"Não sei porque é que o Nuno foi ao separador central"
"Neste caso em concreto o separador central [da autoestrada] não fazia parte dos trabalhos tanto quanto sei. Não sei porque é o Nuno foi ao separador central."
A resposta é de José Joaquim Barros, o advogado da família do trabalhador Nuno Santos, que a 18 de junho morreu atropelado na A6 pelo carro do ministério da Administração Interna em que seguia o ministro Eduardo Cabrita, quando o DN lhe pergunta se sabe o que estaria a vítima, a trabalhar naquele dia na limpeza de vegetação ao serviço de uma empresa contratada pela Brisa, a fazer no local - o separador central - onde foi colhida. "Só podemos especular a esse respeito. Pode ter ido por exemplo satisfazer uma necessidade fisiológica", admite o causídico.
Mas a ser o caso - o que confirmaria parte do comunicado exarado pelo MAI a 19 de junho, quando diz "o trabalhador atravessou a faixa de rodagem, próxima do separador central, apesar de os trabalhos de limpeza em curso estarem a decorrer na berma da autoestrada" - tratar-se-ia de uma violação quer do Código da Estrada, que proíbe a circulação de peões em autoestradas, quer das regras de segurança existentes na Brisa e que as empresas por ela subcontratadas terão de cumprir. "Não sei concretamente quais as normas de segurança que a Brisa impõe às empresas que subcontrata", assume o causídico. "Não consigo dizer nada a esse respeito. Mas mesmo que existam essas normas isso não impede que haja responsabilidade do automóvel envolvido."
Decerto: se se concluir que o automóvel que colheu o trabalhador vinha em dupla contravenção do Código da Estrada por circular em excesso de velocidade e na faixa da esquerda (a mais rápida, que deve ser usada apenas para ultrapassagem) e ainda - se existia sinalização adequada dos trabalhos a decorrer - por não ter abrandado, colocando-se abaixo do limite de velocidade permitido, de modo a estar em condições de travar se surgisse um imprevisto, há, explica Teresa Quintela de Brito, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, "violação do dever de cuidado" por parte do automobilista, que incorre desde logo no crime de condução perigosa (artigo 291º do Código Penal) e pode obviamente incorrer, por ter resultado uma morte, no de homicídio por negligência.
Mas podemos estar, comenta a jurista, perante um caso "muito complicado", de "causalidade cumulativa", com "violação de deveres de cuidado por parte de vários intervenientes."
E nesses intervenientes podem contar-se, além da própria vítima - se se verificar que teve um comportamento negligente ou temerário - duas entidades das quais pouco se tem falado: a empresa empregadora daquele trabalhador e portanto responsável pela segurança dos trabalhos em causa, a Arquijardim, e a concessionária daquela autoestrada, que a contratou: a Brisa.
Poderá haver, prossegue Teresa Quintela de Brito, "responsabilidade da empresa subcontratada pela Brisa, e desta como entidade contratante, do ponto de vista das normas de segurança no trabalho. E se for o caso poder-se-á estar perante um crime, o previsto no artigo 152-B do CP ("Violação das regras de segurança"). Este crime ocorre quando alguém, "não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde", e a pena, em caso de resultar a morte e o perigo resultar de negligência, é de dois a oito anos de prisão.
Muito importante para se perceber a situação, frisa a penalista, "é saber se o separador central fazia parte dos trabalhos em curso e, se sim, se esse trabalho estava sinalizado."
Por outro lado, se o separador não estava incluído na zona de trabalho daquele dia, e pondo a hipótese adiantada pelo advogado da família de Nuno Santos, de que este se teria ali deslocado para satisfazer necessidades fisiológicas, não é óbvio, crê a jurista, que a empresa se furte à responsabilidade: "Se o trabalhador foi ao separador central para satisfazer uma necessidade fisiológica então foi colocado pela entidade patronal numa situação de necessidade. Se iam estar ali muitas horas trabalhar a empresa deveria providenciar uma casa de banho. Continua a haver responsabilidade da entidade empregadora e da Brisa como empresa contratante." E adverte: "Existindo violação dos deveres de proteção da vida e da integridade física do trabalhador por parte da entidade patronal, violação em virtude da qual o trabalhador atravessou a faixa de rodagem daquela forma e naquele local, não há espaço para discutir uma violação dos deveres de cuidado por parte do trabalhador-vítima. Então, esta violação, a existir, não se autonomiza da violação dos deveres pela entidade patronal."
Aliás, informa a jurista, mesmo que "o carro que atropelou viesse a 200 quilómetros por hora, pode continuar a considerar-se que houve, pelo menos, criação de perigo por parte da entidade empregadora. Pode não ser responsabilizável pelo resultado morte mas continua a aplicar-se o artigo 152º-B do CP, por ter sujeitado o trabalhador a perigo para a vida ou grave ofensa ao corpo ou à saúde, violando disposições legais ou regulamentares destinadas a garantir a segurança no trabalho."
É sabido que uma das questões por esclarecer é a da sinalização dos trabalhos em causa, desde logo por o MAI ter, no aludido comunicado de 19 de junho, garantido que "não havia qualquer sinalização que alertasse os condutores para a existência de trabalhos de limpeza em curso".
No que foi contraditado na terça-feira por uma informação atribuída à Brisa, sem indicação de fonte, e que o DN confirmou junto da empresa, segundo a qual estavam a ser observadas as normas de segurança da concessionária. Consistindo estas, segundo foi adiantado, em aviso de obras e um camião com luzes laranja a circular na berma direita, a muito baixa velocidade, à medida que os trabalhos avançavam, com a dupla função de aviso e de proteção física dos trabalhadores.
Já a empresa que empregava Nuno Santos enviou esta sexta-feira um comunicado ao DN, em resposta aos contactos do jornal, no qual se lê: "A Arquijardim SA tem contrato com a Brisa para a manutenção da vegetação e remoção de resíduos da A6. No dia do acidente, desenvolvia os trabalhos de acordo com o contrato estabelecido com aquela sociedade, os quais constavam de corte de vegetação e remoção de resíduos da autoestrada. (...) Cumpria toda a sinalização de acordo com as regras estabelecidas no contrato celebrado e que, no caso concreto, constavam de sinalização de trabalhos móveis, compostos por uma viatura devidamente sinalizada, à semelhança do que sucede em trabalhos desta natureza".
Como se constata, o comunicado da Arquijardim não revela que regras são as estabelecidas, em termos de segurança, no contrato com a Brisa, e não é claro sobre se existia mais sinalização para os trabalhos do que a citada "viatura devidamente sinalizada" - nomeadamente se os veículos em circulação na autoestrada podiam ver algum aviso dos trabalhos um quilómetro ou dois antes da localização dos ditos, para terem tempo de abrandar.
Do mesmo modo, a Arquijardim não esclarece se os trabalhos desenvolvidos pela equipa de quatro homens de que Nuno Santos seria o chefe incluíam o separador central - no qual existe vegetação. Já sobre o acidente em si a Arquijardim garante desconhecer "as circunstâncias", assim como "a velocidade de circulação do veículo interveniente no atropelamento do nosso trabalhador".
O DN tentou saber como aceder às normas de segurança da Brisa para trabalhos nas autoestradas - que como se sabe é uma concessionária destes equipamentos, ou seja, explora-os e é deles responsável por contrato com o Estado -, mas foi respondido que se trata de "documentos internos".
Confidenciais até, qualificou ao jornal um ex-responsável da área da fiscalização da empresa, que pede para não ser identificado: "Enquanto empregados da Brisa assinamos um acordo de confidencialidade. Não podemos falar com a comunicação social, nem divulgar essas normas, que quando saí não trouxe comigo nem posso pedir a um colega que ainda lá esteja sem o colocar numa situação complicada."
Mas a empresa, assegura este ex-trabalhador da Brisa, "é rigorosa nos procedimentos de segurança e na sinalização dos trabalhos nas autoestradas; se houver um trabalho do lado direito tem de ser feita a sinalização com antecedência - dois quilómetros antes - e toda uma delimitação da zona de trabalho." Tratando-se de trabalhos do lado esquerdo, ou seja junto à via mais rápida, e havendo trabalhadores no separador central, então, garante, "não há dúvidas sobre o que dizem as normas: além da já mencionada sinalização com antecedência para assegurar a redução de velocidade, tem de haver corte de via, delimitando-se com cones de sinalização, e antes da zona de trabalho colocam uma viatura para servir de proteção."
Porém, acusa, muitas vezes não é isso que se passa nas obras que se veem nas autoestradas: "Ainda há poucos dias vi trabalhos no separador central, precisamente de corte de vegetação, sem qualquer proteção nem corte de via. O que além do mais implica que os trabalhadores têm de atravessar a autoestrada a correr com máquinas às costas. E o plano de sinalização era muito fraquito."
A explicação que este ex-trabalhador da Brisa adianta para as falhas de segurança apontadas é de que "o conjunto de regras que a empresa observa quando as intervenções são dela própria não é garantido aos trabalhadores subcontratados. Quando as obras e trabalhos são de subempreiteiros muitas vezes a proteção não é assegurada."
O que, lembra, implica não apenas perigo para os trabalhadores mas para os automobilistas: "Se um trabalhador recebe ordens para trabalhar no separador central e atravessar a autoestrada está a colocar-se a ele em risco e às pessoas que vêm nos carros. É muito importante que os próprios trabalhadores tenham ações de formação e saibam que não podem atravessar as autoestradas."
Em caso de acidente, considera, a responsabilidade é desses subempreiteiros mas também, e até sobretudo, da Brisa: "Tem de garantir que quem está a trabalhar nas autoestradas está a cumprir os procedimentos de segurança e tem formação para isso. Sendo a responsável pela infraestrutura tem de fazer tudo para garantir que há segurança." Para tal, explica, tem de fiscalizar de modo a certificar-se de que os subempreiteiros cumprem as regras. Mas, conclui, "as equipas de fiscalização que havia foram quase todas dispensadas. Eu trabalhava nessa área e saí, como muitos dos meus colegas."