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Rui do Carmo. “É preciso reforçar a formação dos magistrados sobre a violência contra as mulheres e crianças”

Autor de um livro lançado a 8 de maio sobre leis e violência doméstica, o Procurador da República jubilado considera que Portugal evoluiu mais na legislação de que na capacidade de a aplicar.
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A 8 de maio apresentou “Legislação Sobre Violência Doméstica Anotada”, obra de que é um dos autores, e na qual são comentadas as normas jurídicas para a prevenção, assistência a vítimas e repressão dos comportamentos de violência contra as mulheres, as crianças e a Violência Doméstica. Portugal tem, nestas vertentes, legislação eficaz? 

Temos legislação suficientemente avançada neste domínio, embora existam medidas importantes anunciadas que não são implementadas e melhorias que tardam em ser consideradas.  

Por exemplo? 

Uma medida não implementada, mas anunciada em 2019 como ação prioritária, é a criação de uma rede de intervenção disponível para atuação urgente durante 24h, que envolva as entidades judiciárias, policiais e da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica e dos Gabinetes de Apoio à Vítima. Um exemplo de melhoria que tarda em ser considerada, embora o seu estudo esteja decidido também desde 2019, é o desenvolvimento de um modelo de intervenção judiciária que integre num só procedimento as vertentes criminal, de proteção e promoção dos direitos das crianças, que têm vindo a ser fortemente afetadas, e de resolução dos conflitos familiares que esta realidade desencadeia; projeto que deverá ser desenvolvido a par da também reiteradamente anunciada implementação do modelo da Casa da Criança, de inspiração islandesa. Temos, contudo, evoluído mais na construção do edifício legislativo do que na capacidade de o aplicar. E a sua efetiva implementação é um problema de organização, de meios, de formação dos recursos humanos.  

Se tivesse de destacar um artigo da legislação em vigor, pela importância que encerra, qual seria e porquê? 

No que respeita ao procedimento criminal, destaco as normas que determinam a realização de uma avaliação do risco de revitimização, em regra desenvolvida pelos órgãos de polícia criminal, que se inicia logo quando da notícia dos factos que podem constituir crime mas tem continuidade durante as fases de investigação e julgamento, e que se reveste de grande importância para a adoção de medidas eficazes de proteção da vítima e também para uma melhor adequação das medidas de contenção do agressor.  

“Uma medida não implementada, mas anunciada em 2019 como ação prioritária, é a criação de uma rede de intervenção disponível para atuação urgente durante 24h, que envolva as entidades judiciárias, policiais e da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica e dos Gabinetes de Apoio à Vítima”

As Fichas de Avaliação de Risco em Violência Doméstica (RVD) foram recentemente reformuladas. O que se espera daí? 

Aguarda-se a sua efetiva implementação, na esperança de que se possam ultrapassar as insuficiências e dificuldades que já haviam sido detetadas na implementação do modelo aplicado desde a aprovação da Lei da Violência Doméstica, em 2009, que se encontram documentadas em alguns dos relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD). Insuficiências decorrentes da necessidade de as melhorar e atualizar, à luz da experiência e do avanço do conhecimento. Dificuldades resultantes, em boa parte, da insuficiente preparação de muitos dos que as aplicam.  

O número de mulheres assassinadas anualmente às mãos de companheiros teima em não baixar. A prevenção está a falhar. Porquê? 

O investimento na prevenção, nas suas diversas dimensões, a promoção da acessibilidade das vítimas às estruturas de apoio, a sua proteção no decurso dos procedimentos, o desenvolvimento destes num prazo razoável e a aplicação esclarecida da lei que já temos são elementos que concorrerão seguramente para diminuir o número de homicídios neste contexto. Fui coordenador da EARHVD durante 6 anos e um dos objetivos do trabalho desta equipa é precisamente contribuir para a prevenção do homicídio no contexto da violência doméstica. Nas análises retrospetivas que realizamos, cujos relatórios demos a conhecer às entidades com responsabilidades neste tema e publicamos para conhecimento geral, foram detetados diversas insuficiências e efetuadas recomendações que visavam a sua superação. Mas, foi um trabalho muito pouco apoiado pelas entidades que o deveriam suportar, com escassíssimos recursos, em que o silêncio foi a principal resposta dos destinatários das recomendações, mesmo quando vieram a ocorrer alterações provocadas por estas. A cultura de avaliação ainda encontra muitas dificuldades em ser levada a sério. 

“Mostra-se necessário identificar as insuficiências existentes na capacidade de implementação dos programas para autores do crime de violência doméstica, avaliar os que se encontram em execução e os resultados obtidos”

Durante 6 anos, Rui do Carmo coordenou a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica
Rui do CarmoFundação Francisco Manuel dos Santos

As Casas de Abrigo, concebidas como solução de último recurso, estão a funcionar como primeira solução.  O que é preciso mudar para garantir a vítimas assistência e proteção capazes?  

Temos, de facto, um número excessivo de mulheres e crianças em Casas de Abrigo, que não baixa e cujos tempos de permanência se estendem pelas conhecidas dificuldades económicas e habitacionais para a autonomização. Esta residencialização de mulheres e crianças constitui muitas vezes uma segunda vitimização. Para o contrariar, é necessário, desde logo, aplicar aos agressores as medidas de afastamento previstas na lei, para cuja vigilância de cumprimento existem hoje instrumentos eficazes, afetando recursos humanos, económicos e sociais ao apoio de que necessitem as vítimas para reajustar as condições da sua vida, e permanecerem, querendo, no seu local de residência e atividade. 

Uma sentença lavrada por um juiz em 2025, ilibou o agressor de uma mulher e considerava as mulheres mentirosas. Como estão as mentalidades dos magistrados, nesta matéria? O que diz a sua experiência?  Como mudar as mentalidades?  

Prefiro realçar a capacidade que o sistema de justiça teve de reverter a decisão e fazer justiça. Refiro e cito o que é escrito no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que revogou a decisão da 1ª instância e condenou o arguido pela prática do crime de violência doméstica. Lê-se no acórdão, em síntese, que a valoração da prova produzida no julgamento foi enviesada pela forma como este foi conduzido, evidenciando “biaspré juízos, estereótipos e crenças sobre a mulher, relacionamento, paixão e racionalidade, entendimentos pessoais sobre o comportamento social, adequado e não adequado”, que afetaram “a própria independência interna ou imparcialidade do juiz” e, por isso, “o direito a um processo justo e equitativo”. 

Os magistrados deveriam ter mais formação para julgar estes casos?  

A EARHVD, em abril de 2022, endereçou ao Centro de Estudos Judiciários, ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Superior do Ministério Público, recomendação, que entendo continuar a ser muito atual, expressando a necessidade de se “prosseguir e reforçar o esforço de formação dos magistrados judiciais e do Ministério Público sobre a violência contra as mulheres, a violência contra as crianças e a violência doméstica de forma a fomentar uma visão, compreensão e intervenção holísticas sobre estas realidades e um estreito diálogo e interação com profissionais das outras áreas do saber e setores que partilham com o sistema de justiça a responsabilidade de responder aos casos concretos”. E propunha-se que essa formação abordasse temas como: as “características e dinâmica destes comportamentos e as especiais exigências que daí resultam para a ação do sistema de justiça, na articulação e diálogo entre as suas unidades orgânicas e com outros setores, organizações e profissionais”; a condução e tramitação dos procedimentos judiciários; a importância da ponderação sobre os efeitos e os resultados que serão previsivelmente alcançados com as decisões, à luz do conhecimento disponível e dos objetivos inscritos na lei; e a comunicação do sistema de justiça com os intervenientes no processo e com a comunidade. É nesta linha que, a meu ver, a formação dos magistrados deve ser desenvolvida.

“Aguarda-se a efetiva implementação (das Fichas de Avaliação de Risco reformuladas), na esperança de que se possam ultrapassar as dificuldades detetadas na implementação do modelo aplicado, resultantes, em boa parte, da insuficiente preparação de muitos dos que as aplicam.”

Faltam dados relevantes sobre a programas destinados a agressores de Violência Doméstica, em ambiente prisional e em sociedade. Que caminho falta fazer? 

Entendo que se mostra necessário identificar as insuficiências existentes na capacidade de implementação dos programas para autores do crime de violência doméstica, bem como avaliar os que se encontram em execução e os resultados obtidos. 

Qual a relevância e necessidade de uma obra destas neste momento?  

Esta obra é escrita por 40 especialistas em Direito, Psicologia, Sociologia, Criminologia, Serviço Social, Educação e Saúde. Com percursos e experiências profissionais muito diversificados, seja na investigação e na docência, seja na atividade judiciária, no apoio às vítimas, na ação social e terapêutica, pericial ou de consultoria. Não era possível anotar esta legislação mobilizando apenas conhecimentos jurídicos, e talvez por isso esta seja a primeira legislação sobre violência doméstica anotada. Só a mobilização de especialistas em diversas áreas do conhecimento, com uma experiência que abarca os diferentes planos da ação neste domínio, tornou possível a publicação desta obra, que exprime e reflete sobre o trabalho que têm vindo a desenvolver. 

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