BE receia que Infarmed não perceba "espírito" da lei da canábis terapêutica

Perante os relatos, noticiados pelo DN, de familiares de pacientes com epilepsias raras que usam um derivado de canábis, o BE questiona governo sobre interpretação que o Infarmed faz da lei que foi incumbido de regulamentar.
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O Bloco de Esquerda está com receio de que o Infarmed não tenha percebido bem a lei aprovada na Assembleia da República a 15 de junho, e que permite o uso terapêutico de canábis.

Pede pois ao ministro da Saúde, em pergunta esta tarde entregue no parlamento, que deixe "claro o papel do Infarmed, nomeadamente a sua responsabilidade na autorização de importação de produtos à base da planta da canábis, sejam eles medicamentos, preparações ou substâncias."

Isto porque, frisa o requerimento bloquista, "a legislação produzida e aprovada [lei n.º 33/2018 de 18 de julho] refere explicitamente, para além de medicamentos, as folhas e sumidades floridas, o óleo e outros extratos padronizados obtidos a partir da planta da canábis. Ou seja, esta lei não regula apenas a prescrição, dispensa e disponibilização de medicamentos à base de canabinoides, regula também a prescrição, dispensa e disponibilização de partes da planta, extratos, óleos e outros que tenham ação e eficácia terapêutica. Qualquer destes produtos, desde que autorizados pelo Infarmed, podem ser prescritos por médico e dispensados em farmácia. A regulamentação a publicar será muito importante para clarificar este aspeto, uma vez que o acesso a alguns produtos continua a ser dificultado, com o Infarmed a retirar-se do papel que deve ter sobre o assunto."

Pacientes rechaçados por Infarmed

Esta chamada de atenção do BE, em pergunta ao ministro da Saúde entregue esta tarde na Assembleia da República, surge quando faltarão - de acordo com a interpretação do regulador da farmácia e do medicamento (Infarmed) que está incumbido da tarefa -- menos de 15 dias para o fim do prazo da regulamentação da lei.

E após vários relatos de familiares de pacientes com epilepsias raras que fazem terapêutica com óleo de canabidiol (um extrato não estupefaciente de canábis) certificarem que o Infarmed os remeteu para a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária quando estes lhe pediram autorização para importar a substância.

Estes relatos, que o DN tem vindo a publicar desde março, incluem o de Maria João Rezende, noticiado este domingo, e que atesta que, após uma primeira situação, em abril, na qual o Infarmed lhe deu autorização para desalfandegar uma remessa importada dos EUA de óleo de CBD, a própria presidente do Infarmed, Maria do Céu Machado, lhe comunicou, em julho (já após a aprovação da lei) que o organismo que superintende "não pode ajudá-la" a importar o óleo que a sua irmã utiliza para controlar as convulsões, por estar classificado no país de origem, os EUA, como suplemento alimentar. Em virtude desse facto, a presidente do Infarmed remeteu Maria João para a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, a qual, como o DN relatou, negou ter qualquer responsabilidade na matéria, afirmando que como se trata de um produto para uso terapêutico está sob a tutela do Infarmed.

Jogo de empurra

Frisando que "o óleo de CBD tem inegáveis benefícios terapêuticos na redução de crises convulsivas associadas a doenças como epilepsias refratárias e é, inclusivamente, aconselhado por médicos em determinadas situações", e que "as pessoas e familiares de pessoas que poderiam beneficiar deste produto (principalmente na redução significativa de sintomas e no aumento do bem-estar e qualidade de vida), continuam a relatar inúmeras dificuldades de acesso: encomendas barradas na alfândega, não autorização por parte do Infarmed, falta de clarificação sobre o papel da DGAV e do Infarmed, o que potencia um empurrar de responsabilidades entre os dois organismos", o subscritor da pergunta, o deputado Moisés Ferreira, conclui: "A regulamentação prevista na Lei n.º 33/2018, de 18 de julho, pode e deve clarificar esta situação. Uma vez que a prescrição e dispensa de óleos e extratos à base da planta da canábis foi já aprovada por lei e que é ao Infarmed que cabe o processo de supervisão e regulação de todo o processo, então cabe também ao Infarmed a autorização de importação (sempre que tal seja necessário) destes mesmos produtos.

O BE alerta assim para "a necessidade de uma rápida regulamentação da lei; regulamentação essa que deve observar e cumprir plenamente o articulado e o espírito da lei e que deve clarificar situações que hoje permanecem pouco claras (...). A publicação da regulamentação deve ser feita rapidamente, não só para cumprir a lei, mas para permitir a sua aplicação prática, desde a possibilidade de prescrição, até à possibilidade de dispensa em farmácia." E pergunta: "Quando será publicada a regulamentação da Lei n.º 33/2018, de 18 de julho, prevista publicar até 60 dias após a publicação da Lei?"

CBD pode manter-se ilegal?

A regulamentação da lei, porém, apresenta-se como complexa, de acordo com o jurista João Taborda da Gama, citado pelo DN a 16 de setembro. "Porque o CBD apesar de não estar explicitamente referido na nossa lei da droga [o decreto-lei 15/943 de 22 de Janeiro] como substância controlada, é extraído da planta canábis, e por essa razão está ainda sujeito ao controlo dos Tratados da ONU e da Lei da Droga. É verdade que isto faz hoje pouco sentido, pois sabemos que o CBD não tem efeitos psicoativos, mas os tratados das Nações Unidas - dos quais decorrem as leis nacionais que proíbem uma série de substâncias e plantas, incluindo a canábis - foram escritos quando não tinham sido ainda identificados os diferentes canabinoides e os seus efeitos".

Assim, vê "dois caminhos para dar aos doentes algo a que têm direito: a regulamentação da Lei 33/2018 [que aprova o uso terapêutico da canábis] prever o acesso ao CBD de um modo mais facilitado do que aos medicamentos à base da planta de canábis que contenham THC [tetraidrocanabinol, a componente estupefaciente da canábis], ou THC a partir de um certo nível; ou rever a Lei da Droga e explicitamente retirar o CBD das tabelas." É, frisa este advogado, o que propôs o Comité de Peritos sobre Dependência de Drogas da Organização Mundial de Saúde na sua reunião de junho.

Em carta de 23 de julho ao secretário-geral da ONU, António Guterres, o presidente do comité apela a que o CBD "na forma pura" seja retirado das tabelas apensas às convenções da organização que listam as substâncias controladas. Ou seja, que deixe de ser uma substância considerada proibida.

O valor terapêutico do CBD é algo em que a OMS tem vindo a insistir. Fê-lo em dezembro de 2017, num comunicado em que refere, com base numa revisão inicial da evidência científica, que o canabidiol pode ter valor terapêutico, nomeadamente no controlo de espasmos e convulsões epiléticas. Estatui também que esta substância não tem potencial de abuso e dependência, pelo que não se justifica ser incluída nas tabelas de substâncias controladas associadas às Convenções da ONU sobre Estupefacientes. Voltou a fazê-lo em junho no mencionado encontro do ECDD (Expert Committee on Drug Dependence).

Resta saber o que é "canabidiol na forma pura". Mas a lei aprovada em Portugal visa precisamente excecionar da proibição a produção, distribuição, prescrição, comercialização e uso de canábis e seus derivados ou preparações para fins terapêuticos.

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