Semear a desconfiança na imprensa e nos jornalistas, com a retórica constante de que as notícias são "fake news” e de que os profissionais são “inimigos do povo”. Usar o sistema judicial para pressionar financeiramente a imprensa. Intimidar os meios de comunicação e escalar os ataques com a ajuda de empresários aliados. Construir um ecossistema mediático paralelo e partidário. Parece-lhe familiar? Esta é a receita ou playbook de como governos autocratas atacam a imprensa em várias partes do mundo.O roteiro foi explicado por A.G. Sulzberger, publisher do New York Times, no painel Truth in the Age of Propaganda and Polarisation (A verdade na era da propaganda e da polarização, em tradução literal), realizado esta manhã, 11 de novembro, no palco principal do Web Summit, em Lisboa. A conversa foi moderada pela também jornalista Katherine Maher, CEO da NPR, o serviço público de rádio dos Estados Unidos.Segundo Sulzberger, um dos primeiros alvos de qualquer governo autocrata, ou mesmo aspirante a autocrata, é a imprensa. “E a razão para isso é bastante óbvia: é mais fácil fazer o que se quer quando ninguém faz perguntas e ninguém expõe aquilo que se prefere manter em segredo”, afirmou o jornalista, que começou a trabalhar no NYT em 2009 como repórter na secção local.Quando Donald Trump se candidatou e as sondagens começaram a indicar possibilidades reais de vitória, “deixou muito claro que tencionava atacar a imprensa de forma direta e agressiva”, alertou. Foi então que o publisher começou a “preparar-se”, em conversas com colegas de países como a Turquia e o Brasil, e percebeu “um padrão muito claro”.De acordo com o jornalista, não se trata de assassinar jornalistas nas ruas ou de prender profissionais (embora isso aconteça em vários países), mas sim de aplicar estratégias. “Trata-se de aumentar gradualmente a pressão de forma sistemática, especialmente através de punições financeiras, tornando cada vez mais difícil exercer o jornalismo de investigação em plena capacidade”, vincou.Este playbook já foi aplicado em países como o Brasil, a Turquia e a Índia, além dos Estados Unidos. “Ao semear sistematicamente a desconfiança na imprensa e normalizar o jornalismo de personalidade, usando retórica como "fake news" ou "inimigos do povo", o efeito é aumentar o assédio e as reações negativas contra jornalistas”, sublinhou.No caso do uso dos tribunais, os custos legais dos processos contra jornais desgastam ainda mais as redações, que já enfrentam diversas pressões financeiras. O poder do governo também é usado, através de “regulamentos e investigações destinados a intimidar os meios de comunicação”.Estes ataques, que vão escalando, contam com o apoio de “empresários e aliados poderosos que apresentam processos de difamação ou lançam campanhas de pressão”. Uma das figuras citadas por Katherine Maher foi o bilionário Elon Musk.Por fim, Sulzberger explicou a estratégia de construção de novos meios de comunicação partidários, “cheios de órgãos de comunicação leais ao partido no poder, em vez de apenas destruir os existentes”. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, estes ecossistemas proliferam na internet, através de podcasts e videocasts que alcançam literalmente milhões de pessoas e com forte poder nas redes sociais, alcançando todas as camadas da população, em especial jovens.No caso americano, essas figuras, que não são jornalistas, passaram a ter acesso à Casa Branca, enquanto alguns profissionais de órgãos considerados “inimigos” veem as suas credenciais suspensas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Associated Press (AP).De acordo com o publisher, cada uma destas táticas tem vindo a avançar de forma “significativa” no último ano. “O mais desanimador é que, das cinco táticas que identificámos há apenas um ano, já vimos progressos em todas elas nos Estados Unidos”, avaliou.Sulzberger também inverteu os papéis no painel, perguntando a Katherine Maher como a NPR tem sido alvo de ataques por parte de Trump. “Não queria tornar isto sobre nós, mas, de facto, como emissora pública, temos sido o alvo preferencial. Os meios públicos em todo o mundo têm sofrido pressões”, afirmou, citando exemplos como a Polónia e a Hungria.No caso da emissora americana que dirige, houve uma perda de aproximadamente 575 milhões de dólares em financiamento federal este ano. “Houve uma série de audiências no Congresso destinadas a desacreditar-nos, um decreto presidencial que nos impediu de receber fundos federais (violando a Primeira Emenda), uma investigação baseada em alegadas ‘violações do interesse público’ e, finalmente, a retirada total do financiamento pelo Congresso”, contou a CEO. Resumiu dizendo que “tem sido um ano extremamente difícil e, provavelmente, o início de um período longo”.Mas a equipa não desanima. “O público, tanto nacional como internacionalmente, vê o que está a acontecer. E, apesar de tudo, a NPR continua a fazer jornalismo sério e independente”, destacou.O que fazer?Ambos os jornalistas concordaram que este cenário é um “fenómeno global e perigoso”. O publisher do NYT lembrou que, “depois de Trump ter popularizado o termo ‘fake news’, mais de 50 países aprovaram leis com esse nome, não para combater a desinformação, mas para calar jornalistas independentes”.Para Sulzberger, não há fórmulas mágicas nem um playbook como o de Trump e dos seus aliados pelo mundo. Mas há coisas que podem ser feitas. “O mais importante é continuar a fazer o nosso trabalho: continuar a reportar, a fazer perguntas, a publicar factos, mesmo sob pressão”, defendeu.Não há outro caminho senão resistir, concordaram os dois jornalistas experientes. “O caminho é resistir — e continuar a exercer o direito fundamental de informar.” E mais: Sulzberger afirmou que é preciso fazer “um trabalho melhor” para mostrar à sociedade a importância do jornalismo. “O jornalismo é essencial em qualquer democracia”, concluiu.amanda.lima@dn.pt.Web Summit: Governo ambiciona colocar o país na liderança da IA.Web Summit. Brasil chega com mais de 370 ‘startups’ e programação intensa