Os melhores dias da vida de Siddhikarj foram aqueles que se seguiram a 5 de julho de 2016, quando as autoridades portuguesas descobriram as condições desumanas em que vivia na Herdade dos Morangos, em Almeirim. Passado de mão em mão, para trabalhar a troco de pouco, num percurso migrante iniciado aos 21 anos, de Katmandu para o Reino Unido..Naquele dia de julho tremeu porque entraram polícias pelo anexo da exploração agrícola onde ele e mais 22 nepaleses viviam. Quem os explorava dizia-lhes que se os denunciassem às autoridades estas os iriam deportar por estarem ilegais em Portugal. Mas foi o contrário: ofereceram-lhes um programa de proteção se colaborassem para pôr na cadeia os mentores da rede de tráfico humano em que estavam envolvidos, o que veio a acontecer em 2018.."Quando a polícia entrou, tive muito medo, mas, ao mesmo tempo, as coisas estavam tão más, o Pedro [Pedro Santos, o dono da propriedade e que foi condenado a 14 anos de prisão] tratava-nos tão mal que já não sabia o que seria melhor. Não tínhamos horas e dias para trabalhar, mal alimentados, nem sempre havia água e ele desligava a luz às 21h00, dizia que era para dormirmos, que tínhamos de nos levantar cedo. Se o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] não tivesse aparecido, não sei como teria sido. Essa foi a maior ajuda da minha vida", conta Siddhikarj ao DN..Foi o culminar da investigação do SEF - Operação Pokhara (cidade nepalesa) -, com a GNR e a Autoridade para as Condições de Trabalho, e que levou à pena de prisão efetiva dos três arguidos (dois nepaleses e um português) pelo crime de tráfico de seres humanos. Uma condenação que é difícil de provar. Este processo beneficiou do facto de ser um grupo grande e, na maioria, escolarizados, do acompanhamento da Associação para o Planeamento da Família e da Equipa Multidisciplinar Especializada para as vítimas..Recolheram, logo, os testemunhos para memória futura (evitando que tivessem de ir ao tribunal). Trataram das questões da saúde e jurídicas, encaminharam-nos para instituições sociais no país. Siddhikarj viajou com dois companheiros para Braga. Sente-se feliz e é para esta cidade que quer trazer a mulher, com quem casou o ano passado, no Nepal. A pandemia obrigou a que ficasse nove meses, já regressou a Portugal e está a tratar dos papéis para a mulher.."Não há nada para não gostar em Braga, tudo é perfeito. O que mais gosto é da diversidade: portugueses, estrangeiros, brancos, negros, magros, gordos, gays, todos são tratados da mesma maneira. Aqui não me sinto diferente, sinto-me igual a todos. É a coisa mais especial de Braga", explica o jovem, agora com 34 anos. Garante que, mesmo que obtenha a nacionalidade portuguesa, o que poderá acontecer ao fim deste ano, é na cidade bracarense que quer viver. "O dinheiro não é o mais importante.".É um rapaz tímido, não dado a confusões, gosta especialmente do bairro calmo onde vive. É a justificação para não querer ver publicado o nome - Siddhikarj é a alcunha - e a máscara imposta pela covid-19 protege a identidade. Testemunhou para a justiça e faz questão de testemunhar para o DN. "Espero que possa contribuir para a consciencialização de pessoas como nós, para que denunciem as condições em que vivem, para que possam dar passos contra este crime.".Os 23 homens viviam num anexo junto à exploração agrícola de produção de morangos, em camaratas onde chegavam a dormir seis e sete pessoas, mal se conseguiam movimentar. Partilhavam uma casa de banho e na maioria das vezes tinham de usar a água da rega, mesmo para beber. A luz era desligada a partir das 21h00. Os documentos ficavam com as empresas..Prometeram-lhes 530 euros mensais, o ordenado mínimo em 2016, mas a receber três euros à hora, o valor estipulado por Nabin Giri (14 anos de prisão), dono da Estimamundo, uma empresa registada nas finanças como prestadora de serviços. Desse valor descontava o alojamento (55 euros mensais) e a alimentação (entre 40 e 60 euros) e outras despesas "administrativas", por exemplo a inscrição na Segurança Social (200 ou 250 euros), nas Finanças (150 euros), etc. Nabin recebia 4,5 euros à hora por cada trabalhador que colocava na Herdade dos Morangos..A Siddhikarj cobrou 200 euros para a inscrição na Segurança Social e não lhe reteve os documentos. Hoje, passados quase cinco anos, pensa que o terão feito para ganhar a sua confiança. "Davam esse "benefício" a alguns para garantir que não houvesse problemas, talvez tenha sido essa a razão, agora faz sentido, naquela altura não pensei nisso." E ele já vinha de outra exploração agrícola em Torres Vedras. Aí, trabalhou 15 dias na produção de morangos, para ganhar 200 euros. Uma das despesas que lhe descontaram foi 150 euros para as "Finanças". O salário mensal oficial registado era cerca de mil euros..Em Almeirim trabalhou seis meses e recebia 300, 330 ou 360 euros mensais, nunca eram quantias certas, havia sempre custos a deduzir. Era Nabin ou Upandra Paudel (13 anos de prisão), o funcionário, quem registava as horas de trabalho. Quando a produção de morangos aumentava, trabalhavam até ao cair da noite, também aos domingos e sábados. Chegaram a estar 35 imigrantes na Herdade dos Morangos, no dia da operação policial estavam 23; os outros tinham sido colocados noutras estufas.."Não sabia onde estava, só sabia que estava em Portugal. Estávamos no meio do campo, a quem recorrer? Não compreendia a língua portuguesa e estava ilegal, não tinha papéis. Falávamos em sair dali, mas os meus colegas diziam que não tínhamos hipóteses. Se nos queixávamos ao Pedro ou ao Nabin, ameaçavam-nos que as autoridades nos deportavam para o Nepal. E precisava de juntar dinheiro, por pouco que fosse. Eu e a minha família pagámos muito dinheiro para vir para a Europa. Não podia regressar sem nada.".Siddhikarj nasceu em Biratnagar, a porta de entrada para o leste do Nepal, com 270 mil habitantes. Tinha nove anos quando começou o conflito entre o governo monárquico e os rebeldes maoistas e que durou 10 anos. Em 2006 assinaram um acordo para a integração dos maoistas no governo. Morreram 17 mil pessoas nessa guerra, mas não terminaram os problemas políticos e eram escassos os recursos..Dois anos depois, nos finais de 2008, tinha 21 anos, resolve sair da terra natal e ir para Katmandu. Levava na bagagem o diploma do ensino secundário com especialização em ciência e tecnologia. Deu aulas e viveu dois anos na capital nepalesa..A situação do país não melhorava, ele e os amigos falavam em emigrar. Viu uma oportunidade de saída para o Reino Unido como estudante. No Nepal, as agências tratavam de toda a documentação, incluindo o visto de estudante, inscrição num curso e trabalho..Venderam terras - "no Nepal, toda a gente tem terras, valem é pouco", diz o jovem -, juntaram as economias dele e da família e angariaram oito mil euros, o valor cobrado pela agência. Iria tirar um curso de Contabilidade em dois anos. Também lhe prometeram um emprego a ganhar seis a sete libras à hora (sete/oito euros)..Chegou a Inglaterra e não havia vagas para o curso de Contabilidade, acabou por se inscrever em Marketing. Começou a trabalhar num restaurante através de uma empresa de prestação de serviços, ganhava dois euros à hora. O quarto onde vivia mal dava para se esticar, precisava de enviar dinheiro para a família e mal tinha para ele.."As condições estavam longe de ser as que descreveram. Quando lá chegámos, fecharam agências, as escolas, havia poucos cursos e caros, éramos obrigados a trabalhar para pagar as despesas. Não podia pedir ajuda às autoridades, mandavam-me para casa", justifica. Tinha chegado ao Reino Unido em 2010, o visto de estudante terminava em finais de 2011. Precisava de apresentar garantias que estudava para a renovação. Aconteceu o impensável e ele não fez o exame. Conta que os amigos foram estudar para sua casa, ficava mais perto da escola. No dia do exame, ele não encontrava as chaves para saírem, grande nervosismo e ansiedade para não falharem a prova. Um dos amigos resolve saltar pela janela, estavam no primeiro andar. Partiu a perna, tiveram de chamar a ambulância e foi parar ao hospital. Faltaram todos ao exame..Não pediu a renovação do visto, achou que ia gastar dinheiro sem ter garantias de conseguir o documento, resolveu seguir para França. Estávamos em finais de 2011..Vivia em Paris e pediu asilo político, foi apoiado por associações humanitárias durante quatro anos, com alguns trabalhos que ia fazendo pelo meio. Recusaram-lhe o visto de asilo, justificando que o pedido tinha de ser feito no Reino Unido, o primeiro país de destino na UE, segundo as regras comunitárias e a que o país ainda pertencia..Ouve falar de Portugal, onde há trabalho e facilmente se conseguem os papéis, também poderia estudar. Pagou 320 euros pela viagem de carro de Paris até Lisboa, saiu no Martim Moniz com uma mala e uma morada no bolso. Alguém que lhe arranjaria trabalho, esse alguém que traficou para Torres Vedras, depois para Almeirim..Três pessoas estão na prisão e duas empresas envolvidas obrigadas a fechar. A sentença foi também inovadora ao atribuir uma indemnização às vítimas, de acordo com os meses que trabalharam na exploração. Siddhikarj teria de receber oito mil euros, o que ainda não aconteceu. Uma advogada de outra vítima disse ao DN que esse valor não foi pago voluntariamente e interpôs um processo para perceber se os condenados têm património para pagar a dívida..Esses anos estão distantes, agora partilha a casa de Braga com duas outras vítimas de tráfico humano da mesma rede. O senhorio, "o senhor João", não tem cobrado renda devido à pandemia, que lhes suspendeu o trabalho. "Gosta de ajudar, diz que agora é ele a ajudar e que pode acontecer um dia ser ele o necessitado." Recuperaram os trabalhos depois do confinamento, estão todos na restauração..Siddhikarj trabalha na cozinha do McDonalds, entre as 19h00 e as 03h50, 40 horas semanais, por um salário base de 675 euros mensais. Não é muito, mas é certo e recebe sempre que faz horas extras, explica. Escolheu este horário para estudar, gostaria de tirar um curso profissional de mecânica. Se for difícil a inscrição, a cozinha é a segunda opção. Tem de trabalhar mais do que estudar, precisa de poupar dinheiro para enviar à família e conseguir a documentação para a mulher viajar para Braga. O sonho é licenciar-se em Psicologia. "Passei por tantas coisas, situações que, quando as conto, pensam que é mentira. No Reino Unido, em França, em Portugal, sei bem o que é sofrer. Sei o que é sair do país à procura de uma vida melhor e ver que há pessoas que ganham dinheiro à custa das nossas necessidades. Estou na melhor posição para perceber essas pessoas, gostava de tirar o curso e ir para a Índia, Nepal, Sri Lanka ou um país de África, para ajudar as pessoas.".ceuneves@dn.pt.