SIRESP: "Um novo ajuste direto será uma incompetência governativa sem paralelo"
Deputado do PSD pelos Açores, Paulo Botelho Moniz acompanha há vários anos o processo SIRESP e a sua competência técnica - é engenheiro de eletrotécnico especialista em comunicações de emergência - não deixou margem para dúvidas aos líderes do seu partido para lhe irem renovando esta tutela no parlamento. Integrou o grupo de trabalho da ANACOM, na sequência dos incêndios de 2017, para propor medidas que melhorassem a rede SIRESP. É à prova de rasteiras técnicas e conhece o sistema melhor que ninguém.
Estamos a seis meses do fim do contrato com o SIRESP e ainda não foi anunciado nenhum concurso público internacional. Como é que vê esta situação?
É extremamente preocupante por dois motivos: o primeiro, prende-se com o facto de que quando o Tribunal de Contas deu um visto em tempo relâmpago, em junho do ano passado, alertou que esta promulgação por 18 meses tinha o especial objetivo de preparar o novo procedimento, de forma que ele entrasse em vigor em 2023.
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Foi uma das condições para aceitar este prolongamento de algo que já se sabia há muito que ia terminar em junho de 2021. Nesta altura toda a gente sabia que o processo tinha de estar concluído e adjudicado a partir de janeiro de 2023.
Estamos em junho de 2022. O tempo que demora o concurso internacional e o tempo que a passagem de um novo prestador de serviços numa área desta complexidade impõe, realisticamente, já não é exequível que a partir de janeiro tenhamos um novo contrato em vigor.
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Quando diz que não é exequível, é por uma questão de prazos legais?
Não é exequível pelo tempo que temos e porque há um conjunto de premissas - e esse aspeto é central -, que deviam ter sido acauteladas para que o concurso fosse livre do ponto de vista da concorrência, e criasse condições objetivas para que quem quisesse concorrer estivesse em pé de igualdade com todos os outros.
Havia que olhar para as instalações que albergam equipamentos e perceber se o facto de estarem num ou noutro proprietário pode dar vantagem competitiva.
Havia que criar uma separação clara do que é a prestação de serviços de operação e manutenção, para que os potenciais concorrentes reconhecessem atratividade a este processo.
Estamos perante um cenário em que pode haver um novo ajuste direto?
Será incompreensível e inadmissível se tal acontecer. Será uma incompetência governativa sem paralelo, um desrespeito pelos dinheiros públicos, um fazer tábua rasa do parecer do tribunal de contas, recorde-se que o tribunal de contas em sede do visto alertou expressamente ser necessário "planear e realizar atempadamente" a aquisição de novos serviços para depois do final dos 18 meses de prolongamento de contrato.

O deputado do PSD entende que já não é "exequível" o concurso público
© Leonardo Negrão / Global Imagens
Isso passa a ser quase uma inevitabilidade, o que acho inaceitável e até completamente escandaloso do ponto de vista da gestão do erário público. Esta prorrogação dos 18 meses foi para criar as condições para um concurso aberto, com sã concorrência e uma oportunidade para que possa haver economia de valor.
Este já inevitável incumprimento de prazos não vai permitir escolhas de mercado e de valores de prestação de serviço que permitam poupanças ao erário publico, é o continuar da indefinição que em nada ajuda à consolidação e implementação das melhorias e recomendações técnicas constantes dos muitos grupos de trabalho que foram sendo criados.
Para além de mais, este já inevitável incumprimento de prazos não vai permitir escolhas de mercado e de valores de prestação de serviço que permitam poupanças ao erário publico, é o continuar da indefinição que em nada ajuda à consolidação e implementação das melhorias e recomendações técnicas constantes dos muitos grupos de trabalho que foram sendo criados.
No último ano, uma das coisas que se discutia, era que o valor do atual contrato estava muito inflacionado.
Estamos a falar de um sistema que, segundo o Tribunal de Contas, já custou ao país 600 milhões de euros de custo em 15 anos, sempre com os mesmos fornecedores.
Estamos a falar de um sistema que, segundo o Tribunal de Contas, já custou ao país 600 milhões de euros de custo em 15 anos, sempre com os mesmos fornecedores.
Portanto, se formos a olhar para este custo, e à medida que vamos dissecando os custos, vemos que há aqui uma inflação brutal face ao que é possível ter em termos de custo.
O contrato dará uma média de 37 milhões de euros anuais e havia um estudo interno do próprio MAI que se fosse para fazer os serviços de operação e manutenção com recursos internos, estávamos num valor que andava pelos 16 milhões de euros.
Se em cada ano estou a gastar a mais 20 milhões de euros do que o que poderia gastar, esses 20 milhões se calhar são os carros da PSP que não têm peças para andar.
É esta ineficiência que depois retira aos bombeiros e ao restante serviço de emergência e segurança, recursos que são essenciais.
A imoralidade do valor excessivo não é só pela não utilização racional e com parcimónia dos dinheiros públicos, mas vai mais além, é que estamos a prejudicar outras componentes do sistema porque não há dinheiro.
A imoralidade do valor excessivo não é só pela não utilização racional e com parcimónia dos dinheiros públicos, mas vai mais além, é que estamos a prejudicar outras componentes do sistema porque não há dinheiro.
Mas as atuais empresas fornecedoras já têm vasta experiência nesta matéria, como a Altice e a Motorola. Em termos práticos, não acaba por ser uma vantagem para essas empresas e para o serviço público que prestam?
É uma vantagem que não permite, lá está, se não forem criadas as condições, um concurso de livre e sã concorrência. Porque se os equipamentos estão albergados em instalações maioritariamente de um dos concorrentes, em que ele é que acede sempre, isso é fundamental.
Se tem computadores, tem antenas, tem estações em instalações de um dos concorrentes, se outro concorrente que até é concorrente de mercado, porventura, tiver intenção de concorrer, já imaginou o concorrente às três da manhã estar à espera do dono da casa para proceder a uma reparação?

Paulo Botelho Moniz é engenheiro eletrotécnico
© Leonardo Negrão / Global Imagens
Esta própria pré-configuração de que falava é fundamental para uma livre e sã concorrência.
Mas há no mercado outras empresas igualmente qualificadas e competitivas nestas matérias?
Sem dúvida. A operação de redes móveis, e o SIRESP é uma rede móvel, tem vários prestadores de serviços e vários players. Alguns são os operadores, outros são em outsourcing que também é uma tendência que se tem vindo a intensificar.
Isto é um mercado que já existe. Uma rede móvel de emergência tem exigências de qualidade de serviço, de robustez e de tempos de resposta que são maiores que as de uma rede pública. As obrigações e a imperiosa necessidade de não falhar é muito maior, mas no âmbito do serviço é tudo equivalente.
A ex-presidente do SIRESP defendeu a transição do mesmo para as redes 4G e 5G, uma das áreas de ação de uma destas empresas com o SIRESP. Isso também é uma vantagem para essa empresa, se houver esta transição, ou há outras que também podiam facultar estas redes?
Essa pergunta é muito importante, muito profunda, e merece algum tempo. Há e tem havido sistematicamente confusão sobre duas áreas em paralelo, sobre o tema SIRESP que são duas áreas centrais, mas que têm sido misturadas e confundidas.
Uma é serviços de operação e manutenção da rede SIRESP, que é o que está em causa do ponto de vista do contrato que terminou em junho de 2021 e é aquilo que o Tribunal de Contas acedeu a prolongar por mais 18 meses.
Coisa diversa, mas em tudo paralela, é o que queremos como rede de emergência futura para o país, sendo que a 30 de junho de 2021 terminou o contrato de parceria público-privada do SIRESP.
O que é que todos os países encaram como uma rede de emergência e segurança? É uma infraestrutura que, no limite, tem uma coisa que nunca pode falhar: a voz.
O que é que todos os países encaram como uma rede de emergência e segurança? É uma infraestrutura que, no limite, tem uma coisa que nunca pode falhar: a voz.
E isto só pode ser garantido com uma rede dedicada, soberana, ou seja, que não depende de outrem além dela própria para funcionar, e que responda de acordo com o standard que tenha sido dimensionado para este objetivo.
Hoje, o standard europeu e um pouco por todo o mundo, é a norma técnica TETRA, maioritariamente utilizada por todos os serviços de emergência na Europa e já em muitos pelo mundo. É isso que se passa no SIRESP.
À data de hoje, o TETRA continua a ser a melhor norma para termos voz no conceito de uma rede soberana, robusta e fiável.
Dito isto, podemos argumentar que todas as ambulâncias já têm desfibrilhadores, que posso já ter a minha ficha clínica ainda antes de chegar ao hospital, ou se estiver num edifício colapsado e mandar um vídeo, tenho uma capacidade de avaliação de quem está no comando das operações muito maior.
Tudo isto é verdade, mas o que se diz então, é que as redes de nova geração como o 5G, são sempre complementares a uma rede básica de voz que nunca falha.
E há outra razão mais importante: no quadro de um grande incidente ou grande catástrofe, as redes móveis colapsam, mas não é apenas por terem falhas técnicas.
Se estiver no estádio do Benfica durante um jogo e cair metade de uma estrutura qualquer, o que é que toda a gente no estádio vai fazer? Vão todos começar a telefonar e o sistema não vai distinguir quem são médicos, quem são polícias, nem quem é uma chamada prioritária.
E aí a tal voz da rede TETRA ou prioritária ou soberana é que vai fazer a coordenação, não vai ser o 4G ou o 5G.
O sistema futuro tem de ter sempre uma rede robusta, privativa e soberana, mas em cima disso, tudo o que de melhor houver para dados, para vídeos, usa-se se estiver disponível.
O sistema futuro tem de ter sempre uma rede robusta, privativa e soberana, mas em cima disso, tudo o que de melhor houver para dados, para vídeos, usa-se se estiver disponível.
O que não pode acontecer é não termos mais nada se isso não estiver disponível ou o que deveria ter, falhar. Aí estamos mal.
Depois aí há um problema: atualmente estamos no 5G e, portanto, tudo o que é 4G está a migrar para o 5G, as redes 4G vão ficar vagas.
É preciso estar atento para algum movimento sub-reptício de alguém achar que as forças de emergência e segurança podem passar a usar o 4G como rede.
É preciso estar atento para algum movimento sub-reptício de alguém achar que as forças de emergência e segurança podem passar a usar o 4G como rede.
E a desvantagem disso é que já há outras com mais velocidade, mas pode haver interesse de quem tinha 4G e tem de a descontinuar e que vê aqui uma oportunidade para captar bombeiros e polícias para pôr naquela rede.
A anterior ministra da justiça, Francisca Van Dunem, afastou a ex-presidente do SIRESP, ex-quadro de uma das empresas fornecedoras, e um consultor que também tinha sido representante em Portugal de outra delas, para afastar suspeições de conflitos de interesses e assegurar a transparência do concurso público. Como viu esta medida e que balanço faz da mesma?
Nestas posições e áreas específicas há duas coisas importantes: a competência técnica é muito importante, e a história do SIRESP tem sido recheada por pessoas que do ponto de vista da competência técnica tem deixado muito a desejar, principalmente do lado do interesse do Estado.
Por outro lado, a isenção do desempenho, que é essencial e deve ser avaliada por quem está no palco.
Em relação às situações em concreto prefiro não me pronunciar, pois não as conheço em detalhe.
Como é que viu o envolvimento de militares neste processo, sendo que foram nomeados dois para um grupo de trabalho junto da administração do SIRESP, além do novo Presidente do Conselho de Administração ser também um militar que era Diretor de Comunicações do Exército?
Este é o quarto grupo de trabalho. Recordo que houve um grupo de trabalho que considero de grande qualidade que foi liderado pelo professor Carlos Salema, que produziu um vasto documento e que é a nível técnico um excelente documento.
É um estudo com grande qualidade em qualquer parte do mundo, as recomendações que lá estão ainda são completamente válidas, muitas não foram implementadas.
Depois disso, houve outro grupo de trabalho que tirou basicamente as mesmas conclusões que o professor Carlos Salema.
A seis meses do fim do contrato, dois militares - e com todo o respeito pela sua competência -, com intenção de lançar o concurso, não são essas duas almas, por muito competentes que sejam, que vão trazer alguma coisa de disruptivo e inovador
A seis meses do fim do contrato, dois militares - e com todo o respeito pela sua competência -, com intenção de lançar o concurso, não são essas duas almas, por muito competentes que sejam, que vão trazer alguma coisa de disruptivo e inovador que não tenha sido já parte das conclusões dos anteriores grupos de trabalho. Isso é mais um grupo de trabalho para fingir que a coisa anda.
Na série britânica Yes, Prime Minister, quando havia qualquer problema que se queria empurrar com a barriga, faziam-se duas coisas: ou se abria um inquérito, ou criava-se um grupo de trabalho.
Foi um bom negócio para o Estado, principalmente na qualidade do serviço prestado nas comunicações de emergência, esta nacionalização do SIRESP?
Não foi um bom negócio, foi a forma engenhosa para resolver um problema que foi o esbarrar sucessivamente nas recusas de visto do Tribunal de Contas, para autorizar o pagamento do investimento feito em geradores e antenas satélite no pós-Pedrogão, a pedido do Governo.
Basicamente esta foi a motivação, porque depois da tomada do capital, nada se passou. Não houve nenhuma alteração estratégica, não houve alteração funcional, não houve nada que tenha sido impactante. Foi só a forma de poder ressarcir os privados.
O SIRESP está agora mais fortalecido para responder a situações críticas como a dos incêndios de 2017?
O SIRESP teve melhorias, é verdade. Mas algumas das melhorias de interligação não são nada daquilo que estava previsto pelos estudos do grupo de trabalho do Professor Salema.
A questão da energia, que é essencial, é mesmo a coisa mais importante. Por exemplo, cada estação, cada antena, ter baterias para um funcionamento confortável e relativamente prolongado na ausência de energia elétrica, e isso não foi feito.

Paulo Botelho Moniz fez parte do grupo de especialistas da ANACOM que analisou as falhas de comunicações nos incêndios de Pedrógão
© Leonardo Negrão / Global Imagens
Criaram-se uns geradores móveis numas carrinhas, como se alguém no meio de um incêndio florestal fosse acudir com 500 litros de gasóleo numa carrinha por causa do gerador.
Havendo outra catástrofe como a de Pedrogão, seja por incêndio, por sismo, por cataclismo, aquilo que se passou em Pedrogão vai passar-se novamente
Ou seja, havendo outra catástrofe como a de Pedrógão, seja por incêndio, por sismo, por cataclismo, aquilo que se passou em Pedrógão vai passar-se novamente.
Alerto que se acontecer uma situação dessas em Lisboa, temos um problema concomitante: as estações em Lisboa estão em muitos edifícios e se essas infraestruturas colapsam, ficamos sem rede.
Pior, a não existência de baterias em todas as estações de Lisboa, por exemplo, se cortar por seis horas a energia elétrica em Lisboa, ficamos sem rede.
Num sismo, as primeiras 12 horas são absolutamente cruciais para as operações de recuperar quem possa ter ficado em escombros, para a segurança dos bombeiros que estão nestas operações poderem ser avisados em tempo real de eventuais réplicas, para poderem sair a tempo dos edifícios.
Se imaginar uma cidade como Lisboa, com a dimensão de área urbana, implicada numa falha de energia durante seis ou sete horas, vai ter um inferno, vai ter um Pedrógão ampliado em matéria de socorro.
Se imaginar uma cidade como Lisboa, com a dimensão de área urbana, implicada numa falha de energia durante seis ou sete horas, vai ter um inferno, vai ter um Pedrógão ampliado em matéria de socorro.
Passados 600 milhões de euros, é isso que vai ter. E é bom que se diga isto para as pessoas terem consciência que o tema da energia do socorro e da emergência, o facto de não existirem as baterias e geradores em cada uma das estações, faz com que numa falha prolongada de energia, vá haver um problema sério.
valentina.marcelino@dn.pt
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