Escândalo nos EUA. Médicos de fertilidade usaram esperma seu em pacientes

fraude

Escândalo nos EUA. Médicos de fertilidade usaram esperma seu em pacientes

Dezenas de pessoas descobriram, graças a testes de ADN, que o suposto dador anónimo cujo esperma foi usado para as conceber é na verdade o médico responsável pelo processo. Nos EUA, há estados que já criminalizaram este ato. Em Portugal nenhum caso semelhante foi até agora tornado público.

Quando o médico holandês Jan Karbaat morreu, em abril de 2017, aos 89 anos, deixou no mundo mais de 70 pessoas concebidas com o seu esperma. Pelo menos 22 reconhecidas, resultantes de relações sexuais, e 49 por ter usado o seu esperma na inseminação de pacientes suas, que recorreram à clínica de fertilidade que dirigiu durante 40 anos na zona de Roterdão. Este ano, em abril, um tribunal certificou que o médico fora a origem do esperma usado para conceber aquelas 49 pessoas.

O caso de Karbaat, por mais incrível que pareça, não é porém único nem o pior; tem surgido a evidência de muitos outros, descobertos graças ao acesso facilitado a testes de ADN através de empresas criadas para o efeito, e que por exemplo nos EUA, por 99 dólares (89 euros), e através de uma inscrição on line e envio de material genético pelo correio permitem encontrar informação geográfica e étnica sobre antepassados e parentes "perdidos" ou simplesmente secretos, como é o caso de especialistas em infertilidade que usaram o seu esperma como sendo de "dador anónimo" nas suas pacientes.

Com acesso a milhões de perfis de ADN -- que cresce à medida que mais pessoas lhes enviam o seu material genético, alegando uma das empresas, a AncestryDNA, que desde 2012 já testou mais de 10 milhões de pessoas em 30 países --, estes serviços mapeiam a origem dos testados e apontam familiares próximos e afastados. Esses familiares não são identificados pelo nome, mas apenas por localização e pela percentagem de coincidência genética. Porém, apenas com essa informação tem sido possível a várias pessoas descobrir segredos na sua conceção. Há o caso, contado no Guardian , de uma americana que descobriu ter resultado do sexo entre a mãe, então com 18 anos, e o respetivo par no baile de finalistas do liceu.

"O que se pensava na altura era que se a paciente ficasse grávida não havia forma de saber de quem era o esperma", disse, numa carta a Eve, de 32 anos, o médico que usou o próprio esperma para lhe inseminar a mãe.

E, naturalmente, vários testados têm conseguido localizar os dadores do esperma utilizado para inseminar as respetivas mães. Foi o sucedeu à texana Eve Wiley, 32 anos. Aos 16, Eve foi informada pelos pais de que tinha sido concebida por inseminação artificial com o esperma de um dador anónimo californiano, devido à infertilidade do pai. Em 2017 e 2018, fez testes de ADN através de uma das empresas referidas e descobriu que a pessoa cujo esperma tinha sido usado na sua conceção não era um californiano (a mãe pedira especificamente um dador não local) mas Kim McMorries, o médico que dirigira o tratamento.

O New York Times , que contou a história esta quarta-feira, tentou falar com o médico mas este declinou qualquer comentário apesar de ter confessado, numa carta dirigida a Eve Wiley, que misturara o seu esperma com o de outros dadores para, alega, "melhorar as chances" de a mãe dela engravidar. Nada dissera por causa da lei que impunha o anonimato dos dadores, justifica. "O que se pensava na altura era que se a paciente ficasse grávida não havia forma de saber de quem era o esperma."

Crime de agressão sexual ou fraude?

O que McMorries fez é atualmente crime no estado onde ele e Eve vivem, o Texas. Em junho, o parlamento estadual passou uma lei classificando o ato como forma de agressão sexual, o que alguns juristas consideram desajustado. Mas não é claro o que pode ser feito num caso tão antigo. McMorries poderá eventualmente ser alvo de um processo cível e perder a licença para praticar medicina, como sucedeu a um especialista de fertilidade no Ontário, Canadá.

O ex-médico, agora com 80 anos, teve a licença cassada pela Ordem dos Médicos canadiana depois de se provar que usara o seu esperma para inseminar pelo menos 11 pacientes. A uma delas disse que tinha usado o seu esperma para calibrar um instrumento clínico e que assim se explicava o facto de ela ter engravidado com o seu esperma. O que a Ordem não considerou credível, considerando as suas ações "para lá de repreensíveis", e com "repercussões nas suas pacientes e respetivas famílias para sempre."

Além do Texas, também no Indiana existe uma lei, desde maio, que estatui ser delito o uso do esperma errado, dando às vítimas o direito de processar os médicos até cinco anos após a descoberta da fraude -- permitindo assim levar à justiça casos com décadas. Anteriormente, um médico do estado foi condenado a um ano de pena suspensa depois de se provar que tinha usado o próprio esperma para inseminar pelo menos 36 mulheres nos anos 1970 e 1980; 61 pessoas descobriram que foram concebidas desta forma. O clínico deixou de praticar medicina em 2009 e admitiu que tinha mentido às autoridades, sendo condenado por obstrução à justiça. Os responsáveis pela acusação disseram ao NYT que não podiam pedir uma pena mais alta porque na altura em que os atos foram cometidos, naquele estado, como no resto do país, aquela conduta não era punida pela lei.

"Terão considerado que não havia problema nenhum, sobretudo tendo em conta que era uma época em que os pacientes não faziam perguntas. Na cabeça deles, achariam talvez que estavam a ajudar aquelas mulheres a engravidar"

Na verdade, ninguém, e muito menos as pacientes, imaginavam que fosse possível os médicos abusarem assim do seu poder, chegando mesmo a usar o seu esperma em vez dos dos maridos das pacientes. Jody Madeira, uma professora de Direito na Universidade de Indiana que está a seguir mais de 20 casos quer nos EUA quer noutros países -- Reino Unido, África do Sul, Alemanha e Holanda -- disse ao NYT crer que há vários motivos possíveis para tal suceder. Alguns médicos terão achado, numa altura em que nem sempre era fácil ter acesso a esperma de dadores (o congelado não era, até ao final da década de 1980, o recomendado para o efeito), que era uma coisa inteligente de se fazer.

Meia dúzia de maçãs podres ou prática generalizada?

"Terão considerado que não havia problema nenhum, sobretudo tendo em conta que era uma época em que os pacientes não faziam perguntas. Na cabeça deles, achariam talvez que estavam a ajudar aquelas mulheres a engravidar", diz a jurista. "Mas outros teriam motivos menos generosos. Apostaria que muitos fizeram-no para afirmar o seu poder, por terem problemas mentais, ou desvios narcísicos. Ou porque se sentiam atraídos por algumas daquelas mulheres."

O facto de tantos casos estarem a surgir, porém, leva Dov Fox, um especialista em bioética da Universidade de San Diego (Texas) a concluir que a prática que qualifica, "numa palavra, como nojenta", parece ter sido generalizada: "O número de médicos envolvidos leva a crer que não se trata de algo que meia dúzia de maus clínicos fizeram mas de uma atitude mais comum, que ficou até agora escondida graças à inexistência de tecnologia que permitisse expô-la e ao estigma que recaía sobre as vítimas."

"O número de médicos envolvidos leva a crer que não se trata de algo que meia dúzia de maus clínicos fizeram mas de uma atitude mais comum, que ficou até agora escondida graças à inexistência de tecnologia que permitisse expô-la e ao estigma que recaía sobre as vítimas."

Em Portugal não foi até agora tornado público qualquer caso semelhante. Mas não só é relativamente recente -- de 2006 -- a regulação legal da procriação assistida, tendo muitas das pessoas que precisavam destas técnicas recorrido a clínicas no estrangeiro, como parece ser ainda pouco comum o recurso a testes de ADN como os descritos, apesar de já haver em Portugal empresas a oferecer estes serviços on line. Certo é que mesmo se a lei nacional até 2018 garantia o anonimato dos dadores, o acesso generalizado a estes testes e o mapeamento genético que as empresas referidas fazem porá em risco esse anonimato -- em Portugal e em qualquer parte do mundo onde se recorra a técnicas de procriação assistida. O que poderá levar a que o número de dadores decresça drasticamente.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG