TC argumenta que inconstitucionalidade da norma poderia prejudicar médicos.
TC argumenta que inconstitucionalidade da norma poderia prejudicar médicos. FOTO: Gerardo Santos

Tribunal Constitucional decide não decidir sobre regime de horas extra dos médicos

Em 2022, Governo aprovou novo regime de horas extra. Fnam considerou que violava direitos e pediu à PGR que solicitasse a fiscalização. Tribunal Constitucional decidiu agora de forma não "comum".
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Quando o verão de 2022 se aproximava e se começava a perceber que, após dois anos e meio de pandemia, o funcionamento de alguns serviços de urgência estava em risco, devido à falta de médicos para assegurar as escalas, o Governo de António Costa, com Marta Temido na tutela da Saúde, decidiu aprovar um novo regime para o trabalho extraordinário médico. O objetivo, segundo foi divulgado na altura, era reforçar as escalas das urgências durante o verão com médicos dos quadros dos hospitais, evitando a contratação de tarefeiros através de empresas, que, depois, poderiam não cumprir a escala, faltando. Mas este regime gerou logo polémica no seio da classe médica, que considerou que a solução encontrada pelo Governo era "manter as urgências abertas à custa de mais horas extra dos profissionais", colocando em causa “direitos adquiridos”, nomeadamente o de períodos de descanso.

A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), em julho de 2022, solicitou às entidades competentes, como Procuradoria-Geral da República (PGR) e Presidência da República, que avançassem com um pedido de “fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade” deste novo regime.

Um ano depois, em julho de 2023, a PGR concordou e avançou com o pedido de fiscalização, mas cessou a 10 de janeiro de 2024 e deixou de estar em vigor. Mas o Tribunal Constitucional (TC) só agora tomou posição sobre este pedido da PGR no Acórdão n.º 346/2025, a que o DN teve acesso, decidindo não decidir, por considerar que a sua decisão não produziria efeitos úteis, pelo contrário, poderia prejudicar os médicos que trabalharam horas extraordinárias ao abrigo deste regime.

A situação não é inédita, porque a Constituição Portuguesa dá este poder ao Tribunal Constitucional, mas também não é comum. O constitucionalista Rui Lanceiro explica ao DN esta decisão, dizendo que tudo começa no facto de “não ser comum que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre normas que só vigoraram durante algum tempo ou que, entretanto, foram revogadas. Esta é a questão central, neste caso”, acrescentando: “A norma que o TC estava a analisar já não vigorava para o futuro e o tribunal considerou que seria inútil declarar a sua inconstitucionalidade por não ir produzir efeitos.”

Mas, na sua opinião, o TC "fez uma espécie de juízo hipotético sobre a limitação dos efeitos, quando poderia decidir a sua inconstitucionalidade e depois limitar os efeitos". Por isto mesmo, o constitucionalista discorda da decisão do TC. “A Constituição prevê que o TC possa delimitar os efeitos da inconstitucionalidade, poderia sempre decidir que a declaração de inconstitucionalidade só vale para o futuro, sem ter efeitos retroativos”, referiu ao DN.

Para Rui Lanceiro o entendimento do TC foi “um raciocínio errado", reforçando que "o que devia ter feito era dizer se a norma era inconstitucional, e depois, se fosse caso disso, limitar os seus efeitos. Isso, sim, é a função dele: dava uma clareza à situação. E o que o TC fez foi antecipar o juízo, no caso de julgar a norma inconstitucional, decidindo evitar a situação de obrigar os médicos a devolverem o dinheiro que tinham recebido”. Desta forma, "a comunidade jurídica ficou sem saber se a norma é ou não inconstitucional, até para situações futuras”.

De acordo com o Acórdão, o TC fundamentou a sua decisão no facto de a norma que estava a analisar já não estar em vigor, por ter sido “um regime transitório”. No entanto, o pedido de fiscalização da PGR chegou ao TC em julho de 2023, seis meses antes de o regime ter deixado de estar em vigor. E a decisão do TC surge agora, quase dois anos depois da entrada deste pedido.

Segundo o documento, o TC considera que o regime esteve em vigor por “um período relativamente curto, sem que haja notícia que tenham sido fonte de litígios. Mais ainda, e sobretudo, há boas razões para considerar que, no caso de as normas impugnadas serem declaradas inconstitucionais, razões de equidade e segurança jurídica aconselhariam que tal declaração de inconstitucionalidade fosse acompanhada de uma decisão de fixação de efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, mitigando-se ou eliminando-se a sua repercussão no passado”.

O Tribunal Constitucional justifica ainda que “a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do regime transitório, implicaria que os montantes pagos ao abrigo das normas questionadas tivessem de ser devolvidos por aqueles a quem foram atribuídos. Esta circunstância, por sua vez, como acima se adiantou, afigura-se suficientemente gravosa para justificar o recurso, por este Tribunal, à possibilidade que lhe é conferida pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, salvaguardando os efeitos já produzidos, e a integridade da remuneração recebida pelos médicos que prestaram trabalho suplementar, no quadro do regime jurídico em questão. Na verdade, razões óbvias de justiça e segurança jurídica dificilmente permitiriam decisão distinta. Nestes termos, e como resulta evidente, poucos efeitos relevantes de uma hipotética decisão restariam, de modo a fundamentar cabalmente a intervenção, em sede de fiscalização abstrata sucessiva, do Tribunal Constitucional."

Daí que a decisão final tenha sido neste sentido: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do pedido.”

Fnam diz que decisão do TC deixa que “a ilegalidade” se torne “prática”

Para quem pediu à PGR que avançasse com o pedido de fiscalização de constitucionalidade, esta decisão do TC permite que “a ilegalidade" se "torne prática comum”, nomeadamente “do Ministério da Saúde, que age com má-fé e escuda-se na lentidão judicial para escapar à responsabilização”, referiu ao DN a presidente da Fnam, Joana Bordalo e Sá.

Recorde-se que este regime de horas extraordinárias foi uma das situações que levou o Movimento de Médicos em Luta, criado nessa mesma altura por um grupo de profissionais de Viana de Castelo, a pedir aos colegas de todo o país que não aceitassem fazer "nem mais uma hora extra”, além das que já são obrigatórias por lei, 150 horas a 250 anualmente, sendo que muitos, sobretudo das especialidades mais sobrecarregadas pelo trabalho nas urgências, já tinham completado 500 a 600 horas extra até àquela altura.

Ao DN, a presidente da Fnam explica que, "na altura, entendemos que este regime ia contra a nossa Constituição e, por isso, avançámos com um pedido às entidades competentes para que solicitassem a sua fiscalização constitucional. A PGR concordou com a nossa visão e motivos de preocupação, mas o Tribunal Constitucional decidiu não analisar o pedido apresentado, alegando questões formais relacionadas com a suposta falta de interesse jurídico relevante e a alegada inutilidade de uma decisão sobre o conteúdo do processo”. O que, diz, "não faz sentido".

Joana Bordalo e Sá sublinha ainda que a tomada de posição da Fnam surgiu por ser "a própria Constituição da República Portuguesa a prever que a organização do trabalho tem de ser feita em condições que sejam socialmente dignas e de forma a facultar e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida pessoal. E este regime acabava por privar os médicos deste direito e das condições que entendemos serem elementares para o exercício da atividade em segurança”.

A dirigente lembra ainda o Acórdão do TC 602/2013, tal como o fez a própria PGR na fundamentação enviada ao TC, que “reconhece que o alargamento ilimitado do trabalho suplementar coloca os trabalhadores numa situação de disponibilidade total para as entidades empregadoras, violando o direito constitucional ao descanso, previsto no artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa”.

Ou seja, sustenta, “mesmo sem uma análise ao conteúdo do pedido, ficou claro que houve fundamento para as preocupações da Fnam, que agiu de forma responsável e coerente, desde o início”, e que “continuará a denunciar os atropelos à lei e à dignidade do exercício médico.” Neste momento, pouco mais há a fazer, do ponto de vista jurídico. E a mensagem que passa é a de que "os governantes podem tomar as decisões que entenderem, mesmo que inconstitucionais, por violarem direitos adquiridos, ao abrigo de serem transitórias".

O que dizia o regime da discórdia

O novo regime de horas extraordinárias aprovado em junho de 2022 ficou na Lei n.° 12/2022 de 27-06, integrada na Lei do Orçamento para esse ano, e estabelecia uma nova forma de pagamento aos médicos e de descanso. “Nos casos em que, para garantir o normal funcionamento dos serviços de urgência hospitalar externa, um médico especialista tenha de prestar trabalho suplementar que ultrapasse as 250 horas anuais, o trabalho suplementar originado é remunerado: a) Da 251hora até à 499.ª, inclusive, com acréscimo de 25 /prct. sobre a remuneração correspondente à que caberia por igual período de trabalho suplementar; b) A partir da 500.ª hora, com acréscimo de 50 /prct. sobre a remuneração correspondente à que caberia por igual período de trabalho suplementar.”

Este regime deu ainda a possibilidade aos médicos que já estavam dispensados de realizar urgências, por lei, se o quisessem, poderiam voltar a esta atividade e serem remunerados de acordo com o que estava estipulado. Ficou ainda estabelecido que o número de horas a realizar deveriam ser definidas por cada instituição e que “os serviços e estabelecimentos de saúde abrangidos pelo presente artigo são obrigados a reportar informação mensal sobre o número de horas extraordinárias e de prestações de serviços médicos, e sobre a despesa que lhes está associada, à Administração Central do Sistema de Saúde, I. P. (ACSS, I. P.), e à Direção-Geral do Orçamento (DGO).”

A partir daqui pouco ou nada há a fazer, mas a presidente da Fnam reitera ao DN que a estrutura que dirige "continuará a denunciar os atropelos à lei e à dignidade do exercício médico", sustentando que "não é com médicos exaustos, sujeitos a centenas de horas extraordinárias, que se garantem cuidados de saúde seguros e de qualidade."

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