Carlos Cortes
Carlos Cortes

“Houve ministros a pensar que conseguiam resposta adequada do SNS virando costas aos médicos. Foi um erro”

Carlos Cortes recandidata-se a bastonário dos médicos e é o único na corrida às eleições de 29 maio a 3 de junho. Nesta entrevista, alerta o poder político: “A Ordem vai ser mais interveniente”.
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Carlos Cortes, médico especialista em Medicina Laboratorial (Patologia Clínica), foi eleito pela primeira vez para o cargo de bastonário dos médicos em fevereiro de 2023, após segunda volta com o adversário, Rui Nunes, depois de os outros quatro candidatos terem ficado aquém na votação. Dois anos e três meses depois - mais cedo do que era costume, por imposição do novo Estatuo das Ordens Profissionais, que alarga os mandatos de três para quatro anos - volta a recandidatar-se, com a diferença de que, agora, é o único na corrida.

Para o novo mandato, leva na bagagem temas que ficaram por terminar, como a revisão do estatuto que agora entrará em vigor em pleno, e o qual diz que “é mau”, mas também a revisão do internato médico, da carreira médica e a sua valorização. E deixa um aviso: “A Ordem será mais interveniente.”

O bastonário diz ter sido sempre um defensor da “construção do diálogo com o poder político”, mas já não há mais tempo para mudanças no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Quem pensava que estas se faziam de “costas voltadas para os médicos”, enganou-se. Agora, é tempo de corrigir “este pensamento”.

Os 60.396 médicos inscritos na Ordem poderão começar a votar eletronicamente para todos os órgãos a 29 maio e até 3 de junho, dia que se saberá os resultados para bastonário como para os Conselhos Regionais do Norte, ao qual se candidatam duas listas, e para os Conselhos Regionais do Centro e do Sul e Ilhas, cada um com uma lista concorrente.

Começamos pelo facto de ser o único candidato a bastonário . O lugar deixou de ser apetecível?

Posso dizer-lhe que tenho o apoio de alguns dos candidatos às eleições anteriores, o que quer dizer que há alguma unidade e reconhecimento da trajetória que a Ordem fez neste período, apesar de curto, dois anos e pouco. Os médicos perceberam que é preciso que a Ordem se prepare para uma intervenção muito mais marcante na definição das políticas de Saúde, quer sejam para o SNS ou para os setores privado e social. E, neste segundo mandato, não vou perder a oportunidade de ter uma Ordem mais interveniente na defesa dos médicos, dos doentes e do sistema de saúde.

Há dois anos, na segunda volta, teve 11.176 votos, o seu adversário, Rui Nunes, 6600, o que dá cerca de 18 mil votos. Tendo em conta que estão inscritos mais de 60 mil, não é pouca participação? Os médicos estão desinteressados?

São poucos médicos a votar, mas é a tradição nas eleições da Ordem. Em 2023 não houve sequer diminuição da votação, mas vamos ver o que vai acontecer este ano. Havendo só um candidato é óbvio que não é tão mobilizador para o eleitorado, mas vou esforçar-me muito, até às eleições, para incentivar à votação, que é absolutamente fundamental para os desafios que aí vêm.

Vêm aí tempos mais difíceis?

Não tenho dúvida de que a Ordem e os médicos vão atravessar um período de enorme dificuldade nos próximos anos. Por isso, é absolutamente fundamental dar agora uma mensagem muito clara ao poder político: os médicos estão empenhados e, sobretudo, unidos. Mas quero dizer-lhe também que a pouca votação não é um fenómeno próprio da Ordem dos Médicos. É também um fenómeno das outras ordens profissionais, e até a nível nacional, se olharmos para a abstenção nas eleições legislativas. A abstenção, mais do que uma questão da Ordem, é uma questão social. É o desinteresse das pessoas por atos absolutamente necessários em democracia. Mas obviamente que os médicos têm de participar mais, independentemente das opções.

No programa de candidatura assume que o país vai entrar num novo ciclo político, em que é preciso reafirmar a valorização dos médicos, a criação de condições dignas de trabalho e a defesa inequívoca da qualidade dos cuidados de saúde. Mas este ciclo pode não mudar muito do anterior. Como bastonário, o que vai fazer que ainda não tenha feito para conseguir mudanças?

Em primeiro lugar, devo dizer que as circunstâncias em que exercemos este mandato foram particularmente difíceis. Assim que tomei posse, passado uma semana, fomos confrontados com a revisão do Estatuto da Ordem dos Médicos, que não era um tema que estivéssemos a preparar. Foi um período muito difícil, que durou alguns meses, e que teve um desfecho, do meu ponto de vista, muito negativo. Tanto que a Ordem apresentou, de imediato uma proposta de um novo estatuto aos grupos parlamentares da Assembleia da República, que caiu quando esta cessou funções. Por outro lado, foram também dois anos de grande instabilidade política, o que acabou por ter impacto nos cuidados de saúde e nos projetos que a Ordem estava a desenvolver. Começámos a trabalhar com um Governo socialista e, no último ano, com o Governo da AD. Foram 11 meses em que tivemos de criar outro caminho. Não sabemos se os atores serão os mesmos ou não neste Governo, mas quem vier já tem conhecimento da situação do SNS e das suas dificuldades, e já não há mais margem para erro. Não vamos aceitar que a Ordem seja uma espécie de adereço decorativo do poder político. A Ordem não vai ser simpática, nem antipática com o poder político.

O que quer dizer, concretamente?

Que a postura da Ordem e do seu bastonário não será uma postura submissa, mas construtiva e muito crítica, quando tiver de ser. Sempre dei oportunidade à construção de diálogo com o poder político, mas, neste momento, já não há muito mais tempo para se colocar em execução as políticas que são necessárias a bem dos médicos, dos doentes e do SNS.

Se não há mais tempo, qual vai ser a prioridade da Ordem junto do poder político ?

A revisão do Estatuto da Ordem é uma prioridade. Já esperámos tempo suficiente para que os partidos políticos com representação na Assembleia da República revejam a nossa proposta. O estatuto atual é mau para a Ordem, para os doentes e para o SNS,

Porquê, pode explicar?

Por vários aspetos. O primeiro tem a ver com o papel que foi reservado à Ordem na área da formação médica e no reconhecimento dos médicos especialistas em Portugal. É fundamental, para a segurança dos doentes e para a qualidade dos cuidados de saúde, que a Ordem volte a ter o papel de reconhecimento da formação, porque o estatuto atual pode retirar essas competências. Uma Ordem tem de ser autónoma e independente do poder político, precisamente para trabalhar na área da regulação da profissão médica. Tem de ser a Ordem a reconhecer os títulos dos especialistas e algumas alterações no estatuto podem permitir que esse papel seja remetido para o Ministério da Saúde. E isto é um erro grande.

A definição do ato médico também é um erro deste estatuto?

Neste momento, o ato médico está mal definido no estatuto atual e isto é responsabilidade da Assembleia da República, que o aprovou. O ato médico não é para os médicos, é para os doentes. É para a defesa da prática de cuidados em segurança. E, por isso, tem de haver uma clarificação no estatuto sobre o que é exatamente o ato médico. Por outro lado, há pontos neste estatuto que inviabilizam completamente o funcionamento da Ordem dos Médicos, nomeadamente no que respeita à possibilidade de os médicos poderem desenvolver atividades dentro da própria Ordem. Este estatuto só estava a ser aplicado parcialmente, mas vai vigorar em pleno a partir desta nova eleição. A sua alteração vinha a ser discutida com a anterior Assembleia da República, mas como foi dissolvida não houve oportunidade de terminar este trabalho.

Mas além do estatuto, a Ordem tem outras propostas concretas para o poder político?

Temos um conjunto de áreas que já estavam a ser trabalhadas, e daí também a minha recandidatura. Vamos apresentar uma nova proposta para a carreira médica, de que até já tínhamos dado conta ao Ministério da Saúde, e que será discutida com os médicos e sindicatos. A carreira é um fator de dificuldade para que o SNS também consiga captar e fixar médicos nos seus quadros. Temos a questão formativa, com a revisão do internato médico, que é fundamental que também aconteça, até para encararmos a nova medicina. O enquadramento jurídico do internato é muito antigo e tem tido apenas algumas alterações, necessitando agora de uma transformação profunda, mas sem nunca deixarmos de ter a qualidade formativa que lhe é reconhecida internacionalmente.

Falou em jovens médicos. Como bastonário, que mensagem deixa para que estes fiquem no SNS?

A mensagem que tenho para transmitir não é aos médicos, mas a quem tem a responsabilidade do SNS, que é o Governo e, fundamentalmente, o Ministério da Saúde. Os governos das últimas décadas são os responsáveis pelo que está acontecer no SNS e é ele que tem de criar as condições adequadas para que os médicos se mantenham no serviço público. Uma nova carreira médica é uma dessas condições. A clarificação do ato médico também, como o papel do médico no enquadramento do SNS. António Arnaut, o pai do SNS, dizia que o maior valor do SNS está nos seus profissionais. Infelizmente, os últimos ministros da Saúde esqueceram-se completamente destas palavras sábias. Os profissionais têm sido esquecidos e, de alguma maneira, até descartados. Houve ministros nesta última década que pensavam que se conseguia dar uma resposta adequada no SNS virando as costas aos médicos e distanciando-os do poder político. Foi um erro e este é o momento de dar uma grande viragem neste pensamento.

Ainda é possível?

Claro. Tem é de haver uma aproximação entre poder político e médicos para que haja a visão destes nos cuidados de saúde. Obviamente que há questões remuneratórias na motivação dos médicos, e estas são mais matérias laborais e do domínio dos sindicatos, mas, como bastonário, não deixarei nunca de defender remunerações justas e dignas, tendo em conta o papel que os médicos têm na diferenciação e responsabilidade no SNS. Tudo isto são matérias muito concretas que já discutimos com os dois últimos ministros da Saúde. Por exemplo, a questão da investigação durante o tempo formativo, algo que os médicos reivindicam há muito. Tem de ser tratado, porque não é para o bem-estar dos médicos, é para o desenvolvimento do próprio SNS. A questão de maior flexibilidade de horários dentro do SNS também é importante. E, por fim, outro aspeto que tem sido posto em causa nas últimas décadas, a liderança médica.

Quando fala em liderança médica é nas administrações das ULS?

Falo de todas as lideranças de qualquer nível na prestação dos cuidados de saúde, nomeadamente à frente das ULS. Os países ditos desenvolvidos, com hospitais de referência internacional, até privados, têm provado que a liderança médica traz benefícios do ponto de vista económico. Os médicos é que sabem verdadeiramente quais são as opções de diagnóstico e de terapêuticas mais indicadas e com benefícios para a qualidade da prestação dos cuidados de saúde. E esta liderança médica tem desaparecido, e é essencial voltar a valorizá-la. Ser hoje diretor clínico é dos papéis mais ingratos. Não são remunerados adequadamente e têm grande pressão na responsabilidade que assumem. Por isto, as matérias sobre a liderança médica têm de voltar a ser valorizadas.

Há quem defenda que a liderança médica deve ser eleita e não nomeada, defende isso?

Temos de ir por passos. A primeira coisa a fazer é consolidar e reforçar a liderança médica no SNS com cargos de topo, intermédios e outras direções. Depois, podemos ver se têm de ser nomeadas ou eleitas. Para mim, o mais saudável e mais democrático é ter pessoas eleitas. Assim, temos a garantia de que não há o que critico muitas vezes, o fator do ‘amiguismo’ ou do ‘cartão partidário’.

No mandato anterior, denunciou condições de trabalho nalguns serviços, como na cirurgia do Hospital Fernando da Fonseca, mas haverá mais serviços a fiscalizar?

O papel da Ordem dos Médicos é fundamental neste aspeto. E, como disse, não pode ser meramente decorativo. A Ordem tem de ter um papel muito mais interveniente junto do poder político, temos competências delegadas pelo Estado para este e outros aspetos. Do meu ponto de vista, o poder regulador poderia melhorar se usasse mais a competência técnica da Ordem para auditorias e inspeções nos cuidados de saúde. Não há outra organização com esta diferenciação, nem a Direção-Geral de Saúde, nem o Ministério da Saúde, nem a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde ou a Entidade Reguladora da Saúde. E o nosso objetivo também é trabalhar junto do poder político para se alargar esta competência da Ordem nas áreas da auditorias clínicas às unidades de saúde, sejam do setor público, privado ou social, porque a qualidade da prestação de cuidados aos doentes tem de ser a mesma.

A divisão de competências médicas com enfermeiros voltou a estar em cima da mesa. Em que situações aceitaria mudanças?

Fico espantado como, nesta altura, para outras áreas da sociedade, a prioridade é alargar a competência de algumas profissões em detrimento de outras. Essa não é a prioridade do país, sobretudo com o estado em que se encontra o SNS. A prioridade deveria ser fixar mais médicos e outros profissionais no SNS, dar resposta às dificuldades nas urgências e às listas de espera para a cirurgia e consultas. Esta deveria ser a prioridade. Focarmo-nos nos doentes e não nas nossas próprias profissões. Estas propostas vão aparecendo de vez em quando, mas não quero contribuir para o colapso total do SNS. Quero contribuir para o seu desenvolvimento, continuando a olhar, por exemplo, para a formação médica. Os franceses, os ingleses ou os alemães não têm o reconhecimento que Portugal tem nesta área, o que quer dizer que soubemos traçar a nossa trajetória. Não faz sentido nenhum, neste momento, estarmos a rever atos de cada profissão, a não ser que seja para os clarificar, como o ato médico.

Carlos Cortes
Nos últimos seis anos, saíram mais de seis mil médicos do SNS

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