Civis mortos são enterrados durante o Cerco de Sarajevo em março de 1992.
Civis mortos são enterrados durante o Cerco de Sarajevo em março de 1992. Antoine GYORI/Sygma/Getty Images

Trinta anos depois, Itália reabre as sombras da Bósnia: investigação expõe “safari” humano em Sarajevo

Durante quase três décadas, uma história macabra permaneceu nos subterrâneos da guerra da Bósnia: durante o cerco de Sarajevo, ocidentais abastados pagaram fortunas para viajar discretamente até às colinas da cidade e participar num macabro safari contra civis bósnios.
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A denúncia partiu do jornalista Ezio Gavezzani, que afirma ter descoberto, numa investigação para um livro, esta realidade “aterradora”: milícias servo-bósnias de Radovan Karadzic, condenado por genocídio e crimes contra a humanidade,escoltavam estes “caçadores” até posições de tiro, para que disparassem contra homens, mulheres e crianças bósnias que simplesmente tivessem o azar de passar pelo campo de visão destes turistas endinheirados. Terminada a “experiência”, regressavam tranquilamente às suas vidas na Europa ou na América do Norte. 

Este horror levou o procurador responsável, Alessandro Gobbis, a abrir um inquérito por “massacre agravado por crueldade e motivos abjetos”,  inversão completa da humanidade, que transforma o ato de matar em entretenimento, o sofrimento humano em espetáculo e a guerra num espaço de consumo de luxo. 

Segundo a investigação citada pela imprensa italiana, nenhum destes indivíduos foi identificado publicamente. Nenhum foi investigado. Até agora, ainda que, por enquanto, o processo corra contra desconhecidos. Mas as pistas acumulam-se. Gavezzani, citado pelo jornal espanhol La Vanguardia, garante que os participantes “vinham de toda a Europa”, acrescentando: “Havia muitos alemães, franceses, canadianos, russos, norte-americanos e também espanhóis”. 

A antiga presidente da câmara de Sarajevo, Benjamina Karic, reforça a gravidade, citada pela mesma fonte: existiria até “uma espécie de macabro tarifário”, no qual “disparar sobre uma criança custava mais caro”. 

O jornalista traçou ainda o perfil dos viajantes. Longe de mercenários ou fanáticos ideológicos, eram, segundo disse ao La Vanguardia, “advogados, empresários, contabilistas, todos com licença de armas e com meios financeiros para pagar o equivalente a centenas de milhares de euros por uma só viagem”. 

Numa das passagens mais duras citadas pelo jornal, Gavezzani explica que estes homens não sentiam qualquer “ligação” nem às vítimas nem aos algozes. Iam “de safari, como lhe chamavam”. O ato de matar não correspondia a uma ideologia, mas a um impulso lúdico. Daí a definição perturbadora que ofereceu: a passagem “da banalidade do mal de Hannah Arendt para a indiferença do mal”. 

“Quem passa à frente leva um tiro, como se fosse uma peça de caça”, disse. 

Gavezzani alega que foram “pelo menos uma centena” os envolvidos, com italianos a pagarem “muito dinheiro” para o fazer — até 100 mil euros em valores atuais — em declarações ao La Repubblica. 

O jornalista está a entregar “abundante material à procuradoria”: “À medida que encontro dados, envio-os. Hoje mesmo enviei mais”. O que Gavezzani ainda não conseguiu é falar com os protagonistas daquelas viagens: “Sempre que me aproximo, mesmo através de pessoas do seu círculo, tudo se encerra de imediato. Quando forem os carabinieri a bater à porta, talvez seja diferente”, cita La Vanguardia. 

As pistas que podem levar aos nomes 

De acordo com documentos citados pela imprensa internacional, uma das chaves da investigação está nos intercâmbios entre serviços secretos da época. Um ex-agente bósnio terá alertado colegas italianos presentes no terreno sobre cidadãos de Turim, Milão e Trieste envolvidos nessas viagens. 

Num texto citado pela agência Ansa, lê-se: “Um dos franco-atiradores italianos identificados nas colinas acima de Sarajevo em 1993 (…) era de Milão e proprietário de uma clínica privada especializada em cirurgia estética”. 

Ainda segundo essa mesma fonte, “os serviços bósnios souberam do safari no final de 1993. Informámos o Sismi no início de 1994 e responderam dois ou três meses depois: descobrimos que o safari parte de Trieste. Interrompemo-lo na primeira metade de 1994”. 

A memória em arquivo 

Gavezzani indicou, também através de declarações publicadas por La Vanguardia, que o realizador Miran Zupanic lhe facultou acesso ao arquivo integral do documentário Sarajevo Safari (2022), onde existe material adicional que poderá ser entregue às autoridades italianas: “abundante material que posso colocar à disposição da procuradoria, se o solicitar”. 

O documentário inclui, além disso, o testemunho de uma fonte anónima. Ainda não se sabe quantos nomes poderão emergir destas caixas negras da história recente. O que se sabe é que, pela primeira vez na Europa, um Ministério Público está a investigar o turismo de guerra pago na Bósnia. 

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