EUA "quase todos os verões".
Noutros casos, o vírus simplesmente faz o inesperado. Mapas de calor construídos a partir de dados sobre populações de aves para prever a gripe aviária falharam completamente a região suinocultora do México, onde se acredita que o surto de gripe H1N1 de 2009 tenha surgido em porcos, outro veículo.
Num cenário ideal, Scarpino e a sua equipa poderiam extrair informações coletadas da vigilância de doenças em todo o mundo e usar dados sobre fatores de risco, como áreas com distúrbios ambientais, áreas intensamente agrícolas e comércio de animais silvestres. Mas eles não têm todos esses dados. Na luta futura contra surtos, reunir essas informações num só lugar seria "um grande passo à frente", disse Scarpino.
"Depois disto, e depois do tão grande trauma que o mundo viveu, acho que ficaremos mudados para sempre. Espero que uma dessas mudanças seja um investimento sustentado em vigilância."
Para o epidemiologista veterinário Pfeiffer, é essencial construir todos os meios necessários para nos prepararmos e combatermos estas epidemias.
"O risco está decididamente a crescer... pode acontecer daqui a 20 anos ou no próximo ano", disse ele. "Até agora, conseguimos lidar com eles porque não nos matam em número suficiente. O próximo pode ser aquele que o faz."
* Simone McCarthy é jornalista do South China Morning Post