"Uma escusa é uma denúncia, que é um direito fundamental da democracia", diz bastonário
A falta de médicos tem vindo a gerar graves constrangimentos na atividade das unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Profissionais, sindicatos e ordem têm catalogado esta crise como sem precedentes e profissionais de todo o país, de serviços de urgência e de internamentos, têm vindo a denunciar as condições em que têm estado a trabalhar, muitas vezes, para não encerrarem serviços.
Segundo explicou o próprio bastonário do Médicos ao DN, "o objetivo da escusa é atenuar a responsabilidade civil e disciplinar de um médico nas situações em que considera estar a exercer sem condições adequadas ao exercício da sua função. É um meio que pode ser usado por um médico ou por qualquer outro profissional da saúde", mas serve também "para resguardar os próprios doentes, no caso de algo correr menos bem".
A verdade é que este tipo de declaração, que não foi usado durante a pandemia, embora já o fosse no período anterior, "aumentou brutalmente este ano". E isto porque, refere o bastonário, "os médicos atingiram um limite" e "estão a denunciar o que não está bem".
Mas para o Presidente da República, as declarações de escusa de responsabilidade entregues por médicos "não valem nada juridicamente", segundo afirmou numa entrevista à CNN, que será emitida na íntegra esta noite. A posição assumida pelo Presidente 'irritou' o setor da saúde, sobretudo a classe médica, ainda por cima porque o argumento usado para justificar as escusas é o de que "é um elemento inovatório" de oposição ao governo no atual quadro político e "não a verdadeira situação que se vive no SNS", comentaram ao DN fontes médicas.
O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, apesar de sublinhar que, à hora que falava com o DN, ainda não tinha tido a oportunidade de ouvir as declarações do Presidente na íntegra, admite ter "estranhado" a posição veiculada, considerando mesmo que "nenhum órgão de soberania deve interferir com a justiça. E argumenta: "No caso de algo correr menos bem com um doente, numa situação em que o médico apresentou uma escusa de responsabilidade pelas condições em que estava a trabalhar, será um juiz que irá avaliar se o médico teve ou não responsabilidade, se o caso for para a justiça. Do ponto de vista disciplinar, essa avaliação caberá à Ordem fazê-la".
Miguel Guimarães defende que "os médicos, ou qualquer outro profissional de saúde, têm o dever de denunciar o que está a correr mal nos seus serviços, até para salvaguardarem os doentes". Mas vai mais longe: "Uma escusa de responsabilidade é uma denúncia e a denúncia é um dever e um direito fundamental da democracia, no dia em que isto acabar, acaba também a democracia. E se alguém critica isto tem de explicar muito bem o que está a criticar".
O representante da classe médica comentou ainda que, este tipo de declaração, parece ser uma crítica à entrega de escusas de responsabilidade, o que considera "não ser justo". "Não acho justo que critique este meio usado pelos médicos e não critique um governo que não dá as condições adequadas aos médicos do SNS para poderem exercer as suas funções".
Aliás, sublinha mesmo: "Com estas intervenções políticas, vindas de um órgão de soberania, prevejo um futuro negro para a Saúde em Portugal, porque se há cada vez mais médicos a saírem do SNS, com esta argumentação haverá muitos mais a quererem ir embora".
Mas não foi só a Ordem dos Médicos que reagiu. Os sindicatos médicos também o fizeram. O Sindicato Independente dos Médicos afirma em comunicado esperar do Presidente da República um papel que "obrigasse o Governo a fortalecer o SNS", considerando que a sua intervenção "constitui um juízo de prognóstico de longo alcance jurídico", que deverá "ser corrigido junto das entidades empregadoras destinatárias, do Governo e até da magistratura".
Em comunicado, a estrutura sindical solicita mesmo que Marcelo Rebelo de Sousa "encontre um modo de reparar o alarme que foi suscitado, melhor esclarecendo os limites da desconsideração tecida sobre as virtualidades jus-laborais das inúmeras "escusas de responsabilidade" que os trabalhadores médicos se têm visto compelidos a apresentar nos seus locais de trabalho".
Do lado da Federação Nacional dos Médicos, o presidente, Noel Carrilho, reagiu à Lusa, sublinhando ainda não ter ouvido a entrevista, dizendo que "a principal preocupação que deve existir relativamente há 'imensa quantidade' de médicos que colocam a escusa de responsabilidade "não deve ser da sua validade jurídica ou não", mas o problema que subjaz a essa decisão dos médicos.
"Os médicos não estão a querer dirimir responsabilidades, estão a querer colocar a tónica da responsabilidade em quem a tem não oferecendo as condições mínimas necessárias para que o trabalho se possa desenvolver com os mínimos de qualidade", salientou ainda.
O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses também reagiu considerando as declarações do presidente da República sobre escusa de responsabilidade uma "apreciação jurídica", defendendo que seria importante que exercesse "a magistratura de influência" a apoiar melhores condições de trabalho no setor da saúde.