Os cuidados prestados pelos laboratórios de análises clínicas estão na primeira linha de qualquer diagnóstico clínico. Talvez por isso mesmo, e como refere, nesta entrevista ao DN, o diretor-geral da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos (ANL), Nuno Castro Marques, o setor tem uma rede de postos distribuídos por todo o país. São mais de 3300 que prestam milhões de atos a utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de seguradoras e de outros subsistemas de saúde. No entanto, um estudo português, que compara o regime nacional de licenciamento com o de outros países europeus - a ser divulgado pela ANL esta terça-feira -, traça um retrato de regras “rígidas” no setor que estão a travar a expansão da rede de laboratórios. Regras desproporcionais, porque tratam da mesma maneira laboratórios multinacionais e laboratórios pequenos. “A situação é preocupante”, diz o dirigente, pois está a levar a que muitos dos pequenos laboratórios estejam “a encerrar ou a ser aglutinados”.O diretor da ANL denuncia mesmo que o “Estado exige aos privados regras que não cumpre”, fazendo com que alguns laboratórios tenham de esperar quatro anos para poder abrir portas. Associado a esta questão há a não-atualização do preço das convenções com o Estado há mais de uma década e que, nas palavras de Nuno Castro Marques, está a fazer com que cada vez mais “os utentes paguem atos do seu bolso” - ou porque são novos atos, já que as análises clínicas estão em permanente transformação, ou porque a convenção deixou de compensar e o laboratório deixa de realizar este ato para o SNS.Cinco anos depois da pandemia da covid-19, em que o setor das análises clínicas foi “fundamental na resposta”, o presidente da ANL diz ainda que há o risco real de populações de algumas partes do território nacional ficarem sem acesso imediato a este cuidado. “A relação entre os laboratórios e o Estado é uma exigência da União Europeia e tem mesmo de ser melhorada”, argumenta.. A ANL divulga hoje um estudo pioneiro, por ser comparativo a nível europeu, sobre os regimes de licenciamento nesta área. De acordo com o estudo, Portugal tem um regime desajustado à realidade. Porquê?Antes de mais, deixe-me dizer que este estudo surge porque sabíamos da insatisfação dos nossos associados face às dificuldades e entraves na obtenção dos licenciamentos, que são morosos e burocráticos. Perante isto, em vez de estarmos preocupados em verificar o que se tinha passado na situação A, B ou C, decidimos fazer um inquérito transversal para saber o que todos pensavam do regime de licenciamento. E foi com estes resultados que partimos para um estudo comparativo com os regimes de licenciamento de outros países europeus. Neste sentido, o estudo é inovador, porque tem por base um inquérito transversal aos prestadores do setor, e por apresentar soluções que já funcionam, e bem, em países como Espanha, Alemanha ou França.Como é que o estudo caracteriza o regime de licenciamento vigente em Portugal? Como um regime rígido e desajustado. Ou seja, formalista, orientado exclusivamente para questões infraestruturais e muito pouco para os resultados em termos de qualidade. Como dizia há pouco, é um regime assente em burocracia e não na perspetiva material de verificar se, efetivamente, o que existe é ou não adequado. Por outro lado, é um regime desproporcional, não é flexível em função da dimensão do prestador, do volume de atividade e do risco. Trata da mesma forma o laboratório de uma multinacional ou o laboratório mais pequeno.O que é que isso está a provocar no setor?Que se estão a impor custos e dificuldades que não são necessários. Dou-lhe um exemplo típico: aos laboratórios de nível 1 e 2 impõe-se 15 graus de atmosfera negativa. Para se ter permanentemente o laboratório nesta atmosfera quase que nem se consegue lá entrar. Esta temperatura é necessária para laboratórios que trabalham em níveis 3 ou 4, em termos de segurança, para se evitar contaminações. Se acontecer alguma coisa, o que está no laboratório não vem cá para fora. Mas para os laboratórios mais pequenos, normais, isto não é necessário e são despesas de investimentos absolutamente incomportáveis. Outro aspeto importante é que o Estado exige regras ao setor privado que ele próprio se isenta de cumprir. E este regime de licenciamento existe há mais de uma década, isto é a demonstração da desproporcionalidade.De acordo com o estudo, o que é que o regime português tem de diferente do de outros países? O espanhol, por exemplo, não tem tantas obrigações de divisórias, permitindo muito maior flexibilidade no funcionamento dos laboratórios. O francês não exige licenciamento, exige acreditação. Ou seja, se o laboratório já cumpre as regras técnicas para o seu funcionamento já não necessita de licenciamento. Nós propomos que os laboratórios tenham um regime jurídico de licenciamento mais simplificado, para que não se fique a aguardar o desenvolvimento dos processos. O Estado tem de aceitar que o setor sabe o que faz, não há conhecimento de problemas de qualidade nos laboratórios de análises. Não é possível continuar com o paradigma antigo de permanente suspeição sobre os prestadores de cuidados. Portanto, o sistema deveria mudar, de forma a ser mais proporcional e com regras efetivamente necessárias à segurança e à qualidade da atividade. Agora está dependente, por vezes, de centímetros nas divisórias. .A nível dos utentes, e já que a ANL considera que esta situação põe em causa a Saúde Pública, quais as consequências deste regime? Tem obrigado a obras permanentes, e tem atrasado, e muito, a abertura de laboratórios, o que tem sido uma dificuldade para a expansão da rede de laboratórios. Por exemplo, durante mais de um ano, a rede de expansão de Postos de Colheitas esteve suspensa, por não conseguir obter licenciamento. Foi preciso haver um desbloqueio da parte da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), através da alteração da portaria, para que esta rede avançasse. Se não houver licenciamento não há convenção com o SNS, o que significa que os utentes não têm acesso a análises clínicas. Este é o impacto imediato no acesso aos cuidados, o que tem levado a problemas sérios. Outro exemplo: tivemos um laboratório, de pequenas dimensão, que levou quatro anos a ficar licenciado. Estar à espera este tempo é absolutamente inexplicável.Este regime tem levado à expansão de grupos multinacionais no mercado em detrimento dos grupos portugueses?Não digo que sejam multinacionais em detrimento de grupos portugueses, porque temos dois grandes grupos nacionais - o Joaquim Chaves e o Germano de Sousa -, o que faz com que o mercado esteja relativamente equilibrado. Mas o facto de os laboratórios irem sofrendo custos crescentes e o facto de não haver atualização dos preços convencionados está a fazer com que os pequenos laboratórios, que ainda sustentam alguns trabalhadores, estejam a encerrar ou a ser aglutinados por grupos maiores. Só que, hoje, até os grandes grupos apresentam dificuldades, o que nos faz dizer que o panorama no setor é profundamente preocupante.Isso quer dizer que a prestação deste tipo de cuidados, que está na primeira linha de qualquer diagnóstico, pode estar em risco?Somos a primeira linha de qualquer diagnóstico, é uma verdade. E é preciso perceber que a rede de laboratórios privados, em Portugal, é provavelmente a maior em termos de acesso a estes cuidados. São cerca de 3300 pontos de acesso a análises clínicas, distribuídos por zonas onde nem sequer o Estado chega. Os laboratórios privados estão em todas as aldeias deste país, nem que seja com postos de colheitas e trabalhadores fixos. Mas, muitas vezes, esta rede é mantida quase por uma lógica de solidariedade e espírito de serviço público. Porém, se não houver a atualização que é necessária nos preços das convenções - os quais, neste momento, nem sequer cobrem os períodos inflacionistas que temos vivido nos últimos anos -, a rede irá tornar-se insustentável e, a certo momento, os laboratórios farão contas e chegarão à conclusão de que trabalhar para o SNS não compensa.Já há laboratórios que deixaram a convenção com o SNS?Também fizemos um inquérito à atividade dos laboratórios e obtivemos dados profundamente preocupantes. Por exemplo, em 2024, os laboratórios e os postos de colheitas associados à ANL atenderam cerca de 14 milhões de utentes. Destes, 7,5 milhões eram do SNS. Ao todo, foram realizados cerca de 101 milhões de atos, dos quais cerca de 55 milhões realizados a utentes do SNS. Porém, o número médio de atos realizados a utentes do SNS já foi muito superior, o que evidencia que já há um problema de acesso e que a realização de atos a utentes do SNS já não cobre todas as necessidades. Da mesma maneira que não são revistos os preços das convenções, também não são revistos os atos comparticipados, o que quer dizer que o utente paga cada vez mais atos do seu próprio bolso. Isto também está a afetar a rede de prestação de cuidados do SNS, porque é através das convenções que todo o país, sobretudo as zonas de mais baixa densidade, usufrui destes serviços. Mas, como digo, vai haver um momento, não se sabe a partir do qual, em que esta rede vai deixar de ser sustentável e, obviamente, os cuidados vão ter de ser concentrados nos grandes centros urbanos e depois já não há volta a dar. O que se levou 40 a 50 anos a construir pode começar, efetivamente, a ruir. Se nada for feito nos próximos tempos, onde é que o setor estará daqui a cinco, sete ou dez anos?Um laboratório não realiza um único ato que não tenha sido prescrito por um médico, a maior parte das vezes do SNS, e se estes atos não forem realizados não existe diagnóstico, e, consequentemente, também não há tratamento. Ou seja, se nada for feito estaremos a prejudicar o acesso dos utentes do SNS ao diagnóstico e ao tratamento, o que é absolutamente calamitoso. A rede de laboratórios convencionados com o Estado é o que garante que um cidadão de Trás-os-Montes tem a mesma possibilidade de aceder aos cuidados de saúde que qualquer outro cidadão de um centro urbano. Não ter isto em consideração é prejudicar a própria universalidade do acesso aos cuidados de saúde em Portugal. É absolutamente crucial que se olhe para a rede de laboratórios convencionados.Quer dizer que se nada for feito, as populações do interior deixarão e ter acesso a estes cuidados? Já estão a deixar de ter. Nalgumas zonas do interior, por exemplo, sem ser em Trás-os-Montes, mas no Alentejo, e muito pelas políticas de internacionalização do setor das análises clínicas, já há utentes que estão a cerca de uma hora de um ponto de acesso para colheitas de sangue, o que é absolutamente preocupante. Isto já não é um risco potencial. É um risco real. Os laboratórios convencionados desempenham o seu papel de resposta aos cidadãos e aos utentes do SNS ao longo destes 50 anos e, por isso, defendemos que a relação entre os laboratórios e o Estado, que é uma exigência da União Europeia, tem mesmo de ser melhorada.O setor das análises respondeu no período da pandemia de covid-19, o setor já está integrado num plano de contingência?Não. E esse é outro ponto absolutamente importante. Lembram-se do setor quando é necessário. Da parte do setor existe sempre boa vontade e muito voluntarismo, mas funciona-se lógica de casuísmo e temos vindo a dizer que deve existir uma forma articulada de funcionamento nestas situações. Devíamos aprender com o passado para que no futuro a capacidade de resposta fosse ainda melhor, mas já manifestámos a nossa disponibilidade para um memorando de entendimento em relação a um protocolo com o Estado, só que nada mudou. .IGAS abre inquérito à atividade cirúrgica adicional realizada no SNS.“Houve ministros a pensar que conseguiam resposta adequada do SNS virando costas aos médicos. Foi um erro”