"Eu sinto-me bem aqui convosco porque sinto que estou com o meu filho, que morreu há dois meses na guerra, era militar. Para mim, foi a melhor forma de luto, disto tudo, da minha vida. E eu sinto que aqui estou a aprender ou estou a partilhar alguma coisa útil para as pessoas”. Este é um dos muitos relatos que continuam a ecoar na cabeça do tenente-coronel José Cardoso, psicólogo da Guarda Nacional Republicana (GNR), após voltar de uma missão na Ucrânia. “Nós fomos trabalhar com as pessoas que cuidam das outras”, relata.O militar liderou uma missão portuguesa que foi até o terreno, numa zona localizada nos arredores da capital Kiev, para formar psicólogos e outros profissionais que lidam com a guerra todos os dias. A equipa foi formada pelo médico e major João Ribeiro, a enfermeira militar Ana Gonçalves e a cabo Silvia Vassal, psicóloga militar. “Para nós um fator muito importante é o equilíbrio de género”, explica. Durante sete semanas, o quarteto ministrou aulas teóricas - muitas vezes no bunker a ouvir os drones e bombas - treinamento prático e momentos de convívio. No total, 60 psicólogos participaram na formação, promovida pela missão da União Europeia (UE) e da Eurogendfor, todos de nacionalidade ucraniana.“Haviam ataques durante a formação, estávamos a trabalhar com bombas, mas a formação nunca foi interrompida, só algumas aulas foram no shelter [abrigo]. A minha preocupação central era com a segurança da minha equipa, das suas famílias que aqui ficaram e com os alunos. Tivemos o tempo todo contacto com a nossa cadeia hierárquica e contacto com as nossas famílias”, conta. Os profissionais ensinaram sobre gestão de stress em ambientes hostis, primeiros socorros psicológicos, comunicação eficaz em situações de crise e sobre a estrutura europeia de psicologia. Esta não é a primeira vez de José Cardoso na Ucrânia. Em 2022, o militar ficou seis meses a treinar profissionais sobre gestão de stresse em contexto de guerra, prevenção de stresse pós-traumático e prevenção destes problemas no contexto da guerra. Nesta primeira missão, o GNR foi o único psicólogo militar português no time, formado por gendarmes de vários países europeus, como Espanha, França e Lituânia.O tenente-coronel explica que esta segunda missão foi uma espécie de continuidade da primeira. “Quando saí, deixei algumas sugestões. Na elaboração do relatório final mencionei que seria importante a própria missão em si, fazer, eventualmente, algo mais dedicado sobre a saúde mental dos profissionais. E, efetivamente, aconteceu esta segunda missão, que vem um bocadinho no encaminhamento da primeira”, detalha. José Cardoso efetuou a candidatura como líder da equipa e convidou os camaradas da GNR para a missão. “Foi emoção do início ao fim e fomos muito bem acolhidos. Perguntavam-nos porque é que estas pessoas da terra do Cristiano Ronaldo estão a ajudar-nos?”, destaca.Segundo o psicólogo, o facto de a chamada ter sido aberta para a formação mostra que a sugestão deixada no período anterior foi levada a sério. “A missão, efetivamente, entendeu a necessidade de se preocupar com a saúde mental de uma forma ativa, não passiva ou reativa. Portanto, em vez de estar à espera que as coisas aconteçam, criou programas de trabalho logo na prevenção”. No site da Eurogendfor esta missão está em destaque. “A Eurogendfor participa ativamente na Missão Consultiva da UE (EUAM) na Ucrânia desde julho de 2021. Este envolvimento sublinha o compromisso da #EUROGENDFOR em apoiar os esforços da União Europeia para promover a estabilidade e a segurança na Ucrânia. Recentemente, foi dada uma contribuição significativa com o destacamento de uma Equipa de Primeiros Socorros Psicológicos para uma área que necessitava de apoio”, lê-se no site. A publicação está acompanhada de um vídeo com várias imagens da formação, desde as aulas até a cerimónia de encerramento, marcada pela emoção entre todos..“As pessoas estão fartas da guerra”Pela segunda vez no país em guerra, o psicólogo conseguiu traçar as diferenças de comportamento entre as pessoas após três anos. “Senti as pessoas todas mais cansadas, um cansaço muito grande. Estão fartas da guerra”, frisa. Ao mesmo tempo, há uma certa normalização do ambiente, o que tem explicação científica, segundo o tenente-coronel. “É a necessidade humana e a capacidade adaptativa. Aquele cenário passa a ser uma realidade”, explica. O psicólogo dá um exemplo. “Imagina uma criança que nasce no meio da guerra. Se há um carro de combate acidentado ali, ela vai brincar para o meio do carro de combate e consegue ser genuinamente feliz. Agora vamos pôr as coisas ao contrário. A criança nasceu num ambiente onde havia flores, onde havia tudo, onde ia para a escola, e, de repente, tudo muda. E continua a ter o carro de combate ali, mas não se brinca ali, não consegue ser feliz. No entanto, há um período, um processo quase adaptativo. É quase como um luto”, detalha. “É uma adaptação que o ser humano faz para sobreviver. Um processo focado na funcionalidade, naquele ambiente tem de ser”, complementa.Por outro lado, apesar da adaptação, a longo prazo, a situação pode ser danosa. “Psicologicamente pode ter impacto, sim. Se olharmos à nossa história, claro que tudo tem impacto. Sair de uma coisa boa e integrar uma coisa má é quase como um processo de luto, uma perda. Há pessoas que se adaptam melhor, há pessoas que se adaptam pior. Há pessoas que nunca se adaptam. Isso depois depende das características de cada um”, analisa.A equipa viu toda esta adaptação com os formandos. “Num dos dias, durante a hora do almoço, estávamos a falar que a noite havia sido complicada, com muitos ataques. Uma colega disse que naquela noite ficou sem todas as janelas de casa. E a nossa reação foi de perguntar porque ela estava ali na formação, de que devia estar em casa a tratar das janelas”, conta. E a resposta da psicóloga? “Ela disse que não valia a pena consertar as janelas, porque naquela mesma noite poderia receber outro bombardeamento, e que ainda não sabia se ia consertar ou encontrar outra solução, como plásticos nas janelas”, salienta.De acordo com o psicólogo, como a guerra já vai em mais de três anos, as pessoas passaram a ficar funcionais com este cenário. “Mas é tudo muito difícil, porque toda a gente ali perdeu alguém”, relata. Uma das psicólogas perdeu o marido no massacre de Bucha e o filho há apenas dois meses, mas estava ali”, relata. O próprio tenente-coronel perdeu uma pessoa que conheceu na primeira missão. Um dos sonhos do jovem era ter uma camisola da seleção portuguesa. José Cardoso levou, mas não conseguiu o contacto, após o envio de várias mensagens. Foi procurar saber e descobriu que ele tinha morrido em combate. “Acabei por dar a t-shirt ao irmão dele. E o irmão dele fez com que chegasse ao filho e à mulher, que estão na Polónia. E é isto. Estas são pequenas coisas que, todas juntas, fazem que isto seja uma missão muito intensa, emocionalmente muito intensa”, partilha..Os resultadosDe acordo com o tenente-coronel, os formandos “manifestaram um elevado grau de satisfação com a formação, e os resultados preliminares das avaliações revelam-se extremamente positivos e encorajadores para toda a equipa envolvida”. O profissional avalia que os psicólogos possuem “um conhecimento técnico vasto e diversificado, refletindo a riqueza da sua experiência profissional”.Segundo o militar da GNR, a presença de mulheres na missão fez toda a diferença. “Uma coisa muito importante é a questão do gender balance. O facto de eu ter duas mulheres comigo, ou seja, dois homens e duas mulheres, é muito facilitador, fez a diferença na interação com os colegas ucranianos”.Ao mesmo tempo, foi identificada a necessidade de apoiar a reorganização estrutural do setor no país, algo que começou com a formação. “Esta integração na União Europeia, por parte da associação ucraniana, também é um dos grandes objetivos. Eu deixei esta sugestão também à missão, para a reunirem. No último dia, eles estavam sentados com a minha colega futura bastonária da Ucrânia discutindo possíveis formas de ajuda para o futuro, isto é também um resultado de que a nossa foi a missão cumprida”, analisa.O sentimento do líder da equipa e dos demais GNR é de missão cumprida, mas ainda há muito por fazer. “O objetivo foi cumprido, voltámos bem, mas voltámos com uma sensação de angústia, porque muito trabalho está por fazer. E sentimos quase o grão de areia que nós somos. Sentimos que somos uma agulha no palheiro. Mas é uma agulha no palheiro que eu acho que faz diferença e podemos ainda evoluir para outras formas de ajuda dando continuidade a esta caminhada ao lado dos ucranianos, para mim foi um orgulho representar a Guarda Nacional Republicana, Portugal e a Europa.”Confira abaixo fotos da missão:. amanda.lima@dn.pt.GNR resgata 24 migrantes no Mar Egeu em missão coordenada pela Frontex.Visita ao estaleiro de Gdansk com um dos grevistas que derrubaram o comunismo