Quase menos 200 mil consultas e menos 21 mil cirurgias só em janeiro

A suspensão da atividade programada no primeiro mês do ano agravou ainda mais os problemas dos doentes não covid. O bastonário dos médicos diz que "a situação é dramática" e que terá consequências graves na mortalidade e na morbilidade de muitos portugueses.
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O balanço do primeiro mês do ano em confinamento no acesso aos cuidados de saúde está feito. Os dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) disponibilizados ao DN revelam que o ano começou com menos 194 239 consultas e cuidados nos hospitais públicos e menos 21 493 cirurgias, o que representa uma redução da ordem dos 17% e dos 30,6%% em relação ao mesmo período homólogo de 2020, em que se realizaram 1 149 219 consultas e cuidados e 63 637 cirurgias.

Para o bastonário dos médicos, os números de janeiro estão em linha com o que aconteceu em 2020. Ou melhor, a partir do dia 2 de março do ano passado, quando foram identificados os primeiros casos de covid-19 no país. Nessa altura, o Ministério da Saúde (MS) tomou a decisão de suspender toda a atividade programada para que a maioria dos recursos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) pudesse ser canalizada para o combate à pandemia, tendo toda esta atividade sido parada durante dois meses. Agora, oito meses depois, a ministra Marta Temido, volta a fazer o mesmo, através de um despacho, datado de 13 de janeiro, em que pedia às unidades de saúde que concentrassem todos os esforços e recursos na resposta à covid, que atingia a sua pior dimensão em Portugal, com quase dez mil mortes em dois meses.

Na saúde, são muitos, entre profissionais e associações de doentes, os que consideram que os efeitos colaterais da pandemia nos doentes não covid já é tão ou mais grave do que a pandemia de SARS-CoV-2. O bastonário Miguel Guimarães diz que "a situação é dramática" e que terá "repercussões brutais a nível da mortalidade e da morbilidade dos doentes". E a grande preocupação é que, "a cada dia que passa, não há um sinal do MS no sentido de reverter esta situação".

O representante dos médicos defende mesmo que o país vai precisar de "um Plano Marshall para a saúde dos portugueses", senão "o governo vai ter de assumir que a saúde dos portugueses fica como está. Quem ficou prejudicado ficou, e só conta daqui para a frente. O que é brutal", diz.

Os números de janeiro vêm juntar-se aos de 2020, e estes - segundo a análise feita pela consultora MOA, em parceria com o Movimento Saúde em Dia, uma iniciativa da Ordem dos Médicos e dos Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) - dão conta de que foram realizados menos 2,5 milhões de exames de diagnósticos, menos 11,4 milhões de consultas e tratamentos nos centros de saúde, menos 3,4 milhões de consultas e urgências nos hospitais e menos de 126 mil cirurgias. Uma realidade que faz Miguel Guimarães criticar o governo na medida em que apresenta um Plano de Recuperação e de Resiliência (PRR) que não contempla esta situação.

"Há coisas que já não vamos conseguir recuperar. Há pessoas que morreram entretanto, outras que já não são recuperáveis porque perderam a janela de oportunidade terapêutica, mas há algumas que ainda podemos recuperar se tentarmos minimizar os efeitos colaterais, mas fiquei profundamente admirado quando percebi que no PRR não existe sequer uma palavra sobre como resolver os problemas dos doentes não covid", acrescentando: "A ministra chegou a anunciar uma task force para resolver os problemas dos doentes não covid, mas nada aconteceu, foi mais uma intenção que não passou do papel."

O bastonário disse ao DN que os doentes que estão a ser deixados para trás são uma preocupação para a Ordem dos Médicos e para "todas as associações representativas de doentes com quem nos reunimos recentemente, e que gostariam de ver um sinal da tutela sobre como vai resolver a situação". Porque, sustenta, "a partir do momento que o MS tomou a opção política de tratar os doentes covid e deixar os outros para trás - e os doentes covid não são mais importantes do que os não covid, embora os primeiros tenham um impacto político maior do que os outros -, permitiu que a atividade programada fosse desligada da atividade hospitalar".

O médico explica: "A grande questão é que a redução da atividade programada não aconteceu só nas alturas mais críticas, nos picos de abril-maio e agora no pico de janeiro-fevereiro . A grande questão é que a situação se mantém assim desde o dia 2 de março de 2020." Miguel Guimarães argumenta com a análise feita pela Ordem aos dados oficiais. "Não há um único mês de 2020 em que a atividade de consultas presenciais nas unidades de saúde, a realização de cirurgias, de meios complementares de diagnóstico, de rastreios ao cancro, não tenha sido pior do que nos meses de 2019. O que quer dizer que em nenhum mês houve recuperação. Houve uns meses melhores, outros piores, mas não foi feita nenhuma recuperação da atividade não covid. Esta é a questão principal."

Em resumo, justifica que "a situação é muito grave e que os números de janeiro, que até são aceitáveis porque se viveu nessa altura o pior período da pandemia, estão em linha com o que se passou antes". O que não se pode continuar a ignorar é que "há um sem-número de utentes que continuam a não ter acesso aos cuidados de saúde e que o "impacto disto vai ser brutal, ou já está a ser".

Segundo o médico, quase 415 mil pessoas que não fizeram em 2020 rastreios aos cancros colorretal, da mama e do colo do útero arriscam a desenvolver, por falta de diagnóstico precoce, doenças debilitantes ou potencialmente fatais; "a redução em meios complementares de diagnóstico chegou a ser de 50%, caso das endoscopias, que são essenciais para o diagnóstico de cancro"; e na área da Medicina Física e Reabilitação fizeram-se "menos 12,4 milhões de exames do que em 2020 [...] Isto significa que vamos ter um aumento de mortalidade e de morbilidade, doentes que viram as suas doenças crónicas agravadas, como diabetes e insuficiência cardíaca, porque perderam a oportunidade de serem tratados no tempo em que deviam."

Nesta fase da pandemia, e no dia em que o país registou mais 1160 casos positivos e mais 49 óbitos, estando a diminuir também os internamentos em enfermarias e em unidades de cuidados de intensivos, há alguns hospitais a anunciarem que vão retomar a sua atividade programada, mas para a Ordem dos Médicos é fundamental que seja definido "um plano excecional de recuperação para os doentes não covid. E para se fazer isto é preciso ativar todos os meios existentes no país: foi feito para o combate à covid, é preciso que seja feito para recuperar a saúde de todos os doentes".

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