Válter Fonseca é diretor do Departamento de Qualidade na Saúde na Direção-Geral da Saúde e coordenador da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19. Em entrevista ao DN assume que a doença ainda não está controlada, apesar da vacinação, e que é preciso continuar a manter um grande "esforço" para a combatermos, que as novas variantes são uma preocupação e que os maiores de 65 anos, sem comorbilidades associadas ou em lares, serão vacinados mais cedo se chegarem mais vacinas do que as que estão a chegar agora (uma média de 80 mil doses por semana)..Há especialistas a defenderem que todos os maiores de 65 anos deveriam ser vacinados ainda durante o inverno, por causa dos riscos que correm, e não só depois de abril, como está previsto no Plano de Vacinação. O plano está fechado ou o assunto pode ainda ser discutido? A Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 tem demonstrado desde o início abertura para discutir os critérios que foram definidos no final de novembro, numa altura em que nenhuma das vacinas que hoje temos estava aprovada. Por isso, e como tem sido dito, o plano é dinâmico e adaptável. E a comissão tem total abertura para ir adaptando o plano ao longo do tempo, em função da evolução do conhecimento científico, da aprovação regulamentar das vacinas pela Agência Europeia dos Medicamentos [EMA, sigla inglesa] e também de função da evolução epidemiológica..Isso quer dizer que os critérios vão ser revistos em relação aos idosos com mais de 65 anos e sem comorbilidades? Há duas questões a sublinhar. A primeira é que a vacinação no inverno, na primavera e no verão depende muito daquilo que é o número de doses que vão chegar a Portugal. Não depende dos critérios definidos como prioritários. Depende mais da cadência de chegada das vacinas, e quando falo em vacinas estou a falar de todas, e do respetivo calendário de aprovação do que propriamente dos grupos prioritários. A segunda é que o plano de vacinação já aposta na idade como fator de priorização..Mas estes idosos só poderão ser vacinados mais para a frente... Temos de olhar para o plano como um todo. O plano não termina na fase 1, tem uma fase 2 e uma fase 3 e será adaptável de acordo com o conhecimento adquirido e o número de doses disponíveis. Quando olhamos para o plano e para a idade em concreto, vemos que estamos a priorizar na fase 1 e na fase 2 todas as pessoas com mais de 65 anos. Só que a realidade impõe que se vá mais além, e todos os países demonstraram que a grande aposta são as pessoas com maior vulnerabilidade..O que é a vulnerabilidade? Os idosos sem patologias associadas não são vulneráveis? A vulnerabilidade define-se, por um lado, pela exposição ao contexto de maior risco de contágio, como é o caso dos surtos em lares e em instituições similares, como unidades de cuidados continuados. Por outro, pelas doenças que estão mais associadas ao risco de internamento em enfermaria e cuidados intensivos. E por um terceiro fator de risco que é, então, o da idade. Quando olhamos para o plano de vacinação encontramos estes três contextos na sequência da fase 1 para a fase 2..Pessoas de 65, 70, 80 e mais anos, que ainda vivem sozinhas, mas sem patologias de maior, não deveriam ser protegidos nesta primeira fase? Está tudo dependente só do número de vacinas? Depende de vários fatores e estas pessoas estão num grupo prioritário. Os grupos prioritários não são só os que estão na fase 1. Os grupos prioritários são todos os grupos de todas as fases. O plano é adaptável. Vamos imaginar que chegam muito mais doses do que as que estão a chegar atualmente, então é possível que se possa vacinar o maior número de pessoas com critérios mais alargados e em simultâneo. Ninguém ficará para trás, ninguém deixará de ser vacinado..Destaquedestaque"Vamos imaginar que chegam muito mais doses do que as que estão a chegar atualmente, então é possível que se possa vacinar o maior número de pessoas com critérios mais alargados e em simultâneo. Ninguém ficará para trás, ninguém deixará de ser vacinado"..A mensagem para a proteção dos idosos durante o inverno foi sempre a de se vacinarem contra a gripe. Agora estamos numa situação de pandemia, há vacina, mas não estão todos incluídos na mesma fase. Não há uma contradição na mensagem? Não me parece que exista contradição. As pessoas com comorbilidades identificadas e propostas no plano são na sua maioria idosas. É por isso que digo que o plano de vacinação contra a covid-19 prioriza e aposta em proteger as pessoas com maior vulnerabilidade, mas foi necessário priorizar mais e olhar para a vulnerabilidade de forma mais global. Não só como uma questão relacionada com a mortalidade, mas também como uma forma de evitar internamentos hospitalares, para se conseguir ter um sistema de saúde com mais capacidade de resposta à covid-19 e a todas as outras doenças..Cuidar de quem cuida, salvaguardar o Serviço Nacional Saúde, foi o principal critério para a definição do plano? O Plano Nacional de Vacinação tem três grandes objetivos em termos de estratégia de saúde pública. Reduzir a letalidade associada à covid-19 e logo de seguida diminuir os internamentos em enfermaria e em cuidados intensivos - os cuidados intensivos são um ponto de constrangimento em todo o mundo e uma realidade particular desta pandemia. Portanto, proteger quem trata e cuida das pessoas mais vulneráveis é uma prioridade como forma de garantir a sustentabilidade do serviço de saúde. Aliás, este modelo é semelhante em todo o mundo..Houve países como o Reino Unido e a Alemanha que vacinaram profissionais e todos os idosos. Em Portugal é impossível fazer isto... Não é e não foi. Vacinámos profissionais e idosos com diferença de dias..Mas estes países estão a vacinar todos os idosos, mesmo sem estarem em lares ou doentes... Certo. Mas é preciso reconsiderar o seguinte: a covid-19 é a mesma doença em todo o mundo. O seu perfil clínico e epidemiológico é muito semelhante, a idade avançada é um fator de risco e as comorbilidades também. Se olharmos para os internamentos hospitalares, o número de pessoas sem comorbilidades é muito baixo, menos de 5%. Temos uma doença que é a mesma, mas temos sistemas de saúde muito diferentes, com organizações diferentes, com coberturas de cuidados primários diferentes, com práticas de vacinação muito diferentes. É normal que um plano de vacinação tenha aspetos comuns entre todos os países, porque estamos a falar da mesma doença, mas também aspetos particulares que resultam do que é o seu sistema, a sua organização, infraestruturas e experiência..Vamos para o balanço da vacinação. Foram vacinadas mais de 70 mil pessoas. Está a correr como previsto? Os dados desta manhã [quarta-feira] apontavam para mais de 80 mil, o que é um número que mostra uma boa implementação do plano de vacinação contra a covid-19 para os contextos que foram priorizados para as primeiras tranches vacinais. Relativamente às tranches e às doses chegadas, desde o início que de uma forma transparente se disse que é um plano que lida com a incerteza, e uma das incertezas é exatamente a calendarização da chegada das doses. Já aconteceu chegarem doses mais cedo do que o previsto, mas também algumas que chegaram com atraso. O importante é que não tem sido um fator de impedimento no planeamento e na administração das vacinas em Portugal..Destaquedestaque"As novas variantes são um dado que revela alguma preocupação e que implica cautela por parte de todos nós. Os dados indiciam que são mais transmissíveis e isso pode justificar uma precipitação de novos casos.".Há pelo menos três novas variantes identificadas, uma no Reino Unido, outra na África do Sul e ainda outra no Japão. As vacinas que estão a chegar ao mercado estão preparadas para lutar contra elas? Ou vamos ter de partir - ou melhor, a indústria farmacêutica - para um produto novo? Gosto que use o plural, por uma razão simples, porque a pandemia é algo que nos atinge a todos, e depende de todos nós lutar contra ela. É preciso manter o esforço conjunto, cada um na sua área. A doença ainda não está controlada, apesar da vacinação. Por isso, é preciso manter o esforço. Temos de ser perseverantes e confiar que o respeito pelas medidas terá um impacto muito significativo..Parece que não há outra solução senão confinar e vacinar, vacinar... Confinar, respeitar as regras e confiar na segurança das vacinas, mas quanto às variantes não são inesperadas. É normal que um vírus sofra alterações durante os processos de replicação e de infeção entre pessoas. Algumas alterações são muito pequenas, não chegam para dizer que há uma nova variante, outras são um pouco maiores e podem dar lugar a esta nomenclatura de variante. Mas a palavra certa para esta questão é incerteza. Ainda há um nível de incerteza elevado, mas os dados que dispomos sobre as vacinas não apontam para que haja perda total de eficácia nestas novas variantes..Uma das características destas novas variantes é terem maior transmissibilidade em relação à existente. Se a circulação destas se disseminar rapidamente em Portugal, o cenário que iremos viver será mais grave do que o que estamos a viver agora? Desde o início da pandemia, independentemente da questão das novas variantes, houve um consenso muito alargado sobre o conjunto de medidas que jamais poderíamos esquecer, mesmo com a chegada das primeiras doses de vacinas. Essas medidas são a ferramenta mais útil que temos para evitar a transmissão da doença. Claro que as novas variantes são uma preocupação e implicam cautela, porque podem justificar uma precipitação de novos casos. Contudo, é preciso olhar para aquilo que é a capacidade de resposta do SNS e da sociedade face à que era no início de 2020. Agora, há capacidade de resposta para sustentar uma situação que hoje é pior do que a de março. Houve uma progressiva preparação a vários níveis, e muito ativa por parte dos profissionais de saúde, que têm sido inexcedíveis, mas também uma preparação por parte dos cidadãos..Destaquedestaque"É uma doença que, apesar da vacinação, ainda não está controlada e, por isso, o esforço tem de ser mantido. Temos de ser perseverantes e confiar que o respeito pelas medidas terá um impacto muito significativo.".O SNS está no limite. A solução é só o confinamento? A solução é um conjunto de medidas, não só o confinamento. As medidas devem ser de 360 graus e de vários níveis: informação às pessoas, capacitação do SNS e medidas mais restritivas. Agora temos uma arma fundamental no combate à pandemia, que é a vacina..Em relação ao confinamento, quando há um infetado em casa, e tendo em conta que as condições de habitação em Portugal, muitas vezes pequenos espaços, o que devem fazer as famílias? Temos procurado soluções para situações como a que descreve. Temos dado orientações e recomendações para boas práticas, mas um dos critérios que usamos na abordagem aos casos de infeção e suspeitos - e avaliação em relação ao potencial aumento de contágio - são as condições de habitabilidade e de exequibilidade em que vão fazer o isolamento. E tem-se procurado a nível local arranjar soluções alternativas, se o isolamento não estiver garantido nas melhores condições..É diretor do Departamento de Qualidade na Saúde. Como tem sido manter essa qualidade neste ano de pandemia? Tem sido um desafio. A qualidade na saúde é um pilar fundamental no SNS e em qualquer sistema de saúde. Por isso, tem havido um esforço do departamento e da Direção-Geral da Saúde [DGS]em procurar suportar a manutenção da qualidade através da publicação de normas e de orientações que procuram auxiliar o cidadão com boas práticas..Pode concretizar o que é a qualidade em saúde? Qualidade na saúde é um conceito bastante lato. O que podemos dizer é que é um caminho que se deve percorrer para que consigamos oferecer saúde de forma a corresponder às expectativas e necessidades das pessoas. Tem uma dimensão individual, coletiva e estrutural. A DGS tem-se preocupado fundamentalmente com a dimensão individual e coletiva, embora não esqueça a dimensão estrutural, tentando que as grandes prioridades da qualidade possam levar a que as decisões clínicas respeitem a pessoa e o seu contexto social, familiar e económico.