Trabalhos nos quais morreu Nuno Santos não cumpriam regras de segurança
Autoridade para as Condições de Trabalho e documento interno da Brisa apontam falhas de segurança na empresa Arquijardim e nos trabalhos que decorriam na A6 a 18 de junho de 2021, quando teve lugar o atropelamento do carro onde seguia Eduardo Cabrita. Estas falhas, evidenciadas também pelo depoimentos de um colega de Nuno Santos, não foram valorizadas pelo Ministério Público..
Um ano após a morte de Nuno Santos, continua sem se saber por que estava junto ao separador central da autoestrada A6, quando foi, alguns minutos depois das 13 horas de 18 de junho de 2021, colhido pelo carro do Ministério da Administração Interna (MAI) que transportava o então ministro da pasta, Eduardo Cabrita.
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O acidente acabaria por levar à demissão de Cabrita a 3 de dezembro, quando o Ministério Público (MP) acusou o seu motorista, Marco Pontes, de homicídio por negligência, considerando "suficientemente indiciado" que este conduzia na faixa da esquerda em excesso de velocidade, calculada em 163 Km/hora. E levaria o próprio ex-governante e o respetivo chefe de segurança, Nuno Mendes Dias, do corpo de segurança pessoal da PSP, a serem, em abril, alvo da mesma acusação, arquivada entretanto pelo MP, decisão com a qual a família da vítima não concorda, tendo pedido abertura de instrução e dado entrada a um pedido de indemnização, dirigido à seguradora do automóvel do Estado (Ageas), de quase 700 mil euros. Já o motivo pelo qual Nuno Santos estava onde estava, a fazer o quê, porquê e com que segurança tem sido tratado, quer pelo MP quer pelos media, e até pela própria Autoridade para as Condições do Trabalho, como irrelevante ou quase.
Isso mesmo se conclui da acusação exarada pelo MP contra o motorista: apesar de nela se referir que os trabalhos em curso na A6 no dia do acidente, e nos quais participava Nuno Santos, decorriam na berma direita e que "a atividade em causa estava adequadamente sinalizada", passa-se para a afirmação de que o trabalhador sinistrado estava no separador central, portanto do lado esquerdo, e "iniciou a travessia da faixa de rodagem em direção à berma do lado direito". Não há qualquer menção à razão pela qual esse facto, proibido pelo Código da Estrada, terá ocorrido; tão-pouco se esclarece se a sinalização existente era adequada a advertir os condutores da possibilidade de haver obstáculos ou pessoas no local onde o trabalhador se encontrava.
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Esta omissão e desinteresse são tanto mais motivo de perplexidade quando há várias evidências no processo que apontam para o facto de a equipa de trabalhadores da empresa Arquijardim - contratada pela concessionária da A6, a Brisa, para a limpeza da vegetação naquele troço - não estar suficientemente informada sobre, ou formada para, as regras de segurança num trabalho ("intervenção em rodovias sem interrupção de tráfego") que a lei caracteriza como "de risco elevado".
É desde logo a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), no seu relatório sobre o acidente, que o afirma.
Mas a mesma conclusão se retira de um documento interno da própria Brisa sobre o acidente, datado de 22 de junho e da autoria de um técnico de segurança no trabalho desta empresa.
Neste relatório interno, para a elaboração do qual o técnico teve acesso às imagens feitas pela GNR e à avaliação efetuada no local, no dia do acidente, por funcionários da Brisa, lê-se: "O trabalhador sinistrado, o Sr. Nuno Santos, encontrava-se no local para proceder à limpeza dos detritos de vegetação existentes no órgão de drenagem (valeta de fundo de talude), na zona adjacente da berma direita fora da plataforma da autoestrada. Para a execução desta atividade, o sinistrado utilizava um soprador dorsal e uma forquilha. Por razão por nós desconhecida, pousou os equipamentos que estava a utilizar e deslocou-se para as vias da autoestrada ou para o separador central. Neste movimento, foi atropelado por uma viatura em circulação na autoestrada A6. Nos termos da NT 039.16 [nota técnica da Brisa intitulada "Identificação dos riscos inerentes à autoestrada, aberta ao trânsito, para a realização de trabalhos de controlo de vegetação", que prescreve uma série de medidas de segurança a cumprir neste tipo de intervenção], constante do contrato com a Arquijardim (...), os trabalhadores apeados envolvidos em trabalhos móveis, como os que se encontravam a decorrer na zona adjacente à plataforma e berma direita da autoestrada, devem encontrar-se permanentemente protegidos por veículos de proteção e sinalização."
Assim, de acordo com esta análise, Nuno Santos, que era funcionário da Arquijardim desde maio de 2020 e teria frequentado uma formação a 27 de maio de 2021, não estaria a cumprir os procedimentos de segurança impostos pela Brisa. O que leva o técnico da concessionária a escrever: "Com base nos dados disponíveis, o acidente poderá ter sido causado pela seguinte hipótese: intervenção nas vias da autoestrada ou no separador central, por parte do sinistrado, sem justificação válida, face à natureza dos trabalhos que estavam a ser executados (controlo de vegetação na zona adjacente da berma direita da autoestrada)."
O documento efetua de seguida várias recomendações à Brisa que consolidam a ideia de que o incumprimento das regras de segurança e a falta de formação dos trabalhadores da Arquijardim foram determinantes no acidente, chegando até a propor que a concessionária aplique "sanções contratuais" às empresas subcontratadas que não apresentem evidência mensal da atuação dos seus responsáveis pela segurança e saúde no trabalho.
ACT conclui que trabalhadores da Arquijardim não tinham formação para o risco
Parece, de resto, poder concluir-se deste documento interno da Brisa que a concessionária não é suficientemente diligente no certificar do cumprimento das regras de segurança pelas empresas que subcontrata, sendo recomendado que atue "mais assertivamente junto dos prestadores de serviços com trabalhos em autoestradas abertas ao trânsito no sentido de serem cumpridas as medidas de segurança a implementar na execução dos trabalhos", que seja reforçada "a formação dos trabalhadores" para os "riscos inerentes à autoestrada aberta ao trânsito", adequando o tempo da formação de modo a que "as medidas de segurança (...) sejam interiorizadas".
Estas conclusões coincidem com as da ACT. Que, tendo ouvido os três trabalhadores que faziam parte da equipa de Nuno Santos, constatou ser "o grau de conhecimento dos mesmos relativamente à NT039.01/16 deficiente, não tendo os mesmos interiorizado as medidas de segurança a implementar na execução dos trabalhos junto a vias abertas ao trânsito, nomeadamente o cumprimento das restrições impostas pela sinalização temporária e das regras inerentes à segurança rodoviária".
A ACT também refere que esses três trabalhadores, que estavam sob contrato da Arquijardim apenas desde maio, declararam que os trabalhos decorriam de acordo com um esquema de sinalização móvel referente a "trabalhos móveis no separador central", "apesar de afirmarem que o trabalhador vítima do acidente de trabalho não se encontrava a trabalhar no separador central, mas sim na berma direita da autoestrada". Confusão que o relatório da entidade não deslinda e que parece indiciar que os funcionários da Arquijardim não distinguiam entre a sinalização de intervenções na berma direita e a utilizada quando um trabalho decorresse no separador ou, mais grave ainda, que consideravam que a sinalização de que dispunham no dia do acidente era também apta a sinalizar trabalhos no separador central.
Ainda segundo a ACT, os três inquiridos admitiram não estar a "executar o trabalho no sentido contrário ao da circulação do trânsito", embora tal seja a indicação das medidas de segurança constantes da já mencionada nota técnica - NT039.01/16 -, na qual se frisa a necessidade de, a todo o tempo, "ver e ser visto".
No entanto, e apesar de anotar que "não foi possível determinar o motivo de o trabalhador sinistrado se ter deslocado para as vias da autoestrada ou para o separador central", a ACT não parece retirar do conjunto destes factos qualquer conclusão quanto a eventuais responsabilidades das empresas envolvidas, limitando-se a sinalizar uma única ilegalidade.
A saber, que a Arquijardim tinha um responsável pela saúde e segurança no trabalho (SST) em regime de recibos verdes quando o número de seus trabalhadores adstritos a atividades de risco elevado - 57 - implica a existência de serviços internos de SST. Recomenda pois que a empresa se conforme à lei e que a Brisa, a qual tinha aprovado a 29 de junho o relatório de SST da empresa, dando "nota satisfatória à Arquijardim", proceda a "um adequado controlo das empresas a quem adjudica trabalhos, nomeadamente nas autoestradas, a nível das condições de SST".
Era "procedimento normal irem ao separador central"
As conclusões da ACT e do técnico de segurança do trabalho da Brisa, sobre a falta de preparação dos trabalhadores da Arquijardim para os riscos do trabalho de que estavam encarregados, são corroboradas pelas declarações de um deles, Joaquim Parreira, à GNR.
Ouvido a 1 de julho, Joaquim Parreira, de 59 anos, era naquele dia o condutor do veículo da empresa, uma carrinha de caixa aberta que servia para sinalização e proteção (no tipo de intervenção que ocorria naquele dia, definida como "trabalhos móveis", a única sinalização prevista, segundo a Brisa, é a colocada no veículo - um triângulo com indicação de obras, uma seta indicando obrigação de contornar obstáculos à esquerda e luzes rotativas amarelas -, o qual deve acompanhar os trabalhadores à medida que avançam, não se afastando deles mais de 50 metros, para poder funcionar como barreira física).
Parreira, que informou estar a carrinha estacionada, com ele lá dentro, sob um viaduto quando ocorreu o acidente, disse não saber o que Nuno Santos foi fazer ao separador central, referindo no entanto que este tinha oito anos de experiência naquele tipo de trabalho e era "cuidadoso e zeloso". Porém, a atender ao resumo da inquirição, acrescentou ser "procedimento normal os trabalhadores, mesmo a fazerem trabalhos na berma direita, irem verificar as caixas de escoamento de águas dentro do separador central, não sabendo se foi esse o facto que levou o colega ao separador central." No resumo da sua inquirição não há qualquer esclarecimento adicional sobre quem definia a "normalidade" de tal procedimento. Nem em que medida este se poderia coadunar com as normas de segurança em vigor.
O mesmo trabalhador afirmou ter entrado para a empresa em maio de 2021 e ter-lhe sido "logo ministrada formação, de cerca de duas horas". Esta formação teria de incidir na mencionada nota técnica (NT) da Brisa sobre a identificação de riscos inerentes ao tipo de trabalho que Nuno Santos e Joaquim Parreira desempenhavam, a qual prescreve: "É expressamente proibido circular fora das zonas balizadas ou assinaladas para a execução dos trabalhos"; "não existindo guardas de segurança [era o caso], o trabalhador efetua o trabalho deslocando-se no terreno contíguo ao limite exterior da valeta, sempre à frente do veículo [de sinalização e proteção, neste caso a dita carrinha de caixa aberta] e na zona definida pelo ângulo de proteção do veículo"; "em zonas não protegidas pelos veículos de sinalização a circulação é interdita".
As regras impõem também, como já referido, que os trabalhadores apeados devem estar, no máximo, 50 metros à frente do veículo de sinalização - o que no caso não se verificava, já que o próprio condutor do veículo admitiu à GNR ter a carrinha estacionada "a uma distância entre 150 e 200 metros" dos outros dois colegas, os quais não estariam sequer no seu ângulo de visão.
O relatório interno da concessionária sobre o acidente é omisso sobre o não cumprimento das regras de distanciamento impostas pela nota técnica citada. Questionada pelo DN sobre essa omissão, e apesar de se tratar de uma violação da nota técnica que faz parte do contrato com a Arquijardim, a Brisa remete para a empresa subcontratada: "São explicações que terão que ser solicitadas à Arquijardim."
GNR situa o atropelamento 13 metros antes da sinalização
Joaquim Parreira declarou também que Nuno quando foi atropelado estava, no que respeitava ao sentido de marcha da autoestrada, antes da carrinha, ou seja, antes da sinalização. Parreira calcula a distância a que o colega estava como sendo de três metros.
Recorde-se que nas primeiras notícias sobre o caso, e durante vários meses, se solidificou a ideia de que Nuno Santos se teria deslocado ao separador e atravessado a autoestrada numa zona em relação à qual existiria, para os condutores, um aviso de trabalhos a decorrer e portanto a indicação de abrandamento de velocidade.
Ora como anotou a equipa da GNR que foi ao local do acidente, e confirmou um funcionário da Brisa, António Miguel Veiga, no seu depoimento perante esta polícia, não existia nos painéis de mensagem da A6 qualquer aviso de trabalhos na via. Isto porque, explicou Veiga, "de acordo com o manual interno de operações só é acionado o Painel de Mensagens Variável a montante dos trabalhos caso os mesmos sejam executados na plataforma da autoestrada (vias de circulação e bermas) que nestes trabalhos não foi ligado uma vez que os trabalhos assim não exigiam."
A importância destas informações para o juízo público sobre os factos foi tanto mais relevante quando o MAI, em comunicado no dia seguinte ao do acidente, certificou que "não havia qualquer sinalização que alertasse os condutores para a existência de trabalhos de limpeza em curso".
O ministério foi nisso contraditado pela Brisa, que através de "fonte" da empresa, asseverou a 30 de junho a vários meios, incluindo o DN, que "a sinalização dos trabalhos de limpeza realizados na berma direita da A6 estava a ser cumprida pela ArquiJardim" e "conforme aos procedimentos de segurança adequados para este tipo de intervenção". A notícia resultante foi então de que a Brisa desmentia o ministério, criando-se assim a ideia de que o acidente ocorrera num local "coberto" por sinalização que advertia os condutores para a existência de trabalhos, e portanto implicando mais atenção e abrandamento de velocidade.
O testemunho de Joaquim Parreira contraria essa ideia, localizando o atropelamento antes da sinalização. E a própria localização do corpo, que caiu dentro do separador central vários metros antes do viaduto, comprova que, se como Parreira diz, e outras testemunhas corroboram, a carrinha estava estacionada sob o mesmo viaduto, Nuno Santos fez o atravessamento num local da autoestrada em relação ao qual não havia, para os condutores, qualquer advertência prévia de trabalhos a decorrer.
Aliás, atendendo ao croqui do acidente elaborado pela GNR com base nos vários testemunhos, fotografias e restante prova, o atropelamento terá ocorrido a cerca de 13 metros do veículo da Arquijardim, calculando a GNR que Nuno Santos terá iniciado o atravessamento da autoestrada 16 metros antes da carrinha. Teria andado já três metros quando foi colhido pelo BMW conduzido pelo motorista Marco Pontes, sendo projetado cerca de sete metros para a frente. O corpo teria assim ficado a aproximadamente seis metros do veículo da Arquijardim.
Em resumo: existindo sinalização - fixada numa carrinha e consistindo, como já descrito, em dois sinais, um de obras e outro de obrigação de contornar à esquerda, e luzes amarelas giratórias - dos trabalhos que decorriam na berma direita, a dita sinalização encontrava-se sob um viaduto, provavelmente à sombra, e depois do local do acidente.
Questionada pelo DN sobre a razão pela qual reagiu ao comunicado do MAI com um esclarecimento apto a criar uma ideia errada na opinião pública, a Brisa responde: "A sinalização que se encontrava colocada no local era a correta e adequada para os trabalhos de controlo de vegetação que a Arquijardim se encontrava a realizar na zona externa à plataforma da autoestrada, no talude para lá da berma. No local onde se verificou o atropelamento, não havia trabalhos a decorrer. Foi isto que a Brisa considerou útil clarificar, depois das informações com origem no MAI."
Nuno foi "buscar papel" antes de ir ao separador?
A Brisa tinha desde o dia do acidente conhecimento de parte, senão de todas estas circunstâncias, já que dois dos seus funcionários estiveram no local, com a equipa da Arquijardim, após a tragédia.
Caso de Ricardo José Damião, identificado como encarregado geral da obra civil no centro operacional de Estremoz, que declarou à GNR ter tido "uma breve reunião com todos os colaboradores da empresa Arquijardim, tendo questionado o condutor da viatura de sinalização (...) se tinha visto alguma coisa relacionada com o acidente, tendo este respondido que não viu nada."
Esta resposta de Parreira não é consistente com o que diria mais tarde à GNR, já que perante esta afirmou ter o embate ocorrido a três metros da carrinha, sendo o corpo projetado na vertical, para dentro do separador, no local onde foi colhido - o que só poderia garantir testemunhando o atropelamento.
Damião terá ainda perguntado a Parreira (o único membro da equipa que estava perto do local do acidente; como já referido, os outros dois trabalhadores da Arquijardim localizavam-se muito à frente e não viram nem ouviram nada), por que motivo os instrumentos de trabalho de Nuno Santos - o soprador e a forquilha - estavam na valeta ao lado da viatura. Parreira não terá dado qualquer explicação para o facto, mas adiantou que antes de se dirigir ao separador Nuno tinha ido à carrinha buscar papel. Uma informação que, quando questionado pela GNR, e a crer no resumo da sua inquirição, não referiu.
Já o resumo da inquirição de Damião não refere que tipo de papel teria Nuno ido buscar. Porém a conclusão da GNR terá sido de que se trataria de papel higiénico, e que o trabalhador se teria deslocado ao separador central para satisfazer necessidades fisiológicas. De facto, a investigação desta polícia encontrou, no separador central, perto do local onde o trabalhador foi colhido pela viatura do MAI, aquilo que descreve, com fotografia a atestar, como "papel higiénico e fezes humanas".
Estes vestígios foram entregues ao laboratório de polícia científica da Polícia Judiciária, que não logrou confirmar ou infirmar a compatibilidade com o ADN do trabalhador.
A satisfação de necessidades fisiológicas durante este tipo de trabalhos não consta da citada nota técnica da Brisa, mas José Teixeira, funcionário da Arquijardim, também inquirido pela GNR, assegurou que "se os funcionários tiverem de satisfazer necessidades fisiológicas, o procedimento é que os mesmos se desloquem a uma área de serviço ou que saiam na paragem [presume-se que se deva ler "saída da autoestrada"] mais próxima." O mesmo foi dito ao DN por uma fonte da Brisa.
No entanto, e apesar de citar Ricardo Damião como uma das suas fontes, o relatório interno da concessionária sobre o acidente é omisso quanto ao facto de Parreira ter dito a Damião que Nuno Santos teria ido à carrinha "buscar papel" antes de se dirigir ao separador central. Nada é dito, igualmente, sobre como se organizava a equipa para a satisfação de necessidades fisiológicas, nem sequer sobre o local do atropelamento se situar antes da carrinha de sinalização.
Questionada sobre essas omissões, a Brisa limita-se a repetir o que está no relatório; sobre a organização do trabalho, incluindo horário das pausas, remete mais uma vez para a Arquijardim: "A obrigação do contratado é comunicar à Brisa o início e o fim da jornada de trabalho. A forma como o trabalho é organizado, durante esse período, é da exclusiva responsabilidade da Arquijardim."
Do crime de "violação de regras de segurança"
O horário de trabalho da equipa naquele dia, como nos anteriores, era das 6 às 15, com uma hora de descanso. Às 11.50, de acordo com um dos funcionários da Brisa inquiridos, que passou pelo local dos trabalhos (a concessionária tem um serviço de "patrulhas" nas vias sob sua responsabilidade), a carrinha estaria já parada no local - sob o viaduto - onde se encontrava aquando do acidente, o que pode querer dizer que a equipa não terá saído da autoestrada durante a hora de descanso/almoço.
De facto José Joaquim Barros, o advogado que representa a viúva e filhas de Nuno Santos, disse ao DN que a equipa teria "almoçado ali", ou seja, no local onde estava a trabalhar, e que naquele dia planeavam até largar o serviço mais cedo, se conseguissem levar a cabo tudo o que estava determinado para aquela jornada. Sendo assim, será que cumpriam as normas no que respeita às necessidades fisiológicas, ou seja, interrompiam o trabalho e saíam da autoestrada sempre que fosse preciso? E se as não cumpriam, de quem é a responsabilidade?
Como logo em julho a penalista Teresa Quintela de Brito, professora da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, disse ao DN, pode-se estar perante uma situação "muito complicada", de "causalidade cumulativa" da morte de Nuno Santos, com "violação de deveres de cuidado por parte de vários intervenientes".
Desde logo, frisa a jurista, pelo condutor do veículo do ministério, se se provar excesso de velocidade e condução na faixa da esquerda sem que tal o justificasse.
Também pela própria vítima, se se verificar que teve "um comportamento negligente ou temerário" ao atravessar a autoestrada.
E ainda pelas empresas responsáveis pela intervenção na A6. Isto porque, segundo a jurista, poderá existir "responsabilidade da empresa subcontratada pela Brisa, e desta como entidade contratante, do ponto de vista das normas de segurança no trabalho. E se for o caso poder-se-á estar perante um crime, o previsto no artigo 152-B do Código Penal ("Violação das regras de segurança")". Este crime, explica, "ocorre quando alguém, não observando dolosamente (ainda que apenas a título de dolo eventual) disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde." A pena, em caso de resultar a morte e o perigo resultar de negligência, é de dois a oito anos de prisão.
Muito importante para se perceber a situação, sublinha, "é saber se o separador central fazia parte dos trabalhos em curso e, se sim, se esse trabalho estava sinalizado."
Mas mesmo que o separador não estivesse incluído na zona de trabalho daquele dia e se Nuno Santos se deslocasse ali para satisfazer necessidades fisiológicas, ainda assim não é óbvio, prossegue Quintela de Brito, que as empresas em causa se furtem à responsabilidade: "Se o trabalhador foi ao separador central para satisfazer uma necessidade fisiológica, então foi colocado pela entidade patronal numa situação de necessidade. Se iam estar ali muitas horas a trabalhar a empresa deveria providenciar uma casa de banho. Continua a haver responsabilidade da entidade empregadora e da Brisa como empresa contratante." E adverte: "Existindo violação dos deveres de proteção da vida e da integridade física do trabalhador por parte da entidade patronal, violação em virtude da qual o trabalhador atravessou a faixa de rodagem daquela forma e naquele local, não há espaço para discutir uma violação dos deveres de cuidado por parte do trabalhador-vítima. Então, esta violação, a existir, não se autonomiza da violação dos deveres pela entidade patronal."
Além disso, conclui a penalista, "ainda que se não prove a violação dolosa de disposições legais ou regulamentares relativas à segurança no trabalho, exigida pelo artigo 152-B do CP, sempre a entidade empregadora e a Brisa como entidade contratante podem vir a ser responsabilizadas pelo crime negligente de infração de regras técnicas na direção e execução de serviços de conservação da autoestrada, agravado pelo resultado morte, nos termos dos números 1, alínea A, e 3 do artigo 277.º e do artigo 285.º do Código Penal. Crime punível com pena de prisão de dois meses a quatro anos, se praticado por pessoas físicas".
Brisa nega que Arquijardim incumprisse normas de segurança
José Joaquim Barros, o advogado da família de Nuno Santos, que em julho de 2021 certificou ao DN que o separador central não fazia parte dos trabalhos no dia do acidente e não saber o que o trabalhador da Arquijardim foi ali fazer, acrescentando "só podemos especular a esse respeito; pode ter ido por exemplo satisfazer uma necessidade fisiológica", nega agora ao DN que alguma vez tenha colocado essa hipótese.
"O que lhe disse foi uma figura retórica", diz o causídico, exaltado. "O mais provável é que o Nuno tenha ido ao separador buscar ou pôr sinalização." Terá sido, informa, um dos proprietários da Arquijardim a avançar essa explicação.
Tal parece, porém, colidir com as certificações dadas quer pela Brisa quer pela própria Arquijardim sobre a sinalização dos trabalhos. Esta última, em comunicado enviado ao DN em julho de 2021, certificou que os trabalhos cumpriam "toda a sinalização de acordo com as regras estabelecidas no contrato celebrado e que, no caso concreto, constavam de sinalização de trabalhos móveis, compostos por uma viatura devidamente sinalizada, à semelhança do que sucede em trabalhos desta natureza". Também um dos seus funcionários, José Marques Teixeira, disse à GNR quando inquirido que "naquele tipo de trabalhos a sinalização é feita apenas com a viatura que acompanha os trabalhadores, uma vez que segundo as normas o trabalho é considerado móvel".
Acresce que a seguir ao acidente e nas primeiras inquirições nem o condutor da viatura da empresa nem qualquer outra pessoa presente no local referiu a possibilidade de Nuno Santos ter ido ao separador pôr ou retirar sinalização.
De resto a Brisa, perguntada pelo DN, face à afirmação do condutor da carrinha de que era "procedimento normal os trabalhadores, mesmo a fazerem trabalhos na berma direita, irem verificar as caixas de escoamento de águas dentro do separador central", sobre se tinha conhecimento deste facto e como o explica, volta a certificar que "os trabalhos que estavam programados, e que os trabalhadores da Arquijardim realizavam na A6, no dia 18 de junho de 2021, eram de controlo da vegetação no talude, portanto em zona adjacente à berma direita da autoestrada. Não estava prevista nem programada qualquer atividade que levasse a qualquer intervenção, fosse na via, fosse no separador central."
Face a todas as evidências, que decorrem até do relatório interno da Brisa sobre o acidente, de que a equipa da Arquijardim demonstrou, nas palavras da ACT, "um conhecimento deficiente da NT039.01/16 e não tinha interiorizadas as medidas de segurança a implementar na execução de trabalhos junto a vias abertas ao trânsito", a concessionária responde como se não tivesse existido um acidente mortal: "As medidas de segurança programadas pela Arquijardim cumpriam o exigido para os trabalhos que se desenvolviam no talude da autoestrada."
Quanto à ilegalidade apontada pela ACT e ao facto de esta entidade lhe solicitar "um controlo de segurança adequado" das empresas subcontratadas - donde se retira evidentemente que o controlo em vigor não o seria -, responde: "O nosso conhecimento é o de que em nenhum momento a Arquijardim esteve sem técnico de segurança, o que se verificou foi uma alteração do técnico de segurança, não tendo este novo técnico o tipo de vínculo laboral à Arquijardim exigido legalmente. É a esta situação concreta que a ACT se refere e que, embora, sem dúvida, relevante, não diz respeito a questões de segurança efetiva. Assim não se pode concluir que o controlo feito pela Brisa em termos de segurança não seja o adequado." Explicando que "os relatórios mensais de avaliação de fornecedores têm uma rubrica denominada "Segurança, Sinalização e Ambiente"" e que "o relatório datado de 29/6/2021 [sobre a Arquijardim] avalia o desempenho do contratado durante o mês de maio, tendo o mesmo recebido, de facto, nota satisfatória na rubrica atrás descrita, justamente porque não teve esta empresa nenhuma outra questão que bulisse com a segurança dos trabalhadores e dos clientes das auto estradas", reforça: "A Arquijardim não teve no decurso do seu contrato nenhuma outra situação que bulisse com questões de segurança ."
Seguradora aceitou a classificação de acidente de trabalho
Segundo a Brisa, o contrato com a Arquijardim iniciou-se a 12 de março de 2019 e "tem um limite máximo de cinco anos". Como referido, o relatório interno da concessionária sobre o acidente prescreve que esta deve "atuar mais assertivamente junto dos prestadores de serviços com trabalhos em autoestradas abertas ao tráfego no sentido de serem cumpridas as medidas de segurança a implementar na execução de trabalhos" e "reforçar a formação dos trabalhadores (...)", sugerindo sanções contratuais em caso de violação.
Questionada sobre o que fez face a estas recomendações, a concessionária, que fez questão de advertir, na resposta escrita ao jornal, que "o processo judicial sobre o acidente em questão ainda está a decorrer, e a Brisa não pode nem quer comprometer o seu desenvolvimento", não podia ser mais vaga: "A Brisa procura sempre a melhoria contínua dos métodos, processos e procedimentos e procura obter o mesmo dos seus contratados, se necessário adotando medidas punitivas se não forem cumpridas as medidas e normas em termos de segurança que se mostrem adequadas e exequíveis na garantia da segurança dos trabalhadores e utilizadores das autoestradas. Foram essas as recomendações e estão a ser seguidas."
Malgrado todas estas questões, dúvidas e contradições quanto às circunstâncias da morte de Nuno Santos, não terá havido, por parte da seguradora contratada pela Arquijardim para cobrir o risco de acidentes de trabalho, dúvidas - que poderiam levá-la a recusar pagar e a avançar para litigância judicial - sobre a qualificação da sua morte como acidente de trabalho.
Segundo o advogado da família enlutada, foi alcançado um acordo com esta companhia de seguros (Caravela), que está a pagar uma pensão à viúva e às duas filhas, cujo total andará perto de 800 euros mensais (Nuno Santos auferia na Arquijardim um salário de 780 euros mensais). Comenta o causídico que esta pensão, somada à que é paga pela Segurança Social (a qual, baseada na carreira contributiva do trabalhador morto, não chega a 300 euros), "permite que a família não fique na miséria". Mesmo se este rendimento fica, garante, aquém do que Nuno Santos levaria para casa: "Com as horas extraordinárias, eram mil e tal euros mensais".
Ainda segundo José Joaquim Barros, a Caravela "vai intervir quase com certeza neste processo ou numa ação à parte para ser ressarcida do que já pagou" - isto porque, explica, não pode haver acumulação das duas pensões/indemnizações pelo mesmo acidente, e caso a seguradora do automóvel do MAI seja condenada no pedido cível, a Caravela tem direito a reaver os montantes pagos.
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