Ambos os jornalistas concordaram que este cenário é um “fenómeno global e perigoso”.
Ambos os jornalistas concordaram que este cenário é um “fenómeno global e perigoso”.Foto: Lukas Schulze / Web Summit / Sportsfile

Web Summit. Publisher do NYT diz que ataques ao jornalismo seguem "padrões muito claros"

Painel foi um dos primeiros no palco central do Web Summit nesta terça-feira. Cimeira tecnológica tem programação até quinta-feira, com expetativa de reunir 70 mil pessoas de todo o mundo.
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Semear a desconfiança na imprensa e nos jornalistas, com a retórica constante de que as notícias são "fake news” e de que os profissionais são “inimigos do povo”. Usar o sistema judicial para pressionar financeiramente a imprensa. Intimidar os meios de comunicação e escalar os ataques com a ajuda de empresários aliados. Construir um ecossistema mediático paralelo e partidário. Parece-lhe familiar? Esta é a receita ou playbook de como governos autocratas atacam a imprensa em várias partes do mundo.

O roteiro foi explicado por A.G. Sulzberger, publisher do New York Times, no painel Truth in the Age of Propaganda and Polarisation (A verdade na era da propaganda e da polarização, em tradução literal), realizado esta manhã, 11 de novembro, no palco principal do Web Summit, em Lisboa. A conversa foi moderada pela também jornalista Katherine Maher, CEO da NPR, o serviço público de rádio dos Estados Unidos.

Segundo Sulzberger, um dos primeiros alvos de qualquer governo autocrata, ou mesmo aspirante a autocrata, é a imprensa. “E a razão para isso é bastante óbvia: é mais fácil fazer o que se quer quando ninguém faz perguntas e ninguém expõe aquilo que se prefere manter em segredo”, afirmou o jornalista, que começou a trabalhar no NYT em 2009 como repórter na secção local.

Quando Donald Trump se candidatou e as sondagens começaram a indicar possibilidades reais de vitória, “deixou muito claro que tencionava atacar a imprensa de forma direta e agressiva”, alertou. Foi então que o publisher começou a “preparar-se”, em conversas com colegas de países como a Turquia e o Brasil, e percebeu “um padrão muito claro”.

De acordo com o jornalista, não se trata de assassinar jornalistas nas ruas ou de prender profissionais (embora isso aconteça em vários países), mas sim de aplicar estratégias. “Trata-se de aumentar gradualmente a pressão de forma sistemática, especialmente através de punições financeiras, tornando cada vez mais difícil exercer o jornalismo de investigação em plena capacidade”, vincou.

Este playbook já foi aplicado em países como o Brasil, a Turquia e a Índia, além dos Estados Unidos. “Ao semear sistematicamente a desconfiança na imprensa e normalizar o jornalismo de personalidade, usando retórica como "fake news" ou "inimigos do povo", o efeito é aumentar o assédio e as reações negativas contra jornalistas”, sublinhou.

No caso do uso dos tribunais, os custos legais dos processos contra jornais desgastam ainda mais as redações, que já enfrentam diversas pressões financeiras. O poder do governo também é usado, através de “regulamentos e investigações destinados a intimidar os meios de comunicação”.

Estes ataques, que vão escalando, contam com o apoio de “empresários e aliados poderosos que apresentam processos de difamação ou lançam campanhas de pressão”. Uma das figuras citadas por Katherine Maher foi o bilionário Elon Musk.

Por fim, Sulzberger explicou a estratégia de construção de novos meios de comunicação partidários, “cheios de órgãos de comunicação leais ao partido no poder, em vez de apenas destruir os existentes”. Em países como o Brasil e os Estados Unidos, estes ecossistemas proliferam na internet, através de podcasts e videocasts que alcançam literalmente milhões de pessoas e com forte poder nas redes sociais, alcançando todas as camadas da população, em especial jovens.

No caso americano, essas figuras, que não são jornalistas, passaram a ter acesso à Casa Branca, enquanto alguns profissionais de órgãos considerados “inimigos” veem as suas credenciais suspensas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Associated Press (AP).

De acordo com o publisher, cada uma destas táticas tem vindo a avançar de forma “significativa” no último ano. “O mais desanimador é que, das cinco táticas que identificámos há apenas um ano, já vimos progressos em todas elas nos Estados Unidos”, avaliou.

Sulzberger também inverteu os papéis no painel, perguntando a Katherine Maher como a NPR tem sido alvo de ataques por parte de Trump. “Não queria tornar isto sobre nós, mas, de facto, como emissora pública, temos sido o alvo preferencial. Os meios públicos em todo o mundo têm sofrido pressões”, afirmou, citando exemplos como a Polónia e a Hungria.

No caso da emissora americana que dirige, houve uma perda de aproximadamente 575 milhões de dólares em financiamento federal este ano. “Houve uma série de audiências no Congresso destinadas a desacreditar-nos, um decreto presidencial que nos impediu de receber fundos federais (violando a Primeira Emenda), uma investigação baseada em alegadas ‘violações do interesse público’ e, finalmente, a retirada total do financiamento pelo Congresso”, contou a CEO. Resumiu dizendo que “tem sido um ano extremamente difícil e, provavelmente, o início de um período longo”.

Mas a equipa não desanima. “O público, tanto nacional como internacionalmente, vê o que está a acontecer. E, apesar de tudo, a NPR continua a fazer jornalismo sério e independente”, destacou.

O que fazer?

Ambos os jornalistas concordaram que este cenário é um “fenómeno global e perigoso”. O publisher do NYT lembrou que, “depois de Trump ter popularizado o termo ‘fake news’, mais de 50 países aprovaram leis com esse nome, não para combater a desinformação, mas para calar jornalistas independentes”.

Para Sulzberger, não há fórmulas mágicas nem um playbook como o de Trump e dos seus aliados pelo mundo. Mas há coisas que podem ser feitas. “O mais importante é continuar a fazer o nosso trabalho: continuar a reportar, a fazer perguntas, a publicar factos, mesmo sob pressão”, defendeu.

Não há outro caminho senão resistir, concordaram os dois jornalistas experientes. “O caminho é resistir — e continuar a exercer o direito fundamental de informar.” E mais: Sulzberger afirmou que é preciso fazer “um trabalho melhor” para mostrar à sociedade a importância do jornalismo. “O jornalismo é essencial em qualquer democracia”, concluiu.

amanda.lima@dn.pt

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