Os técnicos da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) chamam-lhes utentes. “Preferimos essa designação a condenados ou agressores. Na verdade, muitos deles criam mecanismos de resistência a estas intervenções, tentam arranjar motivos para não participar. Mas para esses, os nossos técnicos têm estratégias de motivação”, diz ao DN Jorge Monteiro, diretor do Centro de Estudos de Investigação e Planeamento da DGRSP, olhando com otimismo o futuro da reinserção destes agressores em contexto de intimidade.Os programas para agressores de violência doméstica em ambiente comunitário (PAVD e CONTIGO) foram lançados em 2011 e envolveram, desde então, uma média de 1748 arguidos/ condenados por ano, tendo atingindo em 2024 o número mais elevado desde o início da aplicação do programa: 3200 pessoas. De cobertura nacional, o PAVD - o CONTIGO vigora apenas nos Açores - é uma intervenção estruturada, baseada num modelo “com orientação cognitivo-comportamental” sempre que o agressor, apenas do sexo masculino, mantém ou tenha mantido uma relação de intimidade com vítima do sexo feminino. Aplicado pelos tribunais e executado pela DGRSP, visa “promover nos agressores a consciência e assunção da responsabilidade do comportamento violento e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, com vista à diminuição da reincidência criminal”, de acordo com a definição da DGRSP no memorando enviado ao DN. Pode ser aplicado no âmbito de qualquer pena ou medida judicial de execução na comunidade, com duração mínima de 18 meses, em medida de coação, suspensão provisória do processo, suspensão de execução da pena, como pena acessória ou agregado ao sistema de vigilância eletrónica.Em cima da mesa está a possibilidade de alargar a intervenção a dois anos. De resto, Rui Abrunhosa Gonçalves, ex-diretor-geral da DGRSP, chama a atenção dos tribunais: “Há muitos utentes que têm ficado de fora destas intervenções, precisamente porque os juízes aplicam medidas de coação com duração inferior a 18 meses.É preciso ter isso em atenção”. A propósito, no documento onde traça a estratégia de combate à violência doméstica, a Procuradoria-Geral da República propõe o reforço da intervenção juntos dos agressores, “promovendo uma cultura de responsabilização”. Não há custos acrescidos para o Estado, respondem da DGRSP: “Os que existem estão incluídos nas despesas para aplicação de Justiça. Estes programas são geridos e implementados a 100% pelos recursos internos”, informa Jorge Monteiro. “O sistema tem dado muito boa resposta, formado técnicos e criado equipas que abarcam todo o país”, acrescenta Abrunhosa Gonçalves, um dos responsáveis, enquanto psicólogo fo- rense especializado em agressores, pelo incremento e reforço das intervenções nos últimos anos..“Por que não podia simplesmente fazer o que eu dizia?”. Estabilizar, “educar”, prevenir A integração de agressores obriga à prévia avaliação do risco. A chamada Fase 0 é essencial para determinar se os agressores reúnem condições pessoais para beneficiar com o programa.Uma vez incluídos, seguem-se as fases seguintes, três, obrigatórias: estabilização, que tem a duração de seis meses e envolve a gestão individual do caso com recurso a técnicas motivacionais; abordagem psicoeducacional, uma intervenção de grupo com 20 sessões, onde se trabalham temas associados à violência conjugal; e prevenção da recaída, com acompanhamento individual dirigido à consolidação das aprendizagens tendo em vista a prevenção da reincidência criminal.A fase intermédia lida com questões de “género, poder e controlo, os papéis sociais e sexuais e a socialização (…); os mitos e falsas crenças associadas à violência doméstica (…) a igualdade e respeito versus poder e controlo, a dependência e a auto e hetero-responsabilização pela violência”. Este módulo tem como objetivo o reconhecimento das “influências dos estereótipos de género na legitimação e manutenção do comportamento violento no casal”. Desde logo, o ciúme. O ciúme é um instrumento determinante desse controlo sobre a vítima. No PAVD, o ciúme é trabalhado pelos técnicos com os agressores enquanto indicador de inseguranças pessoais. “É importante que os agressores reconheçam a relação existente entre as inseguranças pessoais, o ciúme e o controlo do outro”, diz Jorge Monteiro. Programa VIDA: os homicidas Um outro programa, o VIDA, foi criado em 2018 a pensar exclusivamente em agressores de violência doméstica num contexto de prisão, envolvendo desde o seu início um total de 680 pessoas. Em 2020/2021, o programa iniciou a fase de expansão a todo o território nacional, estando hoje implementado em dez estabelecimentos prisionais. Estruturado em 45 sessões, destina-se maioritariamente a homicidas ou a condenados por tentativa de homicídio nas relações de intimidade. “Aqui, a questão da avaliação do risco é ainda mais essencial; estamos a falar de graus de violência limite”, diz Abrunhosa Gonçalves.O programa inclui atividades educativas, técnicas e trabalhos de grupo que apelam ao role play - numa troca de papéis, o agressor passa a vítima e o técnico assume o papel de agressor -, a exercícios de cariz mais experiencial e a técnicas psicoterapêuticas, como a reestruturação cognitiva, o psicodrama e a confrontação entre pares..Dalila Cerejo: “Apesar do muito que progrediu, Portugal continua patriarcal”. Tem como objetivos desenvolver o sentido crítico sobre os comportamentos que se enquadram no âmbito da violência doméstica, identificar e reestruturar distorções cognitivas associadas a este tipo de violência, desenvolver estratégias contentoras e reguladoras de comportamentos disfuncionais e agressivos, bem como promover a consciência dos participantes para a gravidade e a extensão dos danos causados pela prática dos crimes. “Assenta essencialmente numa transformação de mentalidades e no treino de competências sociais e cognitivas, de competências de tomada de perspetiva e empatia, regulação emocional e autocontrolo ou controlo da impulsividade”, diz Jorge Monteiro.Reincidência: um estudo ainda preliminar Sabe-se quantas pessoas passam por estas intervenções - dados parciais indicam um aumento de 7,7% quando comparado o último trimestre de 2023 (2494 pessoas) ao homólogo de 2024 (2788 pessoas). Os valores acumulados dizem-nos que, desde 2011, passaram pelos PAVD (comunidade) 10 696 agressores e, desde 2018, 641 pelo VIDA (meio prisional). Porém, não se sabe com rigor quantos destes reincidiram, num dos crimes com maior taxa de recidiva.Confrontado com a escassez de análises de reincidência, o DN teve acesso a conclusões preliminares do estudo mais alargado sobre reincidência feito até ao momento em Portugal. Encomendado pela DGRSP à Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra (FPUC), e apesar de uma interpretação preliminar ainda grosseira, os primeiros resultados apontam para efeitos positivos dos programas .Os programas “provocam mudanças significativamente positivas nos comportamentos relacionados com o cometimento de crimes dos adultos e jovens que o frequentaram”. Os investigadores analisaram as taxas de reincidência de agressores de violência doméstica que terminaram a medida judicial entre 2013 e 2019 tendo em conta dois indicadores - reincidência pelo crime de violência doméstica, e reincidência por outros crimes - e dois períodos temporais: dois e cinco anos após o término da medida. Dos 3083 participantes, 1583 pertenciam ao grupo experimental (indivíduos que frequentaram o PAVD ) e 1500 que constituíram o grupo de controlo ou de comparação (indivíduos que não participaram nas sessões do PAVD), os resultados apontaram para “diferenças significativas nas taxas de reincidência criminal entre os dois grupos, resultados que sugerem”, assume Jorge Monteiro, “que o PAVD é um programa eficaz na reabilitação de agressores de violência doméstica, demonstrado pela sua capacidade em reduzir as taxas de reincidência criminal”.Conclusão semelhante tira Rui Abrunhosa Gonçalves: considera os dados “muito relevantes”, apesar de admitir que necessitam de análise “mais fina”.Nélio Brazão, professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra, é um dos responsáveis pelo estudo. “São apenas resultados preliminares que precisam agora de ser robustecidos. É preciso ter isso em consideração” diz ao DN o investigador. Não é só em Portugal que falham os dados sobre os níveis de reincidência em agressores submetidos a programas de reinserção. Existem alguns motivos que podem ajudar a explicar a ausência de evidências claras do sucesso deste tipo de abordagem, desde logo a baixa motivação dos agressores para iniciarem a intervenção. “A participação não significa que estes agressores estejam, de facto, empenhados numa mudança de comportamento. Na grande maioria dos casos, minimizam o exercício da violência contra as suas parceiras íntimas ou culpam-nas pelo recurso à violência”, diz Dalila Cerejo, Investigadora do Observatório Nacional de Violência e Género - CisNova (Nova-FCSH).Alertando para a hipótese de os programas de intervenção poderem não significar necessariamente a inibição ou redução do risco de agressão, continuando a manter, assim, as vítimas em risco - uma vez que produzem um falso sentimento de segurança alicerçado na perceção de que o marido/companheiro sairá tratado do programa -, Cerejo considera fundamental “uma análise qualitativa destes programas e o reforço do trabalho com os agressores quanto às crenças e modelos de género baseados numa masculinidade exacerbada”.Autora de vários trabalhos junto de agressores, releva a importância do reforço da dimensão do género no trabalho e nos manuais de intervenção: “As questões assimétricas de poder, nomeadamente através do uso da violência, apenas se manifestam no contexto da casa-família-intimidade.”PerfisO estudo da violência doméstica a partir do comportamento do agressor é fundamental para a compreensão do fenómeno, defendem os especialistas. O modelo tipológico dos agressores tem como premissa três dimensões de análise dos comportamentos diferenciais: a gravidade dos atos de violência contra as parceiras; a circunscrição, ou não, do exercício da violência ao espaço da casa-família; e a existência de distúrbios de personalidade e/ou presença de indicadores de psicopatologia.O primeiro subtipo é composto por agressores violentos apenas no contexto da família. Nestes casos, o poder manifesta-se através do uso da violência apenas nos modelos relacionais de género. Em regra, não possuem registo criminal anterior e não revelam qualquer indício psicopatológico. “Poderão ter vivenciado experiências de violência doméstica durante a infância, terem presenciado violência entre os progenitores ou terem eles próprios sido vítimas de violência doméstica, e esse pode ser um fator relevante e que deve ser considerado,” diz Dalila Cerejo. Na verdade, a maioria dos agressores em programas de intervenção não exibem indícios de distúrbios psicológicos. Abrunhosa Gonçalves é menos taxativo. “Em muitos casos, essas tipologias sobrepõem-se. A ideia de que o A não pode ser B não é clara”, diz, alertando para o perigo que advém quando se arrumam os agressores por gavetas. “É fundamental a monitorização constante do risco, e esse perigo só é prevenido se considerarmos que não há tipologias estanques. Não é raro verificar-se a existência de fatores de risco que anteriormente não estavam lá, nomeadamente os distúrbios psicológicos.”