Mulheres portuguesas: cansadas, infelizes e mais mal pagas

Em Portugal, a maioria das mulheres estão infeliz com a sua vida laboral e dois terços não ganham mais do que 900 euros líquidos mensais, mostra estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos apresentado nesta terça-feira.
Publicado a

As mulheres portuguesas são mais mal remuneradas do que os homens, apesar de cada vez mais instruídas, e a maioria delas vive infeliz e cansada com a vida profissional e pessoal, de acordo com o estudo "As mulheres em Portugal, hoje", o mais abrangente alguma vez feito sobre o tema. A investigação da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) foi apresentada nesta terça-feira, no mesmo dia em que a instituição celebra 10 anos de existência, e traça um retrato atual do sexo feminino no país, "o que são, o que pensam e como se sentem".

O trabalho - coordenado pela especialista em market intelligence e consultora espanhola Laura Sagnier, e do qual também fizeram parte as especialistas portuguesas em estudos de género Sara Falcão Casaca e Heloísa Perista - envolveu uma amostra de 2428 mulheres (representativas de cerca de 2,7 milhões). Todas elas entre 18 e os 64 anos, residentes em Portugal e que utilizam a internet de forma regular - de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, são 81% da população feminina.

Estão, na maioria, na faixa dos 35 aos 44 anos (28%) e residem na Área Metropolitana de Lisboa (27%) e no centro do país (21%). Mas não é tudo o que o estudo permite concluir. Ao longo de meses, foram analisadas várias dimensões da vida desta população, como emprego, vida doméstica, situação económica, relação com a pessoa parceira, assédio, violência doméstica e de género, entre outras.

Conclui-se que, de forma geral, há três principais etapas de mudança na vida das mulheres, em que a forma de pensar se altera: aos 28 anos, aos 35 e, por último, aos 50. Entre todas elas, a maioria considera que o companheiro é a componente das suas vidas que mais influencia a sua felicidade.

Ganham menos do que os companheiros

Em 46% dos casais portugueses, a mulher aufere menos rendimentos do que o companheiro - apenas em 15% dos casos ela obtém mais. Dois terços têm rendimentos que não ultrapassam os 900 euros líquidos mensais e, entre as mulheres que trabalham por conta de outrem (86%), quase um terço tem vínculo contratual instável, cenário que se verifica mais frequentemente entre aquelas que estão empregadas na administração pública, sem serem funcionários públicos.

Os dados mais recentes da Pordata dizem que, em 2017, o salário das mulheres foi, em média, cerca de 15% inferior ao dos homens - em 2015, esta disparidade situou-se nos 17% e em 2000 nos 22%. Além disso, ainda que na maioria dos casais os dois membros tenham trabalho pago, o estudo da FFMS indica que em 16% deles a mulher não está ativa no mercado de trabalho e o seu companheiro está. O inverso só acontece em 8% dos casais portugueses.

Apesar de a diferença salarial entre géneros estar a diminuir ao longo dos anos, Heloísa Perista, consultora científica deste estudo, refere que é preciso não nos deixarmos iludir por uma descida "subtil". É preciso ter em consideração "a crise económica do país, que afetou setores maioritariamente masculinos (como o da construção) e que fez diminuir a distância de rendimentos entre sexos", disse, em entrevista ao DN.

Contudo, a divergência dos números entre sexos nada tem que ver com a instrução a eles associada, pois "é habitual que as mulheres tenham mais habilitações, ou as mesmas, do que os respetivos companheiros", lê-se no estudo.

Mais instruídas do que as mães

Apesar de os dados de 2017 da Pordata apontarem Portugal como um dos países da União Europeia onde as mulheres têm menor escolaridade, numa análise geral, as mulheres portuguesas estão cada vez mais instruídas relativamente às gerações antigas, mesmo relativamente ao parceiro com quem moram.

Atualmente, a grande maioria daquelas que se encontram na faixa etária dos 40 anos tem um nível de escolaridade superior ao das mães (em média, com 64 anos). Quando contrapondo as duas linhas geracionais, 36% das "filhas" concluíram o ensino superior, contra os 10% das "mães". As áreas de estudo mais comuns são Direito, Ciências Sociais e Serviços, Economia, Gestão e Contabilidade e Humanidades, Secretariado e Tradução.

Quase sempre "cansadas" e infelizes com trabalho

Traçando um desenho geral do ciclo de vida do sexo feminino em Portugal, o estudo permite dizer ainda que, em média, entram no mercado de trabalho aos 20 anos, saem de casa dos pais por volta dos 23 e foram mães aos 27 anos. Mas ajuda também a concluir que não está feliz.

A maioria das mulheres portuguesas (51%) estão descontentes com a sua vida laboral e 44% admitem mesmo que o seu emprego está abaixo ou muito abaixo das expectativas.

Em Portugal, elas estão sempre ou quase sempre "demasiado cansadas". E tal pode refletir-se na saúde. Uma em cada dez toma diariamente medicação para a ansiedade, distúrbios de sono ou antidepressivos - ainda que a maioria continue a ser pautada por mulheres que nunca necessitaram de recorrer a estes medicamentos.

Mas estas são conclusões que dizem respeito ao campo profissional, mas também doméstico, e podem ser justificadas "se tivermos em conta o escasso tempo que muitas mulheres dispõem para si próprias nos dias úteis", pode ler-se no documento enviado ao DN.

Durante o ciclo de conferências A Mulher, Hoje, realizado na Aula Magna da Reitoria Clássica de Lisboa, nesta terça-feira, Laura Sagnier disse que, quando questionou as mulheres sobre o que é mais importante no seu emprego ideal, "elas responderam que era a conciliação do tempo" para si e para o trabalho. "Inverteu-se o tempo que temos para nós com o tempo para o trabalho", explicou.

Mulheres: 73% das tarefas domésticas. Homens: 23%

Em mais de dois terços dos casais, as mulheres fazem muito mais do que o companheiro. Em média, elas ainda efetuam 74% das tarefas domésticas, contra os 23% que o companheiro efetua. E, de acordo com a investigação, "serão necessárias cinco a seis gerações para que se alcance uma distribuição equilibrada das tarefas domésticas entre sexos", entre os casais em que ambos têm trabalho pago.

Talvez por isso, o que grande parte das mulheres, a partir dos 28 anos, deseja é a possibilidade de "conciliar bem o trabalho pago com a vida pessoal e familiar".

A especialista Heloísa Perista alerta que o trabalho doméstico ainda é "uma sobrecarga que continua a recair sobre as mulheres, que se reflete nos seus níveis de bem-estar, na sua saúde e no tempo que as mulheres tiram para si". "Hoje, não é tanto ao nível do trabalho de prestação de cuidados, nomeadamente relativo às crianças pequenas, que a assimetria de género é mais evidente. A grande diferença situa-se em relação ao trabalho doméstico", disse.

Durante o ciclo de conferências desta terça-feira, Laura Sagnier revelou ainda que, a propósito do estudo, nesta semana um jornalista a questionou sobre o facto de ter definido as tarefas domésticas como "trabalho não pago". "E eu respondi: pergunte qual é a mulher que gosta de passar a ferro sem ser paga para isso", contou.

"Este desequilíbrio [entre tarefas] cria um gap negativo no tempo das mulheres, destinando-o mais ao trabalho do que a cuidar delas. Por isso, não é de estranhar que mais de 60% dizem sentir-se cansadas", remata.

Ainda de acordo com a consultora Heloísa Perista, este paradigma pode ser mudado através "do nosso quadro legal" e é um papel que "tem sido assumido por parte das suas responsabilidades parentais (licença parental), por exemplo". Contudo, ainda há um longo percurso a percorrer na desconstrução dos estereótipos que estão na base da desigualdade entre sexos."Tem de se começar no sistema educativo, de formação, nos meios de comunicação e nas mensagens publicitárias - porque ainda há, de forma geral, muito a fazer relativamente à transmissão de mensagens que contribuam para tornar mais equitativa a partilha destas responsabilidades domésticas", explica.

Nas páginas finais do estudo "As mulheres em Portugal, hoje", a equipa envolvida alerta que "a situação vivida por muitas mulheres atualmente é insustentável, a vários níveis", o que gera "um impacto significativo na natalidade, no absentismo laboral, nos sistemas de proteção social, na educação de crianças e jovens e nos índices de divórcio, além do seu bem-estar e da qualidade de vida".

Na conferência desta terça-feira, Laura Sagnier sublinhou ainda: "O melhor é que para nada disto é preciso dinheiro."

Antes deste, o mesmo trabalho foi anteriormente publicado em Espanha, também coordenado por Sagnier, e traçou o perfil das mulheres espanholas.

Diário de Notícias
www.dn.pt