Muitos clientes do Bolhão estendem-se pelo chão do espaço a comer algumas das iguarias confecionadas nas bancas
Muitos clientes do Bolhão estendem-se pelo chão do espaço a comer algumas das iguarias confecionadas nas bancasDR

Porto. Comerciantes históricos começam a abandonar o Bolhão

Uns pela idade avançada, outros dizem-se obrigados a encerrar lojas por “concorrência desleal e ilegal”. Acusam a Câmara do Porto de fechar os olhos “à transformação de algumas bancas em autênticos restaurantes”, sem condições, enquanto há quem pague “coimas elevadas"
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O comerciante Fernando Pinto garante que luta há mais de ano e meio junto de Rui Moreira, do vereador Pedro Baganha, de vários elementos da direção e, recentemente, da nova administradora da Go Porto, Francisca Carneiro Fernandes, “para que se reponha a legalidade no Bolhão e coloque um fim à concorrência desleal”. Desistiu: o histórico Deu La Deu, confeitaria histórica e tipicamente portuguesa de que é proprietário, na parte da Rua Formosa, abandona o Bolhão.

Fernando Pinto garante que não consegue “cumprir contratos”, nem obstar a “dificuldades crescentes”, porque há “muitas bancas” a fazerem o mesmo que a sua confeitaria, mas ilegalmente, transformando o mercado tradicional de frescos numa praça de alimentação. “Como é possível as próprias autoridades, incluindo a ASAE, não atuarem?”, pergunta.

O proprietário da Deu La Deu está no Bolhão há cerca de 40 anos. “Teria muita coisa para dizer ao longo de quase quatro décadas, mas neste momento a minha revolta maior deve-se a ter sido quase obrigado a sair. Como é possível verificar-se tanta ilegalidade e os responsáveis serem os primeiros a incentivar o incumprimento?” insiste, apresentando um parecer da Associação Portuguesa de Hotelaria Restauração e Turismo. “O Município ou entidade gestora do Mercado do Bolhão tem assim a responsabilidade de assegurar que todos os comerciantes cumpram as normas estabelecidas e deve seguir um procedimento claro para abordar a não conformidade e aplicar as sanções adequadas”.

No documento, a APHRT afirma: “sendo o Mercado do Bolhão para, principalmente, comércio de produtos alimentares, não podem os que apenas assim se encontram licenciados concorrer de forma livre e desimpedida com os demais estabelecimentos prestadores de serviços de alimentação e bebidas, prestando aos visitantes serviços análogos”.

Assim, “com base nas "Normas de Funcionamento" e no "Regulamento do Mercado do Bolhão", o Município ou entidade gestora deverá tomar medidas que reforcem e assegurem o cumprimento das regras - que aliás se encontram devidamente previstas no Regulamento do Mercado do Bolhão.”

O parecer foi enviado pelo comerciante à Câmara do Porto, acompanhado de uma exposição dirigida a Rui Moreira. “Ninguém respondeu”.

A Associação do Comércio Tradicional Bolha de Água alerta que a Deu-la-deu não é caso único. “Outros históricos estão a ponderar encerrar portas”, diz ao DN Helena Ferreira, presidente daquela Associação. “As bancas de legumes e hortaliças das Irmãs Araújo e dos Legumes da Tininha já foram abandonadas, sem que houvesse qualquer intervenção por parte da gestão para a preservação da atividade e passagem do testemunho intergeracional”, acrescenta a comerciante. “Um dia destes acordamos e os legumes são apenas ali ao lado, no Continente”.

Embora por razões alheias à gestão, também as famosas salsichas do Leandro, cuja banca era considerada das melhores do mercado, já abandonaram o Bolhão, sem qualquer alternativa para preservar esse produto naquele espaço.

As queixas por parte dos comerciantes têm sido muitas. Questões logísticas e de obra, “com chuva e o sol a entrar nas bancas”, que, dizem, “persistem em não ser resolvidas”, a aplicação de “coimas excessivas”, ou o “incumprimento do Regulamento do Mercado do Bolhão, com anuência da própria gestão que fecha os olhos à transformação de algumas bancas em autênticos restaurantes e sem condições”.

Helena Ferreira descreve outras: “vias de acesso ocupadas com visitantes sentados no chão e nas escadas a consumir o que as bancas transformadas em restaurantes oferecem e não deviam oferecer, corredores ocupados pelos passeantes de copo de vidro com bebidas alcóolicas”.

Estes são alguns dos fatores apontados pela dirigente associativa como responsáveis pela “destruição do que devia ser preservado e defendido e a razão para todos nós termos investido na reabilitação do Bolhão mais de 50 milhões de euros”. Por tudo isto, concluiu, “o desalento, a desilusão começam a tomar conta dos comerciantes históricos, com atividades históricas, e tal tem a consequência à vista”.

Fernando Pinto diz estar cansado: “Casas de restauração sem casas de banho, sem exaustão, pessoas que comem no chão, colocam pratos em cima dos caixotes do lixo, o Bolhão parece uma verdadeira baderna”. E lamenta-se: “Ao contrário de mim, que pago os custos de ter um estabelecimento aberto e umas dezenas de milhares de euros para cumprir a legislação”.

Diz-se vítima de uma “perseguição” que tem por objetivo “obrigá-lo a desistir”. “Para ter ideia, demorei mais de um ano para ter licença para construção, retiraram-me mais de 36 metros quadrados de área, enquanto outros triplicaram a área que tinham e exercem outras atividades”.

A prometida devolução do Mercado do Bolhão à cidade de um mercado de frescos e de comércio tradicional com gestão pública deveria cumprir-se com a reabilitação do edifício histórico e monumento nacional. “Esse Bolhão está a morrer, vai morrer e com ele morre o Porto”, diz Helena Ferreira.

O DN tentou sem sucesso contactar os responsáveis da câmara do Porto

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