Tribunal da Relação admite falta de transparência em contratações na FDUL
Pedro Martinez, nascido em 1997, filho de Pedro Martinez (1959-2023), por sua vez filho de Pedro Martinez (1925-2021), é um assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), a mesma onde os mencionados pai e avô foram professores catedráticos e diretores. Em ação cível contra um professor da faculdade, o jovem Martinez acusou-o de pôr em causa a legitimidade da sua contratação com o objetivo de atingir o pai, que dirigia a escola aquando dessa mesma contratação (em 2019). Pedia 15 mil euros de indemnização. Perdeu em primeira instância, recorreu para Tribunal da Relação e voltou a perder: em decisão de março deste ano, a segunda instância absolveu o réu, não reconhecendo qualquer razão a Martinez na imputação de ofensa ao bom nome e reputação e assumindo a razoabilidade das críticas do professor aos trâmites de contratação da faculdade e respetiva falta de transparência.
Uma decisão que contraria a da justiça disciplinar: o réu da ação, Jorge Duarte Pinheiro, especialista em Direito de família e ex-diretor da FDUL (2014/2015), fora alvo de um processo disciplinar, em 2020, exatamente com os mesmos fundamentos apresentados na ação cível, e considerado culpado em setembro de 2021, sendo-lhe aplicada uma repreensão escrita, suspensa por seis meses, que o mesmo contestou em tribunal (tendo a sanção sido alvo de uma amnistia, o tribunal nem chegou a debruçar-se sobre os factos).
Lê-se no sumário do acórdão da Relação: “Não é controvertido que quanto maior é a clarificação e densificação dos critérios que estão na base da seleção de candidatos para qualquer concurso, maior é a transparência da deliberação que incide sobre ela, que nessa medida surge mais clara e fundamentada, mais suscetível de ser percebida por terceiros. Tal assume certamente uma maior importância quando os candidatos ao lugar de assistente convidado de uma Faculdade apresentam relações familiares com outros professores da Faculdade, para que possa ser conhecido e percebido por todos que a seleção que foi feita é por mérito do candidato, em igualdade de circunstâncias com qualquer outro e não pela existência de relações familiares, amizades ou simpatias, melhor obviando a suspeições ou equívocos sobre os escolhidos.”
Validou assim este tribunal superior a sentença da primeira instância. A qual não só concluíra ter-se o professor em causa, ao levantar questões genéricas em relação ao funcionamento da faculdade, limitado a fazer uso da sua liberdade de expressão, como considerou não ser “descabida, ou desrazoável”, a crítica que apontara “à proposta de contratação” referida.
"Sabemos bem (é do conhecimento público) que no espírito dos Portugueses se encontra fortemente enraizada a sensação, quantas vezes injusta, de que a progressão social e profissional ocorre por favorecimento pessoal. Nessa medida, a crítica do Réu não era desrazoável.”
Sentença do Juízo Local Cível de Lisboa, confirmada pela Relação de Lisboa
"Um dos selecionados para exercer funções docentes na Faculdade como assistente convidado é filho de diretor da mesma Faculdade. Tendo em conta as duas linhas que foram escritas (…) para fundamentar a proposta de contratação, podemos estar seguros de que foi acautelada a imagem da Faculdade e de seus professores? A meu ver, não e não.”
Email do réu para os órgãos da faculdade, considerado ofensivo pelo autor da ação
“De acordo com as regras da lógica e experiência comuns”, lia-se nessa mesma sentença, datada de 29 de junho de 2024, e assinada pela juíza Ana Barão, do Juízo Local Cível de Lisboa, “quanto mais genérica for a fundamentação de uma decisão, mais a mesma se torna passível de críticas/incompreensão. Essa incompreensão agudiza-se em contexto de seriação de pessoas para o exercício de funções remuneradas e, por maioria de razão, se uma das pessoas selecionadas tiver ligações familiares com algum dos membros da instituição/entidade/empresa para a qual foi admitida. Sabemos bem (é do conhecimento público) que no espírito dos Portugueses se encontra fortemente enraizada a sensação, quantas vezes injusta, de que a progressão social e profissional ocorre por favorecimento pessoal. Nessa medida, a crítica do Réu não era desrazoável.”
Tanto mais que, como refere a mesma decisão, é naquela escola “frequente existirem professores que são filhos, sobrinhos, irmãos ou cônjuges de outros professores.
“Risco fraco de favorecimento”
A possibilidade de responsáveis de uma universidade terem relações familiares ou de proximidade com candidatos a emprego nessa mesma universidade é, como uma rápida pesquisa no Google permite constatar, um tema abordado na normas de conduta de inúmeras universidades anglo-saxónicas, visando evitar nepotismo e conflitos de interesses.
No site da Universidade de Cambridge (Reino Unido), por exemplo, lê-se: “Idealmente, não deveria existir uma relação hierárquica entre parentes, seja essa relação direta ou indireta. Isto inclui tomar decisões ou estar-se envolvido em qualquer processo de recursos humanos, como avaliações, apreciação de queixas ou casos disciplinares, treino ou desenvolvimento, promoções ou decisões que tenham a ver com pagamentos.” Isto porque, explica-se no mesmo site, há nessas situações potenciais conflitos de interesses, potenciando alegações de favoritismo, nepotismo ou de possibilidade de ocorrência de práticas injustas.
Na Universidade de Chicago, as normas constantes no site sob o título “nepotismo” datam de há 15 anos (abril de 2010) e incluem uma definição do termo: “Favoritismo no local de trabalho baseado em parentesco, que em regra consiste em tomar decisões relativas a emprego ou decisões empresariais baseadas em relações familiares.”
Procurando no site da FDUL, nada se encontra, à data de junho de 2025, que inclua a palavra nepotismo. Já no Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas da FDUL, aprovado em 2022, lê-se, na página 39, que no que respeita ao recrutamento o “risco de favorecimento de candidato” é “fraco” devido a medidas preventivas, a saber, “nomeação de júris diferenciados para cada concurso”, e ao “recurso preferencial a um membro do júri externo aos serviços”.
"Risco de favorecimento de candidatos" no recrutamento para FDUL é "fraco" devido a “nomeação de júris diferenciados para cada concurso”, e ao “recurso preferencial a um membro do júri externo aos serviços”.
Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas da FDUL, 2022
Ora em causa na ação colocada por Pedro Martinez filho está o facto de Duarte Pinheiro ter, num email enviado em novembro de 2019 para os órgãos da FDUL, criticado a prestação do Conselho Científico, do qual fazia parte. Nas críticas expressas, incluiu a falta de transparência nos processos decisórios, nomeadamente dizendo respeito à contratação de assistentes: “Escassa densificação dos critérios que presidem a certas propostas de contratação de assistentes convidados, susceptível de originar grandes embaraços à Faculdade (em especial nas hipóteses de existência de ligações familiares estreitas entre aqueles e professores em exercício)”.
Neste email o autor não identificava qualquer contratação em específico. Mas o catedrático Miguel Teixeira de Sousa, membro do grupo de Ciências Jurídicas (do qual fazia parte Pedro Martinez pai e para o qual Pedro Martinez filho fora contratado como assistente), respondeu assumindo que a crítica de Duarte Pinheiro se dirigia a esse grupo e garantindo que tal crítica não tinha qualquer razão de ser, pois, argumentava, os critérios da seriação “tinham sido puramente objetivos”, baseando-se na nota de licenciatura dos candidatos e, para “desempate”, nas notas das cadeiras.
Duarte Pinheiro respondeu por sua vez, assegurando não ter posto em causa a boa-fé dos professores ou o mérito dos candidatos, mas considerar “lacónica” a informação que havia sido enviada ao CC sobre os fundamentos da seriação: esta mencionava “classificações obtidas” e “elementos curriculares apresentados pelos interessados”, sem mais informação. Frisando que “um dos selecionados para exercer funções docentes na Faculdade como assistente convidado do Grupo de Ciências Jurídicas” era “filho de Director da mesma Faculdade e Professor eminente do mesmo Grupo”, concluía: "Tendo em conta as duas linhas que foram escritas (…) para fundamentar a proposta de contratação, podemos estar seguros de que foi acautelada a imagem da Faculdade e de seus professores? A meu ver, não e não. Mas admito que me possam convencer do contrário”.
“Um punhado de pessoas que se julgam acima de tudo e de todos”
Na ação que perdeu, Pedro Martinez filho também acusava Duarte Pinheiro de ser uma das fontes anónimas de uma reportagem da Sábado publicada a 8 de outubro de 2020, com chamada de capa “Amiguismos e Retaliações nos Concursos da Faculdade de Direito de Lisboa”, e na qual se narravam, entre outras situações de “conflitos entre professores, de endogamia e de conflitos de interesses”, concursos nos quais filhos de professores eram candidatos e ficavam em primeiro lugar — caso de Pedro Martinez filho mas também de António Barreto Menezes Cordeiro, filho de António Menezes Cordeiro (ex-diretor da FDUL e presidente do Grupo de Ciências Jurídicas).
Duarte Pinheiro era citado, com o seu nome, a propósito do seu conflito com Pedro Martinez pai, e do facto de ter optado por “fazer a agregação para catedrático fora da FDUL por receio de retaliação do grupo de professores mais velhos de Ciências Jurídicas – que dominam os júris das provas – com quem foi acumulando conflitos durante o exercício do cargo de diretor”.
Tendo feito a agregação na Faculdade de Direito da Universidade Nova, viu o reconhecimento da mesma obstaculizado pelo então diretor da FDUL, Martinez pai. Só a intervenção da Reitoria da Universidade, dando-lhe razão, obrigou ao reconhecimento. Mas quando concorreu a um concurso para agregação a catedrático na FDUL, para o qual existiam quatro vagas, ficou em quinto. Manifestando à Sábado a intenção de impugnar o concurso, Duarte Pinheiro informou também que, uma vez que Martinez pai fazia parte do júri, pedira o seu afastamento, mas o pedido “só foi tido em conta pelo presidente do júri um dia depois de a classificação dos candidatos estar decidida”.
No mesmo dia da publicação da revista, Duarte Pinheiro partilhou o link da reportagem no Facebook, na página do Campus da FDUL, escrevendo: “Amiguismos e retaliações na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa: importa que todos trabalhemos para que a nossa Faculdade e o nosso País sejam de todos e não de um punhado que pessoas que se julgam acima de tudo e de todos”, e enviou depois um email ao Conselho Científico da escola, incluindo o artigo da Sábado em anexo e apelando ao debate sobre as questões naquele levantadas.
No âmbito da ação judicial, ficou provado que, ao invés do que Pedro Martinez filho afirmava, há muito que a falta de transparência nos critérios de classificação e admissão de professores era matéria de debate e controvérsia na escola, sendo aliás abordada em processos eleitorais para os respetivos órgãos. Por outro lado, os tribunais validaram a constatação, por parte de Duarte Pinheiro, de falta de densificação dos critérios do concurso em que o autor da ação foi contratado.
"Se atentarmos na proposta de contratação”, dia a sentença de primeira instância, “a mesma indica quais os candidatos selecionados e esclarece que o foram pelas ‘classificações obtidas na licenciatura, em especial na área de Ciências Jurídicas, e em elementos curriculares apresentados pelos interessados’. Porém, desconhece-se quantos eram os candidatos no seu todo; que classificações obtiveram e que elementos curriculares apresentaram que permitiram a seriação entre si. Nessa medida, não era descabida, desrazoável, a crítica apontada pelo Réu à proposta de contratação ora sindicada”.
Na mesma sentença chama-se ainda a atenção para o facto de Duarte Pinheiro, enquanto membro do Conselho Científico, ter votado favoravelmente a contratação de Martinez filho — “Não é compatível com as regras da lógica e experiência comuns que o Réu, após ter votado favoravelmente a contratação do Autor, viesse implicitamente sugerir, com o email de 17/11/2019, que a contratação do Autor tinha sido ilegal, ou ocorrido por favorecimento pessoal” —, para concluir: “Não é contraditório o facto de se votar favoravelmente uma proposta (…), mas apelar/alertar para a necessidade de densificação dos critérios de seriação.”
"A faculdade foi fundada na Primeira República para acabar com os privilégios da monarquia. O que temos está algo longe disso. O bom nome da faculdade defende-se com melhores comportamentos das pessoas que lá estão, não assim."
Jorge Duarte Pinheiro, professor da FDUL
Em abril de 2022, em entrevista ao DN a propósito das denúncias de assédio moral e sexual na FDUL, Duarte Pinheiro comentou, a propósito do processo disciplinar de que foi alvo por queixa de Martinez filho e de um outro processo disciplinar instaurado a um professor que fora muito ativo na denúncia dos assédios (Miguel Lemos, que foi absolvido no processo mas acabou por sair da escola): “Dizem-nos: ‘devem criticar a faculdade dentro da faculdade’. Mas quando o fazemos somos castigados”.
A consequência, disse então, é a de criar um medo do qual "há pessoas que tiram benefício”, e “um sentimento de completa impunidade - ou se não é de impunidade é a ideia de que tudo isto passa e que a comunicação social se vai embora e pronto”. Sublinhando que "a faculdade foi fundada na Primeira República para acabar com os privilégios da monarquia", o professor acusou: "O que temos está algo longe disso. O bom nome da faculdade defende-se com melhores comportamentos das pessoas que lá estão, não assim."
No Público, a 24 de maio, escrevendo na sua coluna de opinião sobre a decisão da Relação que absolve Duarte Pinheiro, o advogado Francisco Teixeira da Mota considerou que esta “explica um pouco de Direito ao Paulo [nome que o articulista pôs, para o anonimizar, a Martinez filho] e aos órgãos da FDUL”, e lamenta: “Para quem gosta e trabalha no mundo do direito e da justiça, é triste, até deprimente, ver os seus “mais ilustres” mestres a exibirem uma visão tão tacanha e saloia do mundo e uma tão grande incompreensão das liberdades fundamentais e da vida em democracia.”